[fr 44]

[ +++ ]

[fr 45]

PSICOLOGIA

Um dogma fundamental da ciência atual é que a verdade, sobre todo e qualquer campo restrito, deveria ser averiguada (especialização). A verdade, finalmente, resultaria de sua própria mecânica, através da restrição máxima do campo, tal como se fosse desencadeada nos centros vitais pela contração do movimento exterior. Todavia certas restrições seriam hostis à verdade, e é numa tal restrição e definição mentirosas do campo que, por exemplo, se fundamenta a psicologia. Reza uma de suas hipóteses, em cada uma de suas formas: o ser humano é reconhecido pela abstração de sua determinação moral. Esta afirmação, que se faz tão aparente, é falsa.

Toda psicologia atual, e todo modo de pesquisa que pode se sentir tentado a adotar o seu nome, conduz seus pressupostos epistemológicos ou filosóficos gerais ao infundado. No fim das contas, ela enfatiza a seguinte questão: como surgem nos seres humanos as atitudes anímicas? Esta questão é duplamente falsa. Em primeiro lugar não há atitude anímica que signifique algo essencialmente diferente do fundamento corporal ou essencialmente diferente apenas em sua aparência. A alegada diferença de que a vida anímica alheia, em contraste com a nossa própria, nos é dada apenas indiretamente, através da interpretação da corporalidade alheia, não se sustenta. A vida anímica alheia bem como a nossa própria nos é dada diretamente, embora dada sempre a cada vez em uma relação determinada ou ao menos sobre um determinado fundamento da corporalidade. A vida anímica alheia, a princípio, não é percebida diferentemente da vida anímica própria, ela não é deduzida, mas vista no corporal, como pertence a ele a vida anímica. Somente os graus de manifestação diferem do corporal. Por conseguinte é objeto da psicologia não o mundo da autopercepção, mas um mundo perceptivo liberado, e não apenas este. Por assim dizer, a psicologia (mesmo quando esta é definitivamente uma categoria epistemológica) é uma ciência descritiva, não explicativa. A percepção que nela é descrita é pura e simplesmente a percepção (apocalíptica) dos seres humanos; daquilo que restou nos seres humanos, depois da catástrofe moral, depois da conversão e da ablução. Isto não é o “interior” <–> interior é apenas a moral (e esta frase é obviamente uma metáfora) <–>, mas algo exterior: sua percepção, que ele entrega aos outros. Mas esta só é pura, exterior, completamente perceptível e, por conseguinte, completamente percepção após a restituição moral dos seres humanos. Sendo assim é a moral o pressuposto da psicologia, a construção da pessoa pura implica necessariamente a doutrina da purificação.

A relação da forma humana com a linguagem, ou seja, como Deus linguisticamente produz nela a sua formação, é o objeto da psicologia. Isto também inclui o corporal, quando Deus age linguisticamente de modo direto – e talvez incompreensível – nela.

“O que percorreu desorientada a alma desperta
Já fora a pura aparência da minha terra.”

Já que a linguagem é o cânon da percepção e o humanamente perceptível o objeto da psicologia, a relação da forma humana com a linguagem é o objeto da psicologia. Enquanto persistir a problemática moral, isto permanecerá oculto. (Quando eu falo com uma pessoa e há em mim uma crescente dúvida sobre ela, sua imagem turva-se, eu ainda posso vê-la, mas já não posso mais percebê-la).

[ +++ ]

[fr 47]

DOIS CASAIS são elementos, dois amigos, os líderes da comunidade.

A amizade pertence à ordem da solidão do destino. Na anarquia. – Só aí tem ela a sua essência segundo a posição dominante. Amizade e amor não diferem em si mesmos, apenas em sua posição para a comunidade. E, além disso, não há naturalmente nenhum sacramento transferido da amizade à ordem divina. Isto é o inaudito, o que torna a amizade perigosa: uma relação determinada livre de sacramento.

A sociedade moderna de modo algum conhece a amizade, ela é própria do helenismo, no qual o gênio alcançou a forma histórica mais pura. A amizade também desempenha um papel importante na mitologia do gênio. Ela desempenha um papel no judaísmo?

