[S 1a, 2]

III novidade

“Se guardamos da história apenas os fatos mais gerais, os que se prestam aos paralelos e às teorias, basta — como dizia Schopenhauer — conferir com Heródoto o jornal da manhã: tudo o que ocorre no intervalo, repetição evidente e fatal dos fatos mais longínquos e dos fatos mais recentes, torna-se inútil e fastidioso.” Rémyv de Gourmont, Le II Livre des Masques, Paris, 1924, p. 259. A passagem não é muito clara. Ao pé da letra, dever-se-ia supor que a repetição no decurso histórico refere-se tanto aos grandes fatos quanto aos pequenos. Porém, o autor provavelmente se refere apenas aos primeiros. É preciso mostrar, em vez disso, que é justamente nos detalhes do que ocorre no intervalo que se manifesta o eternamente igual.

[S 1a, 3]

As construções da história são comparáveis a ordens militares que cerceiam a verdadeira vida e a confinam em quartéis. Por outro lado, temos a anedota como uma insurreição nas ruas. A anedota aproxima as coisas espacialmente de nós, faz com que entrem em nossa vida. Ela representa a rigorosa oposição à história que exige a “empatia”, que torna tudo abstrato. A mesma técnica da proximidade deve ser usada em relação às épocas, à maneira dos calendários. Imaginemos que um homem morra exatamente ao completar cinqüenta anos, no dia do nascimento de seu filho, a quem ocorrerá o mesmo etc. Se iniciarmos esta corrente na época do nascimento de Cristo, resulta daí o seguinte: desde o início de nossa era, não viveram mais do que umas quarenta pessoas. Desta forma, quando se aplica ao decurso histórico um critério adequado, uma escala que lhe seja adequada, comensurável à vida humana, a sua imagem se transforma inteiramente. Este páthos da proximidade, o ódio contra a configuração abstrata da história em “épocas”, animou os grandes céticos, como Anatole France.

[S 1a, 4]

Nunca houve uma época que não se sentisse “moderna” no sentido excêntrico, e que não tivesse o sentimento de se encontrar à beira de um abismo. A consciência desesperadamente lúcida de estar em meio a uma crise decisiva é crônica na história da humanidade. Cada época se sente irremediavelmente nova. O “moderno”, porém, é tão variado como os variados aspectos de um mesmo caleidoscópio.

[S 1a, 5]

Correlação entre a intenção da colportagem e a intenção teológica mais profunda. Ela a reflete de maneira turva, desloca para o espaço da contemplação aquilo que é válido apenas no espaço da vida justa. Ou seja: que o mundo é sempre o mesmo (que todos os acontecimentos poderiam ter ocorrido no mesmo espaço). No plano teórico, apesar de tudo (apesar da aguda intuição que ela encerra), esta é uma verdade esgotada e murcha. Mas ela encontra sua confirmação suprema na existência do homem religioso, para quem todas as coisas estão a serviço do bem supremo — como aqui o espaço está a serviço de tudo o que passou. Assim, o elemento teológico penetrou de maneira profunda no domínio da colportagem. Pode-se até mesmo dizer que as verdades mais profundas, longe de serem provenientes do lado obtuso e animal do homem, possuem a força poderosa de adaptar-se ainda à obtusidade e à vulgaridade, de refletir-se à sua maneira em sonhos irresponsáveis.

[S 1a, 8]

Cada época acredita ser irremediavelmente moderna — mas também cada uma delas tem direito de ser assim considerada. Contudo, o que se deve compreender por irremediavelmente moderno depreende-se muito claramente da seguinte frase: “Talvez nossos descendentes delimitem como o segundo grande período de toda a história depois de Cristo o que se inicia com a Revolução Francesa e a passagem do século XVIII ao XIX, e reúnam no primeiro período o desenvolvimento de todo o mundo cristão, inclusive a Reforma.” Em outro trecho, fala-se de “um grande período que marca um corte profundo na história do mundo, como qualquer outro, sem nenhum fundador de religião, sem reformadores e sem legisladores”. (Julius Meyer, Geschichte der modernen französischen Malerei, Leipzig, 186—. pp. 22 e 21). Segundo o autor, a história se expande sem cessar. Na realidade, isto é conseqüência do fato de que a indústria confere à história um caráter verdadeiramente epocal. O sentimento de uma transformação epocal surgida com o século XIX não foi privilégio de Hegel e de Marx.