[O 1, 1]

Não estaria ele acostumado a reinterpretar a imagem da cidade, por toda parte, em razão de suas constantes andanças? Não transformaria ele a passagem em um cassino, em um salão de jogos, onde aposta as fichas vermelhas, azuis, amarelas dos sentimentos em mulheres: em um rosto que surge — responderá este rosto a seu olhar? —, em uma boca silente — dirá ela algo? Aquilo que mira o jogador a partir de cada número sobre o pano verde — a sorte — dirige-lhe uma piscadela vinda de todos os corpos femininos como a quimera da sexualidade: como o seu tipo. Este nada mais é do que o número, a cifra sob a qual a sorte quer ser chamada pelo nome, neste exato instante, para saltar logo depois para um outro número. O tipo é a casa da aposta — que rende trinta e seis vezes o valor apostado — sobre a qual recai sem querer o olhar do libertino, como a bolinha de marfim que cai na casa vermelha ou na preta. Ele sai do Palais-Royal com os bolsos cheios, acena para uma prostituta e celebra mais uma vez em seus braços o ato com o número, graças ao qual o dinheiro e a riqueza, livres de todo peso terrestre, chegaram a ele pelas mãos do destino como um abraço plenamente retribuído. Pois no bordel e no salão de jogos trata-se do mesmo deleite, que é o mais pecaminoso: enfrentar o destino no prazer. Deixemos que os idealistas ingênuos acreditem que o prazer dos sentidos, seja qual for, possa determinar o conceito teológico de pecado. A luxúria autêntica tem como base nada mais do que justamente essa subtração do prazer do curso da vida com Deus, cuja ligação com ele reside no nome. O próprio nome é o grito do prazer desnudo. Este elemento sóbrio, em si mesmo desprovido de destino — o nome — não conhece outro adversário senão o destino, que ocupa o seu lugar na prostituição e monta seu arsenal na superstição. Daí, no jogador e na prostituta, a superstição que dispõe as figuras do destino e preenche todo o entretenimento galante com o atrevimento e a concupiscência do destino, fazendo o próprio prazer ajoelhar-se diante de seu trono.

[ +++ ]

[O 1, 2]

“Ao evocar minhas lembranças do Salon des Étrangers, tal como era na segunda década de nosso século, vejo diante de mim os traços nobres e a figura cavalheiresca do conde húngaro Hunyady, o maior jogador daquela época, que alvoroçava então toda a sociedade… A sorte de Hunyady foi excepcional durante muito tempo; nenhuma banca pôde resistir a suas investidas, e seus ganhos devem ter atingido aproximadamente dois milhões de francos. Seu comportamento era surpreendentemente calmo e extremamente distinto; ficava sentado, aparentemente impassível, a mão direita pousada sobre o peito da casaca, enquanto milhares de francos dependiam de uma carta de baralho ou de um lance de dados. Seu camareiro, no entanto, confidenciou a um amigo indiscreto que os nervos de seu senhor não eram assim tão fortes quanto ele procurava demonstrar, e que, bem ao contrário, pela manhã o conde trazia no peito as marcas sangrentas de suas unhas, que ele, durante a agitação do jogo, quando este tomava um rumo perigoso, cravava em sua carne.” Captain Gronow, Aus der grossen Welt, Stuttgart, 1908, p. 593.

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[O 1, 3]

Sobre o modo como Blücher jogava em Paris, ver o livro de Gronow, Aus der grossen Welt, pp. 54-56. Quando perdeu, obrigou o Banco da França a adiantar-lhe 100.000 francos como capital de jogo, e teve que abandonar Paris quando este escândalo veio à tona. “Blücher não saía da casa de jogo do n. 113 do Palais-Royal, e gastou seis milhões durante sua estada; todas as suas terras estavam empenhadas quando ele deixou Paris.” Paris ganhou mais com as tropas de ocupação do que teve de pagar como indenização de guerra.

[O 1, 5]

A seguinte história demonstra de modo bastante convincente como justamente a imoralidade pública, em total oposição à imoralidade privada, carrega seu corretivo em si mesma, num cinismo libertador. A narrativa se encontra em Carl Benedict Hase, que vivia na França como um pobre preceptor, e que enviou para casa cartas escritas de Paris e durante suas andanças: “Quando eu passava pela Pont-Neuf, saltou em minha direção uma rapariga exageradamente maquilada. Ela estava com um vestido leve de musselina, erguido até os joelhos, deixando ver as calçolas de seda vermelha que cobriam as coxas e o ventre. ‘Tome. meu amigo, você é jovem, é estrangeiro, você vai precisar disto…’, disse ela, tomando-me a mão e deixando nela um bilhete, para depois desaparecer na multidão. Pensei ter recebido algum endereço; olho o bilhete, e o que leio? O anúncio de um médico que diz curar todas as doenças imagináveis em pouco tempo. É curioso que essas moças, responsáveis por toda aquela desgraça, coloquem em nossa mão os meios para nos livrarmos dela.” Carl Benedict Hase, Briefe von der Wanderung und aus Paris, Leipzig, 1894, pp. 48-49.

[O 1a, 3]

-II- prostituta

Sobre o mofo (Veuillot: “Paris cheira a mofo”) da moda: o “glauco clarão” sob as saias, de que fala Aragon. O espartilho como passagem do tronco. O imenso contraste com o mundo ao ar livre de hoje em dia. Aquilo que hoje é comum nas prostitutas baratas — não se despir — pode ter sido outrora a praxe mais distinta. Apreciava-se o retroussée — a saia levantada — na mulher. Hessel supõe ter encontrado aqui a origem do erotismo de Wedekind, cujo páthos do ar livre teria sido um blefe. E que mais? ■ Moda

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[O 1a, 4]

Sobre a função dialética do dinheiro na prostituição. Ele compra o prazer e ao mesmo tempo torna-se expressão da vergonha. “Eu sabia”, diz Casanova a respeito de uma alcoviteira, “que eu não teria a força de partir sem dar-lhe alguma coisa”. Esta expressão singular revela seu conhecimento do mecanismo mais secreto da prostituição. Moça alguma decidiria tornar-se prostituta se contasse apenas com a remuneração tarifária dada por seus clientes. Também a gratidão deles, que talvez represente o acréscimo de alguma porcentagem, mal seria considerada por ela uma base suficiente. Como funciona, então, seu cálculo inconsciente do homem? Não se pode compreender esse mecanismo enquanto se considerar o dinheiro somente como um meio de pagamento ou como um presente. Com certeza, o amor da prostituta é venal. Mas não a vergonha de seu cliente. Esta procura um esconderijo para estes quinze minutos, e o encontra no lugar mais genial: no dinheiro. Há tantas nuanças do pagamento quanto há nuanças do jogo amoroso: indolentes e rápidas, furtivas ou brutais. O que isto quer dizer? A ferida vermelha de vergonha no corpo da sociedade secreta dinheiro e sara. Ela se reveste de uma crosta metálica. Deixemos ao espertalhão o prazer barato de imaginar-se livre de vergonha. Casanova sabia das coisas: o atrevimento lança a primeira moeda sobre a mesa, a vergonha cobre cem vezes a aposta, para ocultá-la.

[O 1a, 5]

“A dança na qual a vulgaridade … se expõe com um atrevimento sem igual é a tradicional quadrilha francesa. Quando os dançarinos, com suas pantomimas, conseguem ofender profundamente todo sentimento de delicadeza, não chegando, porém, ao ponto de precisar temer serem expulsos do salão pelos agentes de polícia ali presentes, essa dança se chama cancan. Quando, ao contrário, todo sentimento moral é pisoteado pela maneira de dançar, quando, após uma longa hesitação, os policiais sentem-se finalmente impelidos a chamar a atenção dos dançarinos para a decência, com as palavras habituais: ‘Dancem com mais decência ou serão postos para fora!’, então esta versão de intensidade mais elevada, ou melhor, ‘esta versão mais rebaixada’ chama-se chahut. /… A grosseria bestial … fez surgir um regulamento policial… Os cavalheiros podem comparecer a estes bailes fantasiados, mas não mascarados. Em parte, para não ficarem tentados a cometer maiores vulgaridades por estarem irreconhecíveis, mas também — e sobretudo — para que, caso um dançarino quisesse mostrar durante a dança o non plus ultra da depravação parisiense e fosse por isso posto para fora pelos policiais, ele fosse reconhecido e impedido de adentrar novamente o salão… As mulheres, ao contrário, só podem comparecer se estiverem usando máscaras.” Ferdinand von Gall, Paris und seine Salons, vol. 1, Oldenburg, 1844, pp. 209 e 213-214.