O que hoje é chamado amizade não merece este nome. Ela teria que sucumbir ao parâmetro pseudo-religioso atual (mas também ao religioso?).

Como amizade e amor se confrontam na ordem do gênio?

SOBRE O MATRIMÔNIO

Eros, o amor, possui a única direção para a morte comum dos amantes. Ele se desenrola como o fio num labirinto que tem seu centro na “câmara da morte”. Só aí sobrevém ao amor a realidade do gênero, onde a própria agonia se tornaria a luta do amor. Em contrapartida, o genérico em si mesmo escapa à morte própria e à vida própria, e chama às cegas a morte alheia e a vida alheia nesta evasão. Ele se dirige para o nada nessa desgraça, onde a vida é apenas uma não-morte e a morte é apenas uma não-vida. Assim deve o barco do amor passar entre a Cila da morte e a Caríbdis da desgraça, e isso nunca seria possível se Deus, nesse ponto de seu trajeto, não o torna-se indestrutível. Pois como a sexualidade do amor vindouro é completamente estranha, a do amor presente deve ser completamente singular. Ela jamais é a condição de seu ser e sempre a sua duração mundana. Mas Deus, no sacramento do matrimônio, torna o amor <imune> ao perigo da sexualidade e da morte. O perigo da sexualidade é que ela, nomeadamente, destaca o casal ou, mais precisamente, ela simplesmente o destaca para responsabilizá-lo, uma vez que a pessoa é incapaz de se responsabilizar por seus instintos e, além disso, jamais é responsável pelo que estes determinam. Mas somente o Deus da responsabilidade, no matrimônio, é a favor da sexualidade do casal, e assim o é por toda parte, exceto o próprio perigo desmedido da sexualidade, que faz parte da vida e que, por si só, conduz através da senda da ascese apenas os devotos.

(O que se diferencia nessa transformação misteriosa do amor através do sacramento é o feminino.)

[ +++ ]

[fr 49]

MORTE

O indivíduo morre, ou seja, ocorre uma dispersão; o indivíduo é uma unidade indivisível, porém inacabada; a morte é, no campo da individualidade, apenas um movimento (movimento ondulatório). A vida histórica perece sempre em algum lugar; mas é imortal no todo. O conjunto aparente não depende do indivíduo (coeso). Com efeito, esta é a intenção verdadeira da reencarnação<.>

A persona será petrificada<.> Velhice.

Lealdade conserva apenas a persona<.>

A pessoa estará livre<.>

O corpo vivo perece, rompido como manômetro, que é explodido no instante de maior tensão e, com o despedaçamento da ligação, torna-se caduco, supérfluo.

[ +++ ]

[fr 51]

SOBRE AMOR E PARENTESCO. (UM PROBLEMA EUROPEU)

