“A história é como Janus, tem duas faces: quer olhe o passado, quer olhe o presente, ela vê as mesmas coisas.” Du Camp, Paris, vol. VI, p. 315. ■ Moda ■
[S 1, –]
arquivo temático S, folio 1, pg 1
[S 1, 2]
“Aconteceu-me várias vezes apreender certos fatos menores que se passavam diante de meus olhos e perceber neles uma fisionomia original, na qual eu me comprazia em discernir o espirito da época. ‘Isto’, eu dizia a mim mesmo, ‘só poderia se dar hoje, não poderia ser em outro momento. Isto é um sinal do tempo.’ Ora, reencontrei nove vezes em dez o mesmo fato em circunstâncias análogas em velhos relatos ou em velhas histórias.” Anatole France, Le Jardin d’Épicure, Paris, p. 113. ■ Moda ■
[S 1, 3]
A alternância da moda, o eternamente atual [das Ewig-Heutige], escapa à reflexão “histórica”; ele só é verdadeiramente superado pela reflexão política (teológica). A política reconhece em cada constelação atual o genuinamente único, o que jamais retorna. Para uma reflexão sujeita à moda e que procede da má atualidade, é típica a seguinte informação, contida em La Trahison des Clercs, de Benda. Um alemão descreve sua surpresa quando, duas semanas após a tomada da Bastilha, sentado à mesa de hóspedes em Paris, não ouviu ninguém falar sobre política. É a mesma situação descrita por Anatole France que põe as seguintes palavras na boca do velho Pilatos, que conversa em Roma sobre os tempos de seu governo e evoca a revolta do rei dos judeus: “Como era mesmo o nome dele?”
[S 1, 4]
Definição do “moderno” como o novo no contexto do que sempre existiu. A paisagem da charneca em Kafka (O Processo), sempre nova e sempre igual, não é um mau exemplo deste estado de coisas. “‘O senhor não gostaria de ver mais um quadro que eu poderia lhe vender?’… O pintor tirou de baixo da cama um monte de quadros sem moldura, tão cobertos de poeira que, quando o pintor tentou soprá-la da superfície do primeiro quadro, formou-se uma nuvem que ficou por um longo tempo diante dos olhos de K., sufocando-o. ‘Uma paisagem da charneca’, disse o pintor, oferecendo o quadro a K. Ele representava duas árvores mirradas, distantes uma da outra, sobre a grama escura. Ao fundo, um crepúsculo multicolorido. ‘Bom’, disse K., ‘eu o compro’. K. se expressara de modo tão conciso inadvertidamente, por isso ficou aliviado quando o pintor, em vez de levá-lo a mal, apanhou um segundo quadro do chão. ‘Aqui está o quadro complementar’, disse o pintor. Talvez ele pretendesse que assim o fosse, mas não se percebia diferença alguma em relação ao primeiro, estavam ali as árvores, aqui a grama e lá o crepúsculo. Mas K. não se incomodou. ‘São belas paisagens’, disse, ‘vou comprar ambos e pendurá-los em meu escritório’. ‘O tema parece lhe agradar’, disse o pintor, e pegou um terceiro quadro, ‘é uma sorte que eu tenha ainda um quadro parecido aqui’. Não era parecido, era exatamente a mesma paisagem da charneca, absolutamente igual. O pintor aproveitou bem esta oportunidade para vender quadros velhos. ‘Vou levar este também’, disse K. ‘Quanto custam os três quadros?’ Falaremos sobre isso em seguida, disse o pintor… ‘Aliás, fico contente que os quadros lhe agradem, eu lhe darei todos os quadros que tenho aqui embaixo. Todos eles representam paisagens da charneca, já pintei muitas delas. Algumas pessoas os rejeitam porque são sombrios demais; outras, porém, e o senhor é uma delas, apreciam justamente coisas sombrias’.” Franz Kafka, Der Prozeß, Berlim, 1925, pp. 284-286. ■ Haxixe ■
[S 1, 5]
O “moderno”, o tempo do inferno. Os castigos do inferno são sempre o que há de mais novo neste domínio. Não se trata do fato de que acontece “sempre o mesmo”, e nem se deve falar aqui do eterno retorno. Antes, trata-se do fato de que o rosto do mundo nunca muda justamente naquilo que é o mais novo, de forma que este “mais novo” permanece sempre o mesmo em todas as suas partes. — É isto que constitui a eternidade do inferno. Determinar a totalidade dos traços em que se manifesta o “moderno” significaria representar o inferno.
[S 1, 6]
Interesse vital em reconhecer um determinado ponto da evolução como encruzilhada. Nesse ponto localiza-se atualmente o novo pensamento histórico, que é caracterizado por uma maior concretude, pela salvação dos períodos de decadência e pela revisão da periodicidade, de maneira geral e em particular, e cuja utilização em um sentido reacionário ou revolucionário está sendo decidida agora. Neste sentido, o que se anuncia nos escritos dos surrealistas e no novo livro de Heidegger é a mesma crise, com suas duas possibilidades de solução.