[O 2, 1]

Comparação entre os campos de ação erótica de hoje e aqueles de meados do século passado. O jogo social do erotismo gira hoje em torno da pergunta: até que ponto uma mulher honesta pode chegar sem se perder? Representar as alegrias do adultério sem o fato que efetivamente o constitui é um dos temas preferidos pelos dramaturgos. O terreno sobre o qual se desenrola o duelo do amor com a sociedade é, portanto, o domínio do amor “livre’ num sentido bastante amplo. Nos anos quarenta, cinqüenta e sessenta do século passado, porém, as coisas eram bem diferentes. Nada ilustra mais claramente este fato que um relato sobre as “pensões”, apresentado por Ferdinand von Gall em seu livro Paris und seine Salons (vol. I, Oldenburg, 1844-1845, pp. 225-231). Nele fica-se sabendo que em muitas dessas pensões era a regra, à hora do jantar — do qual também podiam participar estranhos com reserva antecipada —, comparecerem algumas cocottes. Elas se viam na obrigação de assumirem a aparência de moças de boa família e, de fato, não deixavam cair a máscara tão cedo; ao contrário, cercavam-se de uma interminável embalagem de bom comportamento e laços familiares, que era para ser retirada por meio de um complexo jogo de intrigas, o que, afinal, elevava seu preço. Nestas situações, naturalmente, expressa-se menos o recato da época do que seu fanatismo pelas máscaras.

[O 2, 2]

Ainda sobre o fanatismo pelas máscaras: “Pelas estatísticas da prostituição sabe-se que a mulher perdida tem um certo orgulho pelo fato de a natureza considerá-la ainda digna de ser mãe. Este desejo, porém, não a impede de ter aversão aos incômodos e a deformação ligados a esta honraria. Por isso, ela escolhe de bom-grado um caminho intermediário para exibir o seu estado: ela o mantém ‘por dois meses, por três meses’, mas, naturalmente, não por mais tempo.” F. Th. Vischer, Mode und Cynismus, Stuttgart, 1879, p. 7. ■ Moda

[O 2, 3]

Na prostituição, expressa-se o lado revolucionário da técnica (o lado criativo, mas também, certamente, o seu lado descobridor: o simbólico). “Como se as leis da natureza, às quais o amor se submete, não fossem mais tirânicas e mais odiosas que as da Sociedade! O sentido metafísico do sadismo consiste na esperança de que a revolta do homem atingirá uma intensidade tal que intimará a natureza a mudar suas leis – que  as mulheres, não querendo mais tolerar as provas da gravidez, nem os riscos e as dores do parto e do aborto, obrigarão  a natureza a inventar um outro meio para que o homem se perpetue sobre a terra.” Emmanuel Berl, “Premier Pamphlet” (Europe,  n° 75,  pp. 405-406). De fato: a revolta sexual contra o amor não corresponde apenas a uma vontade fanática e obsessiva de prazer, ela visa também a submeter a natureza e conformá-la a esta vontade. Os traços aqui em questão tornam-se ainda mais nítidos quando se considera a prostituição (sobretudo na  forma cínica na qual era praticada nas passagens parisienses por volta do final do século) menos como oposição ao amor do que como decadência do amor. O aspecto revolucionário desta decadência se insere então, quase espontaneamente, na decadência das passagens.

[O 2, 5]

Por volta de 1830: “O Palais-Royal está ainda na moda — o bastante para que o aluguel das cadeiras traga 32.000 francos a Luis Filipe; e as concessões de jogos, cinco milhões e meio ao Tesouro… As casas de jogo do Palais-Royal rivalizam-se com o Cercle des Étrangers, na Rue Grange-Batelière, e com Frascati, na Rue Richelieu.” Dubech e D’Espezel, Histoire de Paris, Paris, 1926, p. 365.

[O 2a, 1]

Ritos de passagem – assim se denominam no folclore as cerimônias ligadas à morte, ao nascimento, ao casamento, à puberdade, etc. Na vida moderna, estas transições tornaram-se cada vez mais irreconhecíveis e difíceis de vivenciar. Tornamo-nos muito pobres em experiências liminares. O adormecer talvez seja a única delas que nos restou. (E, com isso, também o despertar.) E, finalmente, tal qual as variações das figuras do sonho, oscilam também em torno de limiares os altos e baixos da conversação e as mudanças sexuais do amor. “Como agrada ao homem”, diz Aragon, “manter-se na soleira da imaginação!” (Paysan de Paris, 1926, p. 74). Não é apenas dos limiares destas portas fantásticas, mas dos limiares em geral que os amantes, os amigos, adoram sugar as forças. As prostitutas, porém, amam os limiares das portas do sonho. – O limiar [Schwelle] deve ser rigorosamente diferenciado da fronteira [Grenze]. O limiar é uma zona. Mudança, transição, fluxo estão contidos na palavra schwellen (inchar, intumescer), e a etimologia não deve negligenciar estes significados. Por outro lado, é necessário determinar o contexto tectônico e cerimonial imediato que deu à palavra o seu significado. ■ Morada de sonho

[O 2a, 2]

Sob o peristilo nordeste do Palais-Royal encontrava-se o Café des Aveugles. “Lá, uma meia dúzia de cegos do asilo dos Quinze-Vingts tocava incessantemente uma música quase ensurdecedora, das seis horas da tarde à uma hora da manhã, pois esses estabelecimentos subterrâneos só ficavam abertos ao público do crepúsculo à aurora. Era o ponto de encontro predileto de conhecidas Laíses e Frinéias, sereias impuras, que tinham pelo menos o mérito de dar movimento e vida a esse imenso bazar de prazeres — hoje triste, sombrio e mudo, como os lupanares de Herculano. Histoire des Cafés de Paris Extraite des Mémoires d’un Viveur, Paris, 1857, p. 7.

[O 2a, 5]

III spleen

“Afirmo que a paixão pelo jogo é a mais nobre das paixões, porque ela comporta todas as outras. Uma seqüência de jogadas felizes me proporciona mais prazer do que um homem que não joga poderia ter em vários anos. Eu me deleito espiritualmente, isto é, da maneira mais sensível e mais delicada. Você pensa que no ouro que me chega eu só vejo o lucro? Você está enganado. Vejo nele as alegrias que ele proporciona e saboreio-as verdadeiramente. Essas alegrias, vivas e ardentes como relâmpagos, são rápidas demais para me dar desgosto e diversas demais para me entediar. Tenho cem vidas numa só. Se viajo, faço-o como uma faísca elétrica… Se tenho a mão fechada e guardo meu dinheiro, é porque conheço muito bem o preço do tempo para gastá-lo como os outros homens. Um prazer que eu me concedesse me faria perder mil outros prazeres… Tenho os prazeres do espírito e não quero outros.” Édouard Gourdon, Les Faucheurs de Nuit, Paris, 1860, pp. 14-15. A citação foi tomada de empréstimo a La Bruyère! — Cf. “Mesmo que fosse possível, eu já não poderia do modo como eu queria.” Wallenstein.

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[O 3, 1]

“As concessões de jogos compreendiam: a casa do Cercle des Étrangers, na Rue Grange-Batelière, n° 6; a casa de Livry, conhecida como Frascati, na Rue Richelieu, n° 103; a casa Dunans, na Rue du Mont-Blanc, n° 40; a casa Marivaux, na Rue Marivaux, n° 13; a casa Paphos, na Rue du Temple, n° 110; a casa Dauphine, na Rue Dauphine, n° 36; e, no Palais-Royal, o n° 9 (até o n° 24), o n° 129 (ate o n° 137); o n° 119 (a partir do n° 102) e o n° 154 (a partir do n° 145). Esses estabelecimentos, apesar de seu grande número, não eram suficientes para os jogadores. A especulação abriu outros, que a polícia nem sempre conseguiu fiscalizar com eficiência. Joga-se aí o carteado, a bouillotte e o bacará. Mulheres velhas, restos vergonhosos e grotescos de todos os vícios … ocupam-se de sua direção. São as chamadas viúvas de generais, protegidas pelos chamados coronéis, que repartem entre si o produto das bancas. Esse estado de coisas prolonga-se até 1837, época da extinção das concessões de jogos.” Édouard Gourdon, Les Faucheurs de Nuit, Paris, 1860, p. 34.

[O 3, 3]

“A aventura do guarda municipal a cavalo, colocado como um talismã diante da porta de um jogador maltratado pela sorte, ficou nos anais de nossos círculos. O bravo soldado, que pensava estar ali para fazer as honras aos convidados de alguma festa, já estranhava o silêncio da rua e da casa, quando chegou, por volta de uma hora da manhã, a triste vítima do pano verde. Como nas outras noites, e apesar do poder do talismã, o jogador havia perdido muito. Ele toca a campainha; ninguém atende. Toca novamente; nada se move na guarita do cérbero adormecido, e a porta é inexorável. Impaciente, exasperado, amargurado por causa das perdas que acabara de sofrer, o locatário quebra uma vidraça com sua bengala para acordar o porteiro. Neste momento, o guarda, até então um simples espectador da cena noturna, julga que é seu dever intervir. Ele se abaixa, agarra o perturbador pela gola, iça-o sobre o cavalo e galopa até seu quartel, satisfeito com o pretexto válido para pôr fim a uma vigilância que o entediava… Apesar da explicação, o jogador passou o resto da noite numa cama de quartel.” Édouard Gourdon, Les Faucheurs de Nuit, Paris, 1860, pp. 181-182.