(Sobre o matrimônio v. em outro caderno <fr 47>) Esta época participa da consumação de uma das revoluções mais poderosas já realizadas nas relações de gênero. Somente o saber proveniente destes acontecimentos nos permite atualmente lidar com o erotismo e a sexualidade; por que, neste caso, é imperativa a compreensão de que as formas seculares, e com isso igualmente o antigo conhecimento da relação de gênero, deixaram de ser válidos. Nada obstrui tão poderosamente esta compreensão como o argumento da imutabilidade dessa relação, em suas camadas mais profundas; o erro de que das transformações, da história, seriam afetadas apenas as formas efêmeras, as modas eróticas, visto que o mais profundo e o pretenso fundamento imutável, entre eles o domínio, seriam as leis eternas da natureza. Mas como só se pressente e não se sabe a amplitude para estas questões, como as revoluções na natureza são o mais poderoso testemunho da história? É provável que em todo o mundo pré-apocalíptico resida um sedimento e fundamento primeiro da vida imutável, porém isto é infinitamente mais profundo do que o pressente a fraseologia banal quando disserta sobre a eterna luta dos sexos. Esta luta pode até pertencer à existência eterna, mas certamente não às suas formas. Mas o que ela provavelmente sempre inflama e inflamará é a mulher determinada pelo erotismo e pela sexualidade, que parece natural devido à ocultação mais triste, onde o homem não é capaz de reconhecê-la, num amor criativo sem igual, como algo sobrenatural. E constantemente se inflama a partir desta sua incapacidade de luta, se as formas históricas de tal criação, como ainda hoje, estiverem mortas. Como então o homem europeu parece incapaz de confrontar essa unidade do ser feminino, que todos os sentinelas e reformadores de seu gênero praticamente compelem ao horror, na medida em que <permanecem> fechados a percepção da origem superior desse ser, onde eles não a vêem como sobrenatural, evidentemente, devem sentir às cegas e fugir. E, precisamente sob esta cegueira do homem, atrofia-se a vida sobrenatural da mulher ao natural e, como tal, igualmente ao não-natural. Pois só esta corresponde à decomposição singular que atualmente é capaz de capturar o feminino, pelos instintos primitivos do homem, apenas sob as imagens simultâneas da prostituta e da amante intocada. Mas essa intocabilidade lhe é estabelecida tão pouco como anímico imediato como quanto baixo desejo, como também é, em essência, instintiva e agressiva, de modo que – se hoje como outrora o maior símbolo válido para a duração terrena do amor, a única noite de amor é anterior a morte – esta, como outrora a noite das posses tornou-se hoje a noite da impotência e da resignação, a vivência clássica e válida do amor da nova geração – quem sabe por quantas gerações mais? Mas as duas coisas, impotência como desejo, um novo e inaudito caminho do homem, para o qual o velho caminho é deslocado por meio da posse da mulher para o conhecimento, e que a nova busca chega por meio deste conhecimento a sua posse. Mas: similia a similibus cognoscentes. Assim o homem procura se assemelhar a mulher, igualando-se a ela. E aqui se instala a desmedida e, num sentido mais profundo, a quase sistemática metamorfose do masculino, uma das maiores, provavelmente a maior delas: a metamorfose da sexualidade masculina em feminina por meio da passagem pelo medium espiritual. Agora é Adão quem viola a maçã, mas ele é igual à Eva. A antiga serpente pode desaparecer e novamente no jardim purificado do Éden nada resta como a questão se ele é o paraíso ou o inferno.

O olhar se perde na escuridão daquela grande metamorfose da corrente da physis humana, num futuro que provavelmente é estabelecido, que nenhum profeta penetrou, mas que será conquistado pelos mais pacientes. Aqui flui a corrente escura que hoje, para o mais nobre, pode ser a sepultura predeterminada. Mas, acima de tudo, conduz o espírito como a única ponte que ele atravessa e onde a vida, em sua carruagem triunfal, será transcendida, em cuja linha de frente só os escravos permanecerão salvos.

[ +++ ]

[fr 55]

APRENDIZAGEM E PRÁTICA

Essa questão, bem como algumas indicações valiosas para ela, eu agradeço ao senhor Dr. <Karl> Mannheim.

Aprendizagem é a forma da tradição, da vida espiritual da totalidade

Prática é a forma da experiência, da vida espiritual do individual

Aprendizagem possui continuidade (continuidade relativa do progresso)

Prática é inconstante (o progresso se realiza aos trancos, de súbito)

O exercício é encontrado em toda parte onde o indivíduo – mesmo como fundamento da instrução – procura a própria experiência: no erotismo religioso, na ascese mística (indiana-neoplatônica) Na prática, o indivíduo não afirma a sua responsabilidade, mas sim segundo suas próprias capacidades. Essa atitude, entretanto, é inadmissível na camada superior da existência na qual, segundo as suas capacidades, apenas o povo – o “escolhido” – deve se afirmar. Por isso a tendência ilimitada da ascese no supremo pagão. Vauvernagues diz com razão (nas máximas) “Les choses que l’on sait le mieux sont celles qu’on n’a pas apprises” – há todavia uma disponibilidade de conhecimentos que não pertencem mais às pessoas no tempo sobrenatural. O exercício – ou seu desenvolvimento extremo com as mais supremas finalidades, a ascese – não tem como meta, nomeadamente, o conhecimento, mas dispõe da capacidade para tal; ele não pode ser completamente sem conhecimento, mas não quer estar acima de seus bens, mas de seu entendimento. No entanto a pessoa, diante de Deus, deve compreender e nada mais, e se o conhecimento persiste diante disso, conta apenas como a incumbência da comunidade para com o indivíduo. O bem íntimo vem da aprendizagem; o extremo, da prática.