[O 3a, 1]

Professeurs de la langue verte.’ “Não possuindo nada além de uma perfeita experiência das combinações vencedoras, das séries e das intermitências, eles se instalavam nas casas de jogo da abertura ao encerramento, e terminavam a noite nos antros de bouillotte, chamados de casas Baural. À espreita de noviços, de iniciantes … esses estranhos professores davam conselhos, discutiam jogadas passadas, prediziam as jogadas futuras e jogavam pelos outros. Em caso de perda, eles não faziam senão maldizer a sorte, suspeitar de um lance fraudulento, responsabilizar o azar, o dia do mês se fosse um 13, o dia da semana se fosse uma sexta-feira. Em caso de ganho, pegavam seu prêmio, independentemente do que escamoteavam durante o manuseio dos fundos, operação que se chamava: ‘garantir o leite das crianças’. Esses operadores se dividiam em várias classes: os aristocratas, todos coronéis ou marqueses do Antigo Regime, os plebeus oriundos da Revolução, enfim, aqueles que ofereciam seus conselhos por cinqüenta centavos.” Alfred Marquiset, Jeux et Joueurs d’Autrefois, 1789-1837, Paris, 1917, P. 209. O livro contém dados preciosos sobre o papel da aristocracia e dos militares na exploração do jogo.

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[O 3a, 2]

Palais-Royal. “No segundo andar, moram sobretudo as ‘mulheres perdidas’ da classe nobre… No terceiro andar e ‘no paraíso’, nas mansardas, moram as da classe mais baixas; o trabalho obriga-as a morar no centro da cidade, no Palais-Royal, na Rue Traversière e nas cercanias… No Palais-Royal moram talvez de 600 a 800 — mas um número incomparavelmente maior perambula por ali à noite, pois é o lugar onde se encontra a maioria dos ociosos. Na Rue Saint-Honoré e em algumas ruas adjacentes, elas ficam enfileiradas à noite como os cabriolés de aluguel durante o dia, ao redor do Palais. Seu número, no entanto, diminui à medida que nos distanciamos do Palais-Royal.” J. F. Benzenberg, Briefe geschrieben auf einer Reise nach Paris, vol. I, Dortmund, 1805, pp. 261 e 263. O autor calcula o número de “mulheres perdidas” em “cerca de 10.000”; “antes da Revolução, um relatório da polícia indicava o número de 28.000”; op. cit., p. 261.

[O 3a, 3]

-II- prostituta

“O vício cumpriu sua tarefa costumeira, para ela, como para as outras. Refinou e tornou desejável a feiura atrevida de seu rosto. Sem nada perder da graça suburbana de sua origem, a jovem tornou-se, com seus adornos enfáticos e seus encantos audaciosamente trabalhados pelos cremes, um aperitivo e uma tentação para os apetites entediados, para os sentidos amortecidos que só se excitam com as provocações da maquiagem e o frufru dos vestidos espetaculosos.” J.-K. Huysmans, Croquis Parisiens, Paris, 1886, p. 57 (“L’ambulante”).

[O 4, 1]

“É impossível esperar que um burguês algum dia consiga compreender os fenômenos de distribuição das riquezas. Pois, à medida que se desenvolve a produção mecânica, a propriedade se despersonaliza e se reveste com a forma coletiva impessoal da sociedade anônima, cujas cotas terminam por rodopiar no turbilhão da bolsa de valores… Alguns perdem…, outros ganham, de uma maneira que se assemelha tanto ao jogo, que os negócios da bolsa de valores são efetivamente chamados de ‘jogo’. O desenvolvimento econômico moderno como um todo tende a transformar, cada vez mais, a sociedade capitalista em um enorme cassino internacional, onde os burgueses ganham e perdem capitais em conseqüência de acontecimentos que lhes permanecem desconhecidos… O ‘inescrutável’ reina na sociedade burguesa como num antro de jogo… Sucessos e fracassos, cujas causas são inesperadas, geralmente desconhecidas e aparentemente regidas pelo acaso, predispõem o burguês a adquirir uma mentalidade de jogador… O capitalista, cuja fortuna está aplicada em valores mobiliários, submetidos a oscilações de preço e dividendos cujas causas desconhece, é um jogador profissional. O jogador, porém, é um ser altamente supersticioso. Os freqüentadores assíduos dos antros de jogo possuem sempre fórmulas mágicas para exorcizar o destino; um deles murmura uma oração a santo Antônio de Pádua ou a qualquer outro espírito celestial; um segundo aposta apenas quando uma determinada cor ganhou; um terceiro segura com a mão esquerda uma pata de coelho etc. O inescrutável social envolve o burguês, como o inescrutável da natureza envolve o selvagem.” Paul Lafargue, “Die Ursachen des Gottesglaubens”, Die Neue Zeit, XXIV, n° I, Stuttgart, 1906, p. 512.

[O 4, 2]

Adolf Stahr se refere a um certo Chicard, primeiro dançarino de cancã do Bal Mabille, e afirma que ele dançava sob a vigilância de dois sargentos da polícia que não tinham outra função a não ser vigiar a dança deste único homem. A este propósito, cf. a afirmação — citada por Woldemar Seyffarrh, Wahrnehmungen in Paris, 1853 und 1854, Gotha, 1855, p. 136, sem referências precisas — segundo a qual “apenas a superioridade da força policial consegue conter a bestialidade da população parisiense dentro de limites minimamente aceitáveis”.

[O 4a]

III spleen

“Tentar a sorte não é uma volúpia medíocre. Experimentar — num segundo — meses, anos, toda uma vida de temor e de esperança não é um prazer sem embriaguez. Eu não tinha nem dez anos quando o Sr. Grépinet, meu professor da nona série, leu-nos em aula a fábula do Homem e do Gênio. No entanto, lembro-me dela melhor do que se a tivesse ouvido ontem. Um gênio dá a um menino um novelo de linha e lhe diz: ‘Este é o fio dos seus dias. Pega-o. Quando quiseres que seu tempo passe, puxa o fio: seus dias passarão rápidos ou lentos conforme você desenrolar o novelo, rápida ou lentamente. Enquanto você não tocar o fio, permanecerá na mesma hora da sua existência.’ O menino pegou o fio; puxou-o primeiro para tornar-se um homem, depois para desposar a noiva que amava, depois para ver crescerem seus filhos, para conseguir os empregos, os salários, as honras, para superar as preocupações, evitar os aborrecimentos, as doenças que vêm com a idade, enfim, ai de mim! para terminar uma velhice insuportável. Ele tinha vivido quatro meses e seis dias desde a visita do gênio. Pois bem! O que é o jogo senão a arte de viver num segundo as mudanças que o destino geralmente só produz ao longo de muitas horas e mesmo de muitos anos; a arte de acumular num só instante as emoções esparsas na lenta existência dos outros homens, o segredo de viver toda uma vida em alguns minutos, enfim, o novelo de linha do gênio? O jogo é um corpo-a-corpo com o destino… Joga-se a dinheiro — dinheiro, quer dizer, a possibilidade imediata, infinita. Talvez a carta que se vira ou a bolinha que corre dê ao jogador parques e jardins, campos e vastos bosques, castelos elevando ao céu suas torres pontiagudas. Sim, esta pequena bola que rola contém em si hectares de boa terra e telhados de ardósia, cujas chaminés esculpidas se refletem no Loire; ela encerra os tesouros da arte, as maravilhas do gosto, jóias prodigiosas, os corpos mais belos do mundo, e mesmo almas — que se pensava que não fossem venais —, todas as decorações, todas as honras, toda a graça e todo o poder da Terra… E você quer que não se jogue? Se pelo menos o jogo desse apenas esperanças infinitas, se mostrasse apenas o sorriso de seus olhos verdes, talvez não o amássemos tão ardorosamente. Mas ele tem unhas de diamante, é terrível; proporciona, quando lhe apraz, a miséria e a vergonha; é por isso que o adoramos. A atração do perigo subjaz a todas as grandes paixões. Não há volúpia sem vertigem. O prazer misturado com o medo embriaga. E o que há de mais terrível que o jogo? Ele dá e tira; suas razões não são absolutamente as nossas razões. Ele é mudo, cego e surdo. Pode tudo. É um deus… Tem seus devotos e seus santos que o amam pelo que ele é, não pelo que promete, e que o adoram quando os atinge. Se os despoja cruelmente, atribuem a falta a si mesmos, não a ele: ‘Joguei mal’, dizem. Eles se acusam e não blasfemam.” Anatole France, Le jardin d’Épicure, Paris, pp. 15-18.