[ +++ ]

[fr 56]

ESQUEMAS DO PROBLEMA PSICOFÍSICO

I. Espírito e corpo vivo

Eles são idênticos apenas como abordagens, não como objetos. A zona de sua identidade designa o termo “forma”. Em cada estágio de sua existência, o espírito-corporal é a forma do histórico, portanto a espírito-corporalidade é de alguma maneira a categoria de seu “instante”, sua manifestação momentânea como perecível-imperecível. Corpo vivo e espírito, com o sentido idêntico de corpo vivo, são então as supremas categorias de forma do acontecimento do mundo, mas não a categoria de seu conteúdo eterno, como faz dela a abordagem da escola georgiana. Nosso corpo vivo não é assim um processo histórico implicado em si, mas apenas o estar-nele respectivo, sua modificação de forma em forma não é função do acontecimento histórico em si, mas da respectiva relação abstrata de uma vida sobre este. Assim um corpo vivo pode se tornar real para todos, porém não como o substrato ou a substância de seu ser mais íntimo, como é o corpo material, mas sim como um fenômeno na exposição de seu “instante” histórico. Talvez seja mais conveniente chamar o espírito encarnado de “engenho”.

Em geral, podemos dizer: todo real é forma contanto que ele seja considerado no modo de seu processo histórico, que é significativo para o todo tal como para seu “instante”, alojado no âmago de seu presente temporal. Toda forma desse tipo pode se manifestar em dois modos idênticos, que talvez estejam em uma relação polar: como engenho e como corpo vivo.

II. Espírito e corpo material

Enquanto corpo vivo e engenho podem se tornar real para todos a partir de sua relação presente com o processo histórico (e não apenas com Deus), o corpo material, e o espírito que lhe pertence, são fundados pura e simplesmente na existência, não na relação. O corpo material é uma entre as realidades que estão no próprio processo histórico. Como ele se difere do corpo vivo poderá ser ilustrado, por ora, pelo exemplo do ser humano. Tudo que a pessoa tem de si mesma como algo da percepção formal, que aparece na sua totalidade bem como em membros e órgãos, contanto que lhe seja plasmado, pertence ao seu corpo vivo. Todas as limitações que ela percebe em si mesma, sensualmente, pertencem igualmente a esta forma. Disso resulta que a existência única da pessoa percebida sensualmente é a percepção de uma relação na qual ela se encontra, mas não a percepção de um substrato, de uma substância própria, tal como o corpo material representa sensualmente. Pelo contrário, isto se manifesta numa dupla polaridade peculiar: como prazer e como dor. Em ambos não é percebida nenhuma forma, nenhuma limitação. Portanto, se nós tomamos conhecimento sobre nosso corpo material, apenas ou principalmente, através do prazer e da dor, então não conhecemos nenhuma limitação dele. Neste ponto é necessário tê-los em mente, sob as modificações da consciência do eu, já que tal limitação é tão estranha quanto os estados de prazer e dor que, em seu mais alto desenvolvimento, constituem a embriaguez. Esses estados são inicialmente os da percepção. Embora com diferenças de graus. A percepção visual, em contraste com a percepção gustativa, mais centripetamente dirigida, e especialmente com a percepção tátil, que poderíamos chamar formalmente centrífuga, é provavelmente aquela criada de forma mais ilimitada. A percepção visual mostra o corpo material, quando não ilimitado, ainda no limite amorfo e vacilante.