[O 5, 1]

Béraud procura defender em longas argumentações as vantagens do procedimento administrativo contra as prostitutas, em oposição ao procedimento jurídico: “Assim, o santuário da justiça não foi maculado publicamente por uma causa suja, e o crime é punido, mas arbitrariamente, em virtude de uma ordem particular de um prefeito de polícia.” F. F. A. Béraud, Les Filles Publiques de Paris et la Police qui les Régit, vol. II, Paris-Leipzig, 1839, p. 50.

[O 5, 2]

“Um marlou [cafetão] é um belo jovem, forte, robusto, que sabe se defender, que se apresenta muito bem, que dança o chahut e o cancã com elegância, é amável para com as mulheres devotadas ao culto de Vênus, protegendo-as dos perigos iminentes, sabendo fazer respeitá-las e forçando-as a se comportarem com decência… Eis, portanto, uma classe de indivíduos que, desde tempos imemoriais, se faz notar pelo seu belo porte, por uma conduta exemplar, pelos serviços que presta à sociedade, e que agora é reduzida a uma situação extrema.” 50.000 Voleurs de plus à Paris, ou Réclamation des anciens marlous de la capitale, contre l’ordonnance de M. le Préfet de police, concernant les filles publiques; par le beau Théodore Cancan [50.000 Ladrões a mais em Paris, ou Petição dos antigos cafetões da capital contra o Decreto do Sr. Prefeito de Polícia, concernente às mulheres públicas: redigida pelo belo Th. C.], cit. em F. F. A. Béraud, Les Filles Publiques de Paris et la Police qui les Régit, vol. II, Paris-Leipzig, 1839, pp. 109-110, 113-114. [O panfleto surgiu pouco tempo antes da publicação da obra que o cita.]

[O 5, 3]

Extraído do decreto policial de 14 de abril de 1830 sobre o regulamento da prostituição: “Art. 1: …Igualmente fica-lhes proibido aparecer a qualquer hora e sob qualquer pretexto nas passagens, nos jardins públicos e nos boulevards. Art. 2: As mulheres públicas só poderão se dedicar á prostituição nas casas de tolerância. Art. 3: As prostitutas autônomas, ou seja, aquelas que não moram nas casas de tolerância, só poderão se dirigir a essas casas depois de se acenderem os lampiões da rua. Elas deverão se dirigir diretamente a esses locais, vestidas de forma simples e decente… Art. 4: Elas não poderão, em uma mesma noite, deixar uma casa de tolerância para ir a uma outra. Art. 5: As prostitutas autônomas deverão ter deixado as casas de tolerância e voltado para seus domicílios as onze horas da noite… Art. 7: As casas de tolerância poderão ser indicadas por um lampião e, nas primeiras horas, por uma mulher idosa que se manterá à porta… Assinado; Mangin”. F. F. A. Béraud: Les Filles Publiques de Paris et la Police qui les Régit, vol. II, Paris-Leipzig, 1839, pp. 133-135.

[O 5a, 1]

-II- prostituta

Dos esclarecimentos de Béraud sobre suas propostas para um novo regulamento. 1) No que se refere à mulher idosa no limiar: “O segundo parágrafo proíbe a esta mulher ultrapassar a soleira da porta, porque, muitas vezes, acontece que ela tem a audácia de ir ao encontro dos transeuntes. Vi com meus próprios olhos essas mercadoras pegarem homens pelo braço, pelas roupas, e forçá-los, por assim dizer, a entrar em suas casas.” 2) No que se refere interdição de atividade comercial para prostitutas: “Proíbo também a abertura de lojas e boutiques nas quais as mulheres públicas se instalam como modistas, costureiras de roupa íntima, vendedoras de perfumes etc. As mulheres que ocupam essas lojas ou butiques mantêm as portas ou janelas abertas, para fazer sinais aos transeuntes… Há outras, mais astutas, que fecham suas portas e janelas, mas fazem sinais através das vidraças sem cortinas, ou essas cortinas ficam entreabertas, deixando uma fresta que permite uma comunicação fácil entre o interior e o exterior. Algumas batem na vitrine da boutique, toda vez que um homem passa, o que o faz se voltar para o lado de onde vem o ruído, e então os sinais se sucedem de uma maneira tão escandalosa que ninguém pode deixar de percebê-los. Todas essas boutiques se encontram nas passagens.” F. F. A. Béraud, Les Filles Publiques de Paris et la Police qui les Régit, vol. II, Paris-Leipzig, 1839, pp. 149-150, 152-153.

[O 5a, 2]

Béraud declara-se a favor de um número ilimitado de casas de tolerância. “Art. 13: Toda mulher ou moça maior de idade, que tenha um domicílio com um espaço conveniente, pelo menos dois quartos, autorizada por seu marido se for casada, bem como pelo proprietário e pelo principal locatário da casa em que mora…, estará apta a tornar-se dona de casa de tolerância e a obter o registro.” Béraud, Les Filles Publiques de Paris, vol. II, p. 156.

[O 5a, 3]

Toda moça, segundo a proposta de Beraud, deve ser registrada como prostituta, se assim o desejar — inclusive se for menor. Extraído da argumentação: “O sentimento do vosso dever vos ordena uma vigilância contínua em favor dessas jovens… Rejeitá-las significa assumir todas as conseqüências de um abandono bárbaro… É preciso, pois, registrá-las, e cercá-las de toda a proteção e de toda a vigilância da autoridade. Em vez de lançá-las numa atmosfera de corrupção, submetei essas adolescentes a uma vida regular numa casa especialmente destinada a recebê-las… Preveni seus pais. Desde que eles saibam que a vida desregrada de suas filhas permanecerá sigilosa, e que é um segredo religiosamente guardado pela administração, eles consentirão em recebê-las de volta.” Beraud, op. cit., vol. II, pp. 170-171.

[O 6, 1]

“Por que a polícia não permitiria … a algumas donas de casas de tolerância particularmente conhecidas promover … saraus, bailes e concertos, com a adição de mesas de carteado? Aqui, pelo menos, os escroques seriam vigiados de perto, enquanto nos outros círculos [a saber: em casas de jogos] isso é impossível, visto que a ação da policia … em tais lugares é … quase nula.” F. F. A. Beraud, Les Filles Publiques de Paris et la Police qui les Régit, vol. II, Paris- Leipzig, 1839, p. 202.

[O 6, 2]

-II- prostitutaII o flâneur e a massa

“Há épocas do ano, até periódicas, que são fatais para a virtude de um grande número de moças parisienses. Nas casas de tolerância ou em outros lugares, as investigações da policia encontram, então, muito mais jovens entregando-se à prostituição clandestina que em todo o resto do ano. Perguntei-me muitas vezes sobre as causas desses surtos de devassidão, e ninguém, mesmo na administração, soube responder esta questão. Tive de me valer de minhas próprias observações e empenhei-me com tanta perseverança que consegui, enfim, descobrir o princípio verdadeiro dessa prostituição progressiva … e … circunstancial… Quando se aproximam o Ano Novo, a festa de Reis, as festas da Virgem…, as jovens querem dar lembranças, presentes, oferecer belos buquês; desejam também, para elas mesmas, um vestido novo, o chapéu da moda, e, privadas dos meios pecuniários indispensáveis…, elas os encontram entregando-se durante alguns dias à prostituição… Eis os motivos para o recrudescimento da devassidão em certas épocas e certas festividades.” F. F. A. Béraud, Les Filles Publiques de Paris et la Police qui les Régit, vol. II, Paris-Leipzig, 1839, pp. 252-254.

[O 6, 3]

Contra o exame médico na polícia: “Toda mulher encontrada na Rue de Jérusalem, indo a Prefeitura da Polícia ou saindo dela, é estigmatizada com o nome de mulher pública… É um escândalo periódico. Durante todos os dias de visita, vê-se as proximidades da prefeitura invadidas por um grande número de homens esperando a saída dessas infelizes, sabendo que aquelas que saem livres do dispensário são consideradas sadias.” F. F. A. Béraud, Les Filles Publiques de Paris, vol. I, pp. 189-190.

[O 6a, 1]

“Você quer um outro tipo de sedução? Vá às Tulherias, ao Palais-Royal ou ao Boulevard des Italiens. Você encontrará nesses lugares mais de uma sereia sentada numa cadeira, com os pés sobre outra, e com uma terceira cadeira vazia a seu lado. É um ponto de espera para o homem da sorte… Também as lojas de moda … apresentam recursos aos aficionados. Nelas você negocia o chapéu rosa, verde, amarelo, lilás ou escocês; você combina o preço, dá seu endereço e, no dia seguinte, à hora marcada, vê chegar em sua casa aquela que, atrás do chapéu, arrumava, com seus dedos delicados, a gaze, a fita ou algum outro pompom, coisas que tanto agradam a essas damas.” F. F. A. Beraud, Les Filles Publiques de Paris, precedido de uma nota histórica sobre a prostituição em diversos povos da Terra, por M. A. M., vol. I, pp. CII-CIV (Prefácio).

[O 6a, 2]

II o flâneur e a massa

“À primeira vista somos levados a crer que existe um grande número de mulheres públicas, por uma espécie da fantasmagoria que produzem as idas e vindas dessas mulheres, sempre nos mesmos pontos, o que parece multiplicá-las ao infinito… Há uma outra circunstância que contribui para essa ilusão: os vários tipos de roupa com as quais se disfarçam as mulheres públicas numa mesma noite. Mesmo com um olho pouco exercitado, é fácil convencer-se de que uma moça que, às oito horas, está com uma roupa elegante, rica, é a mesma que aparece às nove como costureirinha, e que se mostra às dez como camponesa, e vice-versa. É assim em todos os pontos da capital onde afluem habitualmente as prostitutas. A título de exemplo, siga uma dessas moças no boulevard, entre as portas Saint-Martin e Saint-Denis: ela está agora com um chapéu de plumas e um vestido de seda coberto com um xale; ela entra na Rue Saint-Martin, segue pelo lado direito, passa pelas pequenas ruas que chegam à Rue Saint-Denis, entra em uma das inúmeras casas de devassidão que ali se encontram, e, pouco depois, sai vestida de costureirinha ou de camponesa.” F. F. A. Béraud, Les Filles Publiques de Paris, vol. I, Paris-Leipzig, 1839, pp. 51-52. ■ Moda

[O 7, 1]

-II- prostituta

Les filles de marbre [As jovens de mármore], drama em cinco atos com canto, de Théodore Barrière e Lambert Thiboust; apresentado pela primeira vez em Paris no Théâtre du Vaudeville, em 17 de maio de 1853. O primeiro ato deste drama apresenta os protagonistas como antigos gregos, e o herói, Rafael, que mais tarde perde a vida por amor a uma jovem de mármore (Marco), representa aqui o papel de Fídias, que cria as estátuas de mármore. O efeito final deste ato é o sorriso que as estátuas dirigem a Górgias, que lhes promete dinheiro, depois de terem ficado imóveis diante de Fídias, que lhes prometera glória.

[O 7, 2]

“Veja, … há em Paris dois tipos de mulheres, como há dois tipos de casas … a casa burguesa, onde só se entra com um contrato de aluguel, e o hotel mobiliado, onde se mora por mês… O que os distingue? A tabuleta comercial… Ora, a toalete é a tabuleta da mulher … e há toaletes tão eloqüentes, que é absolutamente como se você lesse no primeiro nível dos babados do vestido: ‘apartamento mobiliado para alugar!” Dumanoir e Th. Barrière, Les Toilettes Tapageuses: Comédie en un Acte, Paris, 1856, p. 28.

[O 7, 5]

Contra o fermier des jeux [chefe da concessão de jogos] Benazet — que, entre outras coisas, se envolvera em negócios ilegais, aproveitando para suas transações particulares a cotação mais alta do ouro nas casas de jogo — foi publicado o seguinte libelo: Louis Bourlier, Pétition à M.M. les Députés, Paris, Galeries d’Orléans, 30 de junho de 1839. Bourlier fora um antigo funcionário da ferme des jeux [concessão de jogos].

[O 7, 6]

No átrio da Bolsa, como no de nossa casa,
Joga-se, e afronta-se os golpes da sorte:
Vermelho e negro no Trinta e um, alta e baixa na Bolsa,
São de perda e de ganho igualmente a fonte.

Ora, se o jogo da Bolsa é tão semelhante ao nosso,
Por que permitir um? Por que proibir o outro?

Louis Bourlier, Stances à l’Occasion de la Loi qui Supprime la Ferme des Jeux: Adressées à la Chambre [Estanças por ocasião da lei que suprime a concessão de jogos: endereçadas Câmara], Paris, 1837, p. 5.

[O 7a, 4]

-II- prostituta

“No 13° arrondissement, há mulheres que morrem quando vão começar a amar; elas dão ao amor o último suspiro da galanteria.” Louis Lutine: Le Treizième Arrondissement de Paris, Paris, 1850, pp. 219-220. Uma bela fórmula para A Dama das Camélias, que apareceu dois anos mais tarde.

[ +++ ]

[O 7a, 7]

Extraído de M. J. Ducos (de Gondrin): Comment on se Ruine à la Bourse [Como se arruinar na Bolsa], Paris, 1858: “Não querendo de forma alguma atacar direitos legítimos, não tenho nada a dizer contra as operações sérias da Bolsa, para as quais os agentes de câmbio foram exclusivamente criados. Minha crítica visa particularmente as corretagens de mercados fictícios … e os reportes usurários.” (p. 7) “Não há sorte no jogo da Bolsa, por mais feliz que seja, que possa resistir às comissões exorbitantes dos agentes de câmbio… Às margens do Reno, há dois estabelecimentos de jogo (Homburg e Wiesbaden) onde se joga o trinta e quarenta, adiantando uma pequena … comissão de 62 1/2 cêntimos por 100 francos. É … a trigésima segunda parte da comissão dos agentes de câmbio e da taxa dos reportes reunidas. No trinta e quarenta aposta-se no vermelho ou no negro, como na Bolsa se aposta na alta ou na baixa, com a diferença de que, no jogo, as duas opções são sempre perfeitamente iguais e que não é possível qualquer espécie de fraude, os fracos não ficando de maneira alguma à mercê dos poderosos.” (p. 16).

[O 8, 1]

O jogo da Bolsa na província dependia de Paris para receber “as informações sobre a cotação dos títulos mais importantes… Para isso, utilizavam-se mensageiros especiais, pombos-correio, e um dos meios preferidos na época, quando havia na França uma profusão de moinhos de vento, era a transmissão de sinais de um moinho a outro: se a janela de um deles estivesse aberta, isto significava Bolsa em alta, e o sinal era captado pelo moinho seguinte e passado adiante; se a janela permanecesse fechada, isto significava baixa, e a notícia seguia o mesmo percurso de moinho a moinho, da capital até a província.” Os irmãos Blanc, no entanto, preferiam servir-se do telégrafo óptico, cuja utilização estava legalmente reservada ao governo. “Um belo dia, no ano de 1834, a pedido de um agente dos Blanc, um telegrafista parisiense transmitiu para Bordeaux, em um telegrama oficial, um ‘H’ que deveria indicar a alta [hausse] na cotação dos títulos. Para marcar a letra, e também para se precaver contra qualquer descoberta, acrescentou após o ‘H’ um sinal de engano.” No entanto, surgiram dificuldades com este método, e os Blanc o combinaram então com um outro. “Quando, por exemplo, os títulos do Estado francês com rendimento de três por cento registravam uma alta de pelo menos 25 cêntimos, o encarregado dos Blanc em Paris, um certo Gosmand, enviava um pacotinho com luvas ao funcionário dos telégrafos em Tours, de nome Guibout, que prudentemente era indicado no endereço como fabricante de luvas e meias. Caso ocorresse uma baixa da mesma importância, Gosmand lhe enviaria meias ou gravatas. No endereço do pacote era escrita uma letra ou uma cifra que Guibout acrescentava imediatamente, com sinal de engano, a um telegrama oficial para Bordeaux.” Este procedimento funcionou por quase dois anos. Relato segundo Gazette des Tribunaux de 1837. Egon Caesar Conte Corti, Der Zauberer von Homburg und Monte Carlo, Leipzig, 1932, pp. 17-19.

[O 8, 2]

Conversas Galantes ao Pé do Fogo entre Duas Moças do Século XIX, Roma-Paris, Ed. Grangazzo, Vache & Cie. Algumas formulações curiosas: “Ah, cu e boceta, palavras tão simples e, no entanto, tão ricas de conteúdo; olhe para mim, o que você acha de meu cu e de minha boceta, Elisinha?” (p. 12). “No templo, o sacerdote; no cu, o dedo indicador como sacristão; no clitóris, dois dedos como diáconos — é assim que eu aguardava as coisas que estavam por vir. ‘Quando meu cu estiver em boa posição, então, meu amigo, pode começar!'” Os nomes das duas moças: Elise e Lindamine.

[O 8a, 1]

Lecomte sobre a cronista de moda Constance Aubert, que ocupava uma posição influente no Le Temps, e que recebia entregas das casas de moda como forma de retribuição pelos seus artigos: “A pena tornou-se um verdadeiro capital, que pode estipular, a cada dia, os rendimentos que se pretende obter. Paris inteira tornou-se um bazar onde nada escapa à mão que quer tomar, porque essa mão já está estendida há muito tempo.” Jules Lecomte, Les Lettres de Van Engelgom, ed. Henri d’Almeras, Paris, 1925, p. 190. As cartas de Lecomte foram publicadas em 1837 no Indépendant de Bruxelas.