De maneira geral, pode-se então dizer: pelo que sabemos da percepção, sabemos do nosso corpo material que, em contraste com nosso corpo vivo, se estende sem limite formal determinado. Então, na verdade, este corpo material não é o substrato último de nosso ser, mas, todavia, a substância para a distinção do corpo vivo, do qual é apenas função. No sentido mais profundo, o corpo material é objetivo e por isso deve ser localizado, mais ainda do que no esclarecimento do engenho idêntico ao corpo vivo, na clarificação da “natureza” espiritual do ser vivente, que está ligada ao corpo material e presa a ele. Aqui a dificuldade está no fato de que a natureza é afirmada como pertencente ao corpo material, porém novamente indicando enfaticamente a limitação e o pormenor dos seres viventes. Essa realidade limitada, que é constituída através da fundação de uma natureza espiritual em um corpo material, chama-se a persona. De fato a persona está agora limitada, mas não formada. Portanto ela tem sua singularidade que, decerto, pode se atribuir um sentido seguro, mas não proveniente de si própria, porém da amplitude de sua extensão máxima. Assim é ao mesmo tempo com sua natureza e seu corpo material: eles não estão limitados de modo estruturado, mas ainda limitados através de um máximo de interpretação <sic>, o povo.

III. Corpo vivo e corpo material

A pessoa pertence ao corpo vivo e ao corpo material em conexões universais. Com um e outro, no entanto, de maneiras muito diversas: com o corpo vivo da humanidade, com o corpo material de Deus. Ambos os limites para com a natureza são precários, ambos os incrementos determinaram aqui o acontecimento do mundo a partir de seus fundamentos mais profundos. O corpo vivo, a função do presente histórico nos seres humanos, cresce para o corpo vivo da humanidade. A “individualidade” como princípio do corpo vivo é maior do que as individualidades corporais singulares. A humanidade como individualidade é a conclusão e simultaneamente o declínio da vida corporal. Declínio: porque com ele se alcança aquela vida histórica, cuja função do corpo vivo é o seu fim. Nesta vida do corpo vivo da humanidade e, portanto, neste declínio e nesta realização, pode a humanidade, excetuada a totalidade dos vivos, ainda que parcialmente, abranger a natureza através da técnica: objetos inanimados, plantas e animais, na qual se forma a unidade de suas vidas. Por fim pertence a sua vida, aos seus membros, tudo o que serve a sua felicidade.

A natureza corporal vai contra a sua dissolução, em comparação com a ressurreição de sua corporeidade. Do mesmo modo, sobre esta se encontra o momento decisivo na pessoa. O corpo material é para a pessoa a chancela de sua solidão e ela não vai se partir – nem mesmo na morte – visto que esta solidão não é nada mais que a consciência de sua dependência direta de Deus. O que, para cada pessoa, no âmbito de sua percepção, de suas dores e de seu prazer máximo, é salvo com ela na ressurreição. (Este prazer máximo não tem, obviamente, nada a ver com a felicidade) Dor é regida, prazer é avaliado <?> princípio do corpo material.

Portanto há na história natural os dois grandes decursos: dissolução e ressurreição.