[O 8a, 2]

banimento do orgânico

“É pela faculdade de seu espírito, chamada reminiscência, que os desejos do homem condenado ao brilhante cativeiro das cidades se voltam … para uma estadia no campo, seu domicílio primitivo ou, pelo menos, para a posse de um simples e tranqüilo jardim. Seus olhos aspiram se repousar sobre o verde, descansando das fadigas do escritório, ou da claridade ardente das lâmpadas do salão. Seu olfato, ferido incessantemente por emanações pestilentas, procura o perfume que exalam as flores. Um canteiro de violetas humildes e suaves o arrebataria em êxtase… Essa felicidade … sendo-lhe negada, ele vai querer ainda alimentar a ilusão, até transformar o parapeito de sua janela em jardim suspenso, e a lareira de sua modesta habitação em um canteiro ornado de folhagens e de flores. Assim é o homem da cidade, e essa é a fonte de sua paixão pelas flores e pelos campos… Tais as reflexões que me levaram ao estabelecimento de numerosos teares onde mandei executar desenhos imitando as flores da natureza… A demanda por esse tipo de xales foi prodigiosa… Os xales eram vendidos antes de serem fabricados. Os pedidos para entrega se sucediam sem interrupção… Esse brilhante período dos xales, essa idade de ouro da fábrica … durou pouco tempo e, entretanto, fez correr pela França um rio de riqueza, cuja corrente era tanto mais volumosa quanto suas principais fontes se situavam nos países estrangeiros. Depois de ter falado dessa notável demanda, pode ser interessante … saber de que forma ela se propagou. Como eu já esperava, em Paris consumiam-se poucos xales com flores naturais. As províncias faziam seus pedidos na proporção de sua distância da capital, e os países estrangeiros, na proporção de sua distância da França. Seu reinado ainda não acabou. Continuo abastecendo países distantes entre si, espalhados por toda a Europa, e onde não se pensaria enviar um só xale com desenhos, imitando a caxemira… Pelo fato de Paris não ter dado importância aos xales com desenhos de flores naturais … não se poderia dizer — reconhecendo Paris como o centro do bom gosto — que quanto mais nos distanciamos desta cidade, mais nos aproximamos dos gostos e dos sentimentos naturais? Ou, em outras palavras, que o gosto e o natural, neste caso, não têm nada em comum, e até se excluem reciprocamente?” J. Rey, fabricante de caxemiras, Études pour Servir à l’Histoire des Châles, Paris, 1823, pp. 201-202, 204-206. O exemplar da Bibliothèque Nationale apresenta no verso da página de rosto uma observação em escrita antiga: “Este tratado sobre um assunto aparentemente fútil é notável pela pureza e elegância do estilo, assim como por uma erudição comparável aquela da viagem d’Anarcharsis.”

[O 9, 1]

“No começo do reinado de Luís Filipe, a opinião pública se pronunciou também [tal como hoje em dia, no que diz respeito à Bolsa] … contra os jogos de azar… A Câmara dos Deputados … votou pela sua supressão, embora o Estado tirasse deles rendimentos anuais de vinte milhões… No momento atual, em Paris, o jogo da Bolsa não proporciona ao governo sequer vinte milhões por ano; mas, em contrapartida, rende pelo menos cem milhões aos agentes de câmbio, aos corretores da coulisse e aos agiotas … que fazem reportes … elevando às vezes a taxa de juros acima de 20%. — Esses cem milhões são tomados de quatro a cinco mil jogadores pouco esclarecidos que, na tentativa de se explorarem mutuamente sem se conhecerem, se deixam despojar completamente.” (Pelos agentes de câmbio). M. J. Ducos (de Gondrin), Comment on se Ruine à la Bourse, Paris, 1858, pp. V- VI.

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[O 9, 4]

III novidade

Rey argumenta a favor das caxemiras francesas. Elas têm, entre outras vantagens, a de serem novas. Não é o caso dos xales indianos. “Preciso falar de todas as festas galantes de que elas foram testemunhas, de todas as cenas voluptuosas, para não dizer mais, em que serviram de véu? Nossas sensatas e modestas francesas ficariam um pouco mais que confusas se viessem a conhecer os antecedentes do xale que lhes traz a felicidade!” De qualquer modo, o autor não quer endossar a opinião de que todos os xales já teriam sido usados na Índia, uma afirmação que seria tão falsa como a “que pretende que o chá já tenha servido para infusão antes de sair da China.” J. Rey, Études pour Servir à l’Histoire des Châles, Paris, 1823, pp. 226-227.

[O 9a, 2]

“Inúmeras litografias galantes, publicadas nos anos trinta do século passado, apareciam simultaneamente em variações obscenas para os amantes de imagens diretamente eróticas… Ao fim dos anos trinta, estes gracejos saíram aos poucos de moda.” Eduard Fuchs, Illustrierte Sittengeschichte vom Mittelalter bis zur Gegenwart: Das bürgerliche Zeitalter, volume suplementar, Munique, p. 309.

[O 9a, 3]

Eduard Fuchs descreve “o início de um catálogo de prostitutas, com ilustrações eróticas, que deve ter sido publicado entre os anos de 1835 e 1840. O catálogo em questão compõe- se de vinte litografias eróticas coloridas, e sob cada uma delas está impresso o endereço de uma prostituta.” Entre os sete primeiros endereços do catálogo constam cinco passagens. todas elas diferentes. Eduard Fuchs, Illustrierte Sittengeschichte vom Mittelalter bis zur Gegenwart: Das bürgerliche Zeitalter, volume suplementar, Munique, p. 157.

[O 9a, 4]

Quando Engels era seguido por agentes secretos da polícia — devido a denúncias feitas por artesãos-aprendizes alemães (entre os quais sua atuação como agitador teve pouco sucesso, exceto o enfraquecimento da posição de Grün), ele escreve a Marx: “Se os indivíduos suspeitos que me seguem há quinze dias são realmente agentes espiões…, a Prefeitura de Polícia deve ter gasto nos últimos tempos muito dinheiro com a compra de entradas para os bailes Montesquieu, Valentino, Prado etc. Devo ao Sr. Delessert o conhecimento de algumas adoráveis grisettes e muito plaisir.” Cit. em Gustav Mayer, Friedrich Engels, vol. I, Friedrich Engels in seiner Frühzeit, 2e ed., Berlim, 1933, p. 252.

[O 9a, 5]

Engels descobre em 1848, durante uma viagem pelas regiões vinícolas da França, “que cada um destes vinhos provoca uma embriaguez diferente: com poucas garrafas pode-se percorrer todos os degraus intermediários entre a quadrilha de Musard e a Marselhesa, entre o prazer frenético do cancã e o ardor selvagem da febre revolucionária!” Cit. em Gustav Mayer, Friedrich Engels, vol. I, Friedrich Engels in seiner Frühzeit, Berlim, p. 319. [Cf. a 4, 1]

[O 9a, 6]

“Após o fechamento do Café de Paris, ocorrido em 1856, o Café Anglais atingiu, na época do Segundo Império, a mesma importância que teve aquele restaurante no tempo de Luís Filipe. Um alto prédio branco, com um labirinto de corredores, numerosos salões e chambres séparées, distribuídos pelos diversos andares.” S. Kracauer, Jacques Offenbach und das Paris seiner Zeit, Amsterdam, 1937, p. 332.

[O 10, 4]

“A regulamentação da jornada de trabalho … o primeiro freio racional imposto aos assassinos e frívolos caprichos da moda, incompatíveis com o sistema da grande indústria.” Nota a este respeito: “John Bellers censurava já em 1699 estes efeitos da ‘incerteza da moda’ (Essays about the Poor, Manufactures, Trade, Plantations, and Immorality, p. 9). Karl Marx, Das Kapital, ed. org. por K. Korsch, Berlim, 1932, p. 454.

[O 10, 5]

Extraído da Pétition des filles publiques de Paris à MM le Préfet de police etc., redigéee par Mlle. Pauline et apostillée par MM. les épiciers, cabaretiers, limonadiers et marchands de comestibles de la capitale...: [Petição das mulheres públicas de Paris ao Sr. Prefeito de Policia etc., redigida pela Srta. Pauline e recomendada pelos Srs. merceeiros, donos de cabaré, limonadeiros e comerciantes de comestíveis da capital]: “Nosso ofício infelizmente já é em si miserável, mas, com a concorrência de outras mulheres e senhoras distintas que não pagam impostos, deixou de produzir rendimento satisfatório. Ou será que somos muito piores porque recebemos dinheiro vivo, enquanto aquelas recebem xales de caxemira? A Carta garante a liberdade pessoal a cada um; se nossa petição não der resultado junto ao Sr. Prefeito de Polícia, nós nos dirigiremos às Câmaras. Aliás, seria melhor viver no reino de Golconda, onde as moças como nós formavam uma das quarenta e quatro divisões do povo, tendo por única obrigação dançar para o rei, serviço este que estaríamos dispostas a prestar ao Sr. Prefeito de Polícia, caso o desejasse.” Friedrich von Raumer, Briefe aus Paris und Frankreich im Jahre 1830, vol. I, Leipzig, 1831, pp. 206-207.

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[O 10, 6]

O prefaciador das Poésies de Journet fala de “oficinas para os mais diversos tipos de trabalho de agulha, onde … por 40 cêntimos por dia, — as mulheres e as jovens sem trabalho vão gastar … sua saúde. Quase todas essas infelizes são obrigadas a recorrerem ao quinto quarto da jornada de trabalho.” Jean Journet, Poésies et Chants Harmoniens, Paris (na Librairie Universelle de Joubert, Passage du Saumon, 2, e na casa do autor), junho de 1857, p. LXXI (Prefácio do editor).

[O 10a, 1]

“A Calçada da Rue des Martyrs” cita muitas legendas de Gavarni, mas em lugar algum menciona Guys, que poderia muito bem ter sido o modelo da seguinte descrição: “É um prazer vê-las andar no betume, com o vestido levemente repuxado de um lado até o joelho, de modo a deixar brilhar ao sol uma perna esbelta e vigorosa, como a de um cavalo cheia de frêmitos e impaciências adoráveis, e que termina num borzeguim de uma elegância irrepreensível! Ninguém se preocupa com a moralidade dessas pernas! … O que se quer é ir aonde elas vão.” Alfred Delvau, Les Dessous de Paris, Paris, 1860, pp. 143-144 (“Les trottoirs parisiens” — “As calçadas parisienses”).

[O 10a, 3]

Agentes de loteria: “Suas lojas têm sempre duas ou três saídas e diversos compartimentos para facilitar os negócios do jogo e da agiotagem, que se entrelaçam, e para o conforto de clientes tímidos. Não é raro marido e mulher, sem o saber, se sentarem lado a lado nas misteriosas saletas, que cada um acredita ser o único a utilizar de maneira tão astuta.” Carl Gustav Jochmann, Reliquien, ed. org. por Heinrich Zschokke, vol. II, Hechingen, 1837, p. 44 (“Die Glücksspiele” — “Os jogos de azar”).

[O 10a, 5]

Segundo Poisson em “Mémoire sur les chances que les jeux de hasard, admis dans les maisons de jeu de Paris, présentent à la banque” [Relatório sobre as oportunidades que os jogos de azar, admitidos nas casas de jogo de Paris, apresentam para o banco], texto lido na Academia de Ciências, em 1820, o movimento anual de negócios no trinta-e-um é de 230 milhões de francos (lucro do banco: 2.760.000), e na roleta, de 100 milhões de francos (lucro do banco: 5 milhões). Cf. Carl Gustav Jochmann, Reliquien, ed. org. por Heinrich Zschokke, vol. II, Hechingen, 1837, p. 51 (“Die Glücksspiele”).

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[O 10a, 7]

-II- prostituta

Sobre Froufrou, de Halévy: “Se a comédia Les filles de marbre inaugurou o império das cortesãs Froufrou indicou o fim desta época… Froufrou sucumbe sob o peso da consciência de ter disperdiçado a sua vida e, no fim, à beira da morte, se refugia junto à sua família.” S. Kracauer, Jacques Offenbach und das Paris seiner Zeit, Amsterdam, 1937, pp. 385-386. A comédia Les filles de marbre foi uma réplica à Dama das Camélias do ano precedente.

[ +++ ]

[O 11, 1]

I paixão estética

“O jogador persegue essencialmente desejos narcisistas e agressivos de onipotência. Estes — quando não são ligados diretamente a desejos eróticos — se caracterizam por um maior raio de extensão temporal. Um desejo direto de coito pode ser satisfeito mais rapidamente através do orgasmo do que o desejo narcisista-agressivo de onipotência. O fato de a sexualidade genital deixar sempre, mesmo no caso mais favorável, um resto de insatisfação, deve-se a três fatores: nem todos os desejos pré-genitais, que mais tarde se tornam tributários da genitalidade, são passíveis de satisfação através do coito; o objeto, do ponto de vista do complexo de Édipo, é sempre um sucedâneo. A estes dois fatores … soma-se … o fato de que a impossibilidade de dar vazão à imensa agressão inconsciente contribui para a insatisfação. A agressão passível de ser liberada através do coito é muito domesticada… Assim, ocorre que a ficção narcisista e agressiva da onipotência se torna uma causa de sofrimento. Por isso, quem alguma vez experimentou o mecanismo do prazer que é possível liberar no jogo de azar — e que possui, por assim dizer, um valor de eternidade — sucumbe a ele tanto mais facilmente quanto mais estiver fixado no ‘prazer neurótico contínuo’ (Pfeifer) e quanto menos integrá-lo na sexualidade normal, em conseqüência de fixações pré-genitais… Deve-se considerar também que, segundo Freud, a sexualidade do ser humano dá a impressão de uma função que se extingue, enquanto não se pode absolutamente afirmar o mesmo a respeito das tendências agressivas e narcisistas.” Edmund Bergler, “Zur Psychologie des Hasardspielers”, Imago, XXII, n° 4, 1936, pp. 438-440.

[O 11, 2]

“O jogo de azar oferece a única ocasião em que não é preciso renunciar ao princípio do prazer e à onipotência de seus pensamentos e desejos, e em que o princípio de realidade não oferece qualquer vantagem sobre o princípio do prazer. Nesta persistência na ficção infantil de onipotência reside uma agressão póstuma contra … a autoridade que ‘inculcou’ na criança o principio de realidade. Esta agressão inconsciente forma, juntamente com o exercício da onipotência dos pensamentos e a vivência socialmente aceita da exibição reprimida, uma tríade de prazer no jogo. A esta tríade de prazer opõe-se uma tríade punitiva, constituída pelo desejo inconsciente de perder, pelo desejo inconsciente de dominação homossexual e pela difamação social… No fundo, todo jogo de azar é um desejo de forçar a obtenção do amor com uma inconsciente segunda intenção masoquista. Por isso, a longo prazo, o jogador perde sempre.” Edmund Bergler, “Zur Psychologie des Hasardspielers”, Imago, XXII, n° 4, 1936, p. 440.

[O 11a, 1]

Observações sobre idéias de Ernst Simmel a respeito da psicologia do jogador: “A avidez insaciável que jamais se aplaca no infinito círculo vicioso, até que a perda se torne ganho e o ganho se torne novamente perda, teria sua origem na compulsão narcisista contida na fantasia anal relativa ao nascimento, de fecundar e dar à luz a si mesmo, substituindo e sobrepujando pai e mãe em um crescendo sem limite. ‘A paixão do jogo satisfaz, portanto, em última instância, a tendência ao ideal bissexual que o narcisista encontra em si mesmo; trata-se da formação de um compromisso entre o masculino e o feminino, o ativo e o passivo, o sadismo e o masoquismo e, finalmente, da opção ainda pendente entre a libido genital e a libido anal, na qual o jogador se debate com as conhecidas cores simbólicas — vermelho e negro. A paixão pelo jogo presta-se assim à satisfação auto-erótica, na qual o jogo é o prazer preliminar, o ganho representa o orgasmo e a perda, a ejaculação, a defecação e a castração’.” Edmund Bergler, “Zur Psychologie des Hasardspielers”, Imago, XXII, n° 4, 1936, pp. 409-410, com referência a Ernst Simmel, “Zur Psychoanalyse des Spielers”, Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse, VI, 1920, p. 397.

[O 11a, 3]

A propósito da conjetura de Freud sobre a sexualidade como uma função em extinção “do” ser humano, Brecht observou o quanto a burguesia decadente difere da classe feudal à época de seu declínio: ela se considera em tudo a quintessência do ser humano em geral, equiparando assim a sua decadência à extinção da humanidade. (Esta equiparação, aliás, pode ter seu papel na crise absolutamente evidente da sexualidade na burguesia.) A classe feudal sentia-se como uma classe à parte por seus privilégios, o que correspondia à realidade. Isto lhe permitiu mostrar em seu declínio uma certa elegância e desenvoltura.