IV. Espírito e sexualidade/Natureza e corpo material

Espírito e sexualidade são as forças potenciais polares da “natureza” dos seres humanos. A natureza não é algo que pertence especialmente a cada corpo material singular. De fato, na sua relação com a singularidade do corpo material, ela é comparável com a relação das correntes do oceano com as gotas d’água individuais. Um sem número destas gotas é tomado da mesma corrente. Assim é também a natureza, embora não em todas, mas respectivamente em muitíssimas pessoas, a mesma. E no verdadeiro sentido de mesma e idêntica, não apenas igual. Ela não é constante, mas sua corrente muda com os séculos e, ao mesmo tempo, sempre será encontrado um número maior ou menor de tais correntes. Sexualidade e espírito são os dois pólos vitais dessa vida natural que flui para o corpo material e nele se diferencia. Assim é o espírito, bem como a sexualidade na origem, algo de natural e aparecerá no transcurso como um corpóreo. O conteúdo de uma vida depende do quanto o vivente consegue manifestar corporeamente sua natureza. A decadência completa do ideal da corporeidade, como experimenta o mundo ocidental atual, permanece como o último instrumento para sua renovação, o tormento da natureza, que na vida já não mais se deixa apreender e corre irrefreavelmente, em correntes selvagens, sobre o corpo material. A própria natureza é totalidade e o movimento descendente no insondável da vitalidade total é destino. O movimento ascendente a partir deste insondável é arte. Mas porque a vitalidade total na arte tem o seu efeito redentor singular, qualquer outra forma de expressão conduz ao aniquilamento. A representação da vitalidade total na vida deixa o destino desembocar na loucura. Porque toda reatividade vital está ligada a diferenciação, seu instrumento mais nobre é o corpo material. Esta sua determinação é reconhecida como essencial. O corpo material como instrumento de diferenciação das reações vitais, e apenas ele, é simultaneamente a sua vitalidade psíquica a ser apreendida. Toda vivacidade psíquica localiza-se nele de maneira diferenciada, mais ou menos como a antiga antroposofia empreendia na analogia do corpo material com o macrocosmo. O corpo material tem, na percepção, uma das determinações mais importantes da diferenciação; a zona das percepções também mostra mais claramente a variabilidade que ele está sujeito como função da natureza. Altera-se a natureza, então se altera as percepções do corpo material.

O corpo material é um instrumento moral. Ele é criado para o cumprimento do mandamento. Logo, ele foi instituído pela criação. Mesmo as suas percepções denotam o quanto subtrai ou traslada nelas seu dever.

V. Prazer e dor

Na diferença física entre prazer e dor está contida sua leitura metafísica. Sob esta diferença física resta, por fim, duas como elementares e irredutíveis. Do ponto de vista do prazer, seu caráter fulminante e uniforme o diferencia da dor; do ponto de vista desta, seu caráter crônico e diverso a diferencia do prazer. Somente a dor, mas nunca o prazer, pode se tornar o sentimento concomitante crônico dos processos orgânicos constantes. Só ela, nunca o prazer, é capaz da diferenciação extrema conforme a natureza dos órgãos, da qual ela provém. Isto está implícito na língua que, no alemão, para o máximo de prazer só são conhecidos os superlativos de Süßen [doçura] ou de Wonne [delícia], dos quais, na verdade, apenas o primeiro é acertada e inequivocamente sensual. Por conseguinte, o sentido mais baixo, o paladar, empresta a designação de sua sensação orgânica positiva para a expressão de todo o prazer sensual. Completamente diferente das designações da dor. Nas palavras: Schmerz [dor], Weh [mágoa], Qual [martírio], Leiden [sofrimento] está por toda a parte mais claramente pronunciado que – o que para o prazer, no campo da designação linguística, apenas aproximadamente está implícito na palavra “Wonne” [delícia] –, na dor, a ausência de toda e qualquer metáfora é diretamente afetada pelo simbólico, o anímico. Talvez seja justamente relacionado a isto que os sentimentos de dor são em grande medida incomparáveis como os sentimentos de prazer genuínos, portanto não são capazes apenas de uma variabilidade moderada de grau. Mas certamente existe uma ligação entre este valor inquebrantável do sentimento de dor para a essência integral da humanidade e sua capacidade de permanência. E esta permanência, por sua vez, conduz diretamente ao campo daquelas diferenças físicas exatamente correspondentes, e as diferenças metafísicas desses dois sentimentos as esclarecem. Apenas o sentimento de dor é capaz, nomeadamente, tanto no físico como no metafísico, da realização ininterrupta de um tratamento temático. A essência da pessoa é o instrumento perfeito da dor; apenas no sofrimento humano a dor chega a sua mais pura e adequada manifestação, apenas na vida humana ela deságua. Somente a dor, de todos os sentimentos do corpo material, é para a pessoa como um rio navegável que jamais se esgota a água, que a conduz para o mar. O prazer se mostra por toda parte onde a pessoa aspira a lhe dar sequência, como um beco sem saída. Na verdade, ele é apenas um presságio de um outro mundo, não como a dor, uma ligação entre os mundos. Portanto o prazer orgânico é intermitente, enquanto que a dor pode se tornar permanente.

Esta relação de prazer e dor está ligada ao fato de que, para o conhecimento essencial de uma pessoa, o motivo de sua maior dor é indiferente, no entanto o motivo de seu maior prazer é muito importante. Pois toda dor, mesmo a dor vã, se deixa levar até o extremo religioso, mas o prazer não é capaz de nenhum refinamento e tem sua nobreza inteira isolada da graça de seu nascimento, dirá o seu motivo.

VI. Proximidade e distância

Estas são duas relações espaciais que, na construção e na vida do corpo material, podem ser semelhantes à determinação como outros espaciais (acima e abaixo, direita e esquerda, etc.). Mas elas emergem principalmente na vida de Eros e da sexualidade. A vida de Eros se inflama pela distância. Por outro lado há um parentesco entre proximidade e sexualidade. – Sobre a distância seria possível comparar com as investigações do sonho de Klages. Ainda mais desconhecido que o efeito da distância nas relações corpóreas é o da proximidade. Os fenômenos relacionados podem ter sido repudiados e degradados a milhares de anos. – Além disso, por exemplo, subsiste uma relação precisa entre estupidez e proximidade: no fim das contas, a estupidez provém da contemplação próxima das idéias [A vaca em frente ao novo portão]. Mas precisamente esta demasiada contemplação (estúpida) próxima das idéias é uma fonte de beleza (não intermitente) permanente. Assim procede a relação entre a estupidez e a beleza.

Literatura
<Ludwig> Klages: Vom Traumbewußtsein Ztschr. für Pathopsychologie III Bd 4 Heft 1919 (ver mais estes)
<idem> Geist und Seele Deutsche Psychologie Bd I Heft 5 u Bd II Heft 6
<idem> Vom Wesen des Bewußtseins (J. A. Barth)
<idem> Mensch und Erde (Georg Müller)
<idem> Vom kosmogonischen Eros (Georg Müller)

VI. Proximidade e distância (continuação)

Quanto menos um homem é constrangido pelos laços do destino, menos o próximo o determina, seja através de circunstâncias, seja através das pessoas. Pelo contrário, tal pessoa livre tem sua proximidade própria; é ela quem a determina. A determinação própria de sua vida fatídica, pelo contrário, vem a ela da distância. Ela não regateia “considerando” o que está por vir, como se a ultrapassasse; mas com “cautela” para com o distante, ao qual ela se conforma. Eis porque é o questionamento das estrelas – mesmo entendido alegoricamente – plenamente fundamentado, como a especulação em torno do porvir. Por que o longínquo, que determina a pessoa, deve ser a própria natureza e quanto mais indivisa esta atua tanto mais pura é aquela. Por conseguinte a natureza pode, com seus menores presságios, assustar o neurótico, guiar com as estrelas os demoníacos, assim ela determina, com suas mais profundas harmonias – e apenas através destas – somente os devotos. Todos eles, não em suas ações mas sim em suas vidas, que por si só pode sim ser fatal. E aqui, mas não no campo da ação, está a liberdade em seu lugar. Justamente seu poder dispensa o vivente da determinação através do devir natural singular e permite a ele ser guiado pela existência da natureza que lhe é própria. Mas é conduzido como um dormidor. E a pessoa perfeita, sozinha em tais sonhos, a partir dos quais ela não desperta na vida. Pois quanto mais perfeita é a pessoa, tanto mais profundo é este sono – tanto mais constante e mais limitado ao fundamento originário de seu ser. Um sono, portanto, que não vem pelo ruído do próximo e nem através da voz de seus sonhos contemporâneos, no qual serão inquiridos a rebentação, os ambientes e o vento. Este mar de sono no solo profundo de toda natureza humana tem a preamar durante a noite: cada soneca apenas significa que ele banhou uma praia, a partir da qual ele se retira do tempo desperto. O que permanece: os sonhos são – como prodigiosamente formados – apenas o morto desde o regaço dessas profundezas. O vivente permanece protegido nele e sobre ele: o barco da vida desperta e os peixes como presas mudas nas redes do artista.

Assim é o mar, símbolo da natureza humana. Como sono – no mais profundo