[O 12, 2]

Uma descrição do baixo meretrício que se instalou nas zonas próximas à barrière. É da autoria de Du Camp e serviria de excelente legenda para muitas aquarelas de Guys: “Se empurramos a barreira e a porta que fecham a entrada, encontramo-nos num botequim guarnecido de mesas de mármore ou de madeira, e iluminado a gás; através das nuvens da fumaça espalhada pelos cachimbos, distinguimos removedores de entulho, operários de aterro, carroceiros, na maioria embriagados, sentados diante de um frasco de absinto, conversando com criaturas de aspecto tão grotesco quanto lamentável. Todas elas, e quase uniformemente, estão vestidas com aquele algodão vermelho tão apreciado pelas negras da África, e com o qual se fazem cortinas nos pequenos albergues de província. O que as cobre não pode ser chamado de vestido, é um blusão sem cintura e que se estufa sobre a crinolina. Exibindo os ombros ultrajosamente decotados e chegando apenas à altura dos joelhos, esta roupa lhes dá a aparência de grandes crianças velhas, inchadas, reluzindo de gordura, enrugadas, embrutecidas, e cujo crânio pontudo anuncia a imbecilidade. Elas têm a graça de um cão adestrado quando os inspetores, verificando o livro de registros, as chamam e elas se levantam para responder.” Maxime Du Camp, Paris: Ses Organes, ses Fonctions et sa Vie dans la Seconde Moitié du XIX Siècle, vol. III, Paris, 1872, p. 447 (“La prostitution”).

[O 12, 3]

“A noção … do jogo … consiste nisto: … que a partida seguinte não depende da precedente… O jogo nega energicamente toda situação adquirida, todo antecedente … que faz lembrar ações passadas e é nisto que ele se distingue do trabalho. O jogo rejeita … esse peso do passado, que é o apoio do trabalho e que constitui a seriedade, a preocupação, o planejamento do futuro, o direito, o poder… Essa idéia de recomeçar, … e de fazer melhor … acontece muitas vezes no trabalho infeliz; mas ela é … vã … e é preciso continuar às voltas com as obras mal-sucedidas.” Alain, Les Idées et les Âges, Paris, 1927, vol. I, pp. 183-184 (“Le jeu”).

[O 12a, 1]

A falta de conseqüências, que constitui o caráter da vivência, encontrou uma expressão drástica no jogo. O jogo, na época feudal, era essencialmente um privilégio da classe feudal, que não participava diretamente do processo de produção. O novo é que, no século XIX, o burguês passa a jogar. Os exércitos de Napoleão, em suas campanhas, tornaram-se os principais agentes dos jogos de azar junto à burguesia.

[O 12a, 2]

O significado do elemento temporal para a embriaguez do jogador já havia sido interpretado por Gourdon, e de um modo semelhante por Anatole France. Ambos, porém, vêem o significado do tempo para o prazer do jogador apenas em seu ganho; rapidamente conquistado ou rapidamente perdido, esse ganho se centuplica na imaginação através das inúmeras possibilidades de emprego que se abrem e, sobretudo, através da única possibilidade real: a aposta ou mise en jeu. Ora, o significado que tem o fator tempo para o próprio processo do jogo é algo que não foi discutido nem por Gourdon, nem por France. O passatempo do jogo é, de fato, algo muito singular. Um jogo é um passatempo tanto mais divertido quanto mais bruscamente surge nele o azar, quanto menor for o número ou quanto mais breve a seqüência de combinações a serem realizadas no decorrer da partida (do coup). Em outras palavras: quanto maior o elemento aleatório em um jogo, mais rápido ele transcorre. Esta circunstância torna-se decisiva quando se trata de definir o que constitui a autêntica “embriaguez” do jogador. Ela se funda na peculiaridade do jogo de azar de desafiar a presença de espirito ao fazer surgir, numa seqüência rápida, constelações que — cada uma delas independente da outra — apelam cada uma para uma reação totalmente nova e original do jogador. Este fato se manifesta no hábito dos jogadores de fazerem suas apostas, se possível, só no último instante — quando resta espaço apenas para um comportamento de puro reflexo. Tal comportamento reflexo exclui a “interpretação” do acaso. Na verdade, o jogador reage ao acaso, assim como o joelho reage ao martelo no reflexo patelar.

[O 13, 1]

O supersticioso prestará atenção a sinais, o jogador reagirá a eles antes mesmo de poder percebê-los. Ter previsto um lance de sorte, mas não tê-lo aproveitado, é um fato do qual o novato concluirá que “está em boa forma”, e que da próxima vez apenas terá que agir com maior coragem e maior rapidez. Na realidade, porém, este acontecimento é um sinal de que o reflexo motor que o acaso provoca no jogador afortunado não chegou a ser ativado. Somente quando este reflexo não é ativado, é que entra nitidamente na consciência “aquilo que está por vir”.

[O 13, 3]

A proscrição do jogo tem provavelmente sua razão mais profunda no fato de que um dom natural do ser humano que o eleva acima de si mesmo, quando voltado para objetos mais elevados, é voltado para um dos objetos mais vis, o dinheiro, rebaixando assim o homem. O dom de que se trata é a presença de espírito. Sua manifestação suprema é a leitura, que, em ambos os casos, é divinatória.

[O 13, 4]

O sentimento particular de felicidade do ganhador é caracterizado pelo fato de que dinheiro e bens, que costumam ser as coisas mais maciças e mais pesadas do mundo, chegam-lhe através do destino como um abraço feliz plenamente retribuído. Elas podem ser comparadas ao testemunho de amor de uma mulher plenamente satisfeita pelo homem. Jogadores são tipos aos quais não é dado satisfazer a mulher. Não seria Don Juan um jogador?

[O 13, 5]

“No tempo do otimismo fácil que se expandia pela pena de um Alfred Capus, era costume no boulevard atribuir tudo à sorte.” Gaston Rageot, “Qu’est-ce qu’un événement?” [O que é um acontecimento] (Le Temps, 16 abr. 1939). — A aposta é uma forma de atribuir aos acontecimentos um caráter de choque, de destacá-los dos contextos da experiência. Não por acaso que se aposta nos resultados de eleições, na eclosão da guerra etc. Para a burguesia, em particular, os acontecimentos políticos assumem facilmente a forma de partidas realizadas na mesa de jogo. Esse não é bem o caso para o proletário. Ele está mais predisposto a reconhecer as constantes no acontecimento político.

[O 13a, 1]

O cemitério Des Innocents como zona de meretrício: “Este lugar foi … para os parisienses do século XV uma espécie de melancólico Palais-Royal de 1789. Em meio aos contínuos sepultamentos e exumações, existia ali um passeio público que era ponto de encontro. Havia pequenas lojas junto aos ossários, e mulheres fáceis sob as arcadas.” J. Huizinga. Herbst des Mittelalters, Munique, 1928, p. 210.

[O 13a, 4]

A máxima de Gracián — “Saiba, em todas as coisas, ter o tempo a seu lado” — não será compreendida melhor e com maior gratidão por ninguém do que por aquele que teve satisfeito um desejo acalentado por longo tempo. Compara-se a isto a magnífica definição dada a este tempo por Joubert. Ela determina o tempo do jogador per contrarium: “Há tempo até mesmo na eternidade, mas não é um tempo terrestre e mundano… Ele não destrói nada, ele completa.” J. Joubert, Pensées, vol. II, Paris, 1883, p. 162.

[O 13a, 5]

Sobre o elemento heróico no jogo, algo como um corolário para “Le jeu”, de Baudelaire: “Uma consideração que costumo fazer nas mesas de jogo…: Se acumulássemos toda a força e a paixão, desperdiçadas a cada ano nas mesas de jogo da Europa – seria isto suficiente para formar um povo romano e uma história romana? Mas é justamente isto! Como todo homem nasce como um romano, a sociedade burguesa procura desromanizá-lo, e por isso foram introduzidos os jogos de azar e de salão, os romances, as óperas italianas e os jornais elegantes, os cassinos, as rodas de chá e as loterias, os anos de aprendizagem e de andanças, os desfiles de guarnições e as trocas de guarda, as cerimônias e as recepções, e as quinze ou vinte bem ajustadas peças de vestuário que temos que vestir e despir diariamente com salutar perda de tempo – tudo isto para que a força supérflua possa se esvair imperceptivelmente!” Ludwig Börne, Gesammelte Schriften, vol. III, Hamburgo-Frankfurt a. M., 1862, pp. 38-39 (“Das Gastmahl der Spieler” – “O banquete dos jogadores”).

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[O 14, 1]

“Mas você compreende tudo o que haverá de delírio e vigor na alma de um homem que espera com impaciência a abertura de um antro de jogo? Entre o jogador da manhã e o jogador da noite existe a diferença que distingue o marido relaxado do amante arrebatado sob a janela de sua adorada. É somente pela manhã que chegam a paixão palpitante e a necessidade no seu franco horror. Nesse momento, você pode admirar um verdadeiro jogador, um jogador que não comeu, não dormiu, não viveu, nem pensou, tão brutalmente flagelado que foi pelo chicote de seu palpite… Nessa hora maldita, você encontrará olhos cuja calma assusta, rostos que fascinam, olhares que levantam as cartas e as devoram. Assim, as casas de jogo são sublimes somente na hora em que se abrem.” Balzac, La Peau de Chagrin, Paris, rd. Flammarion, p. 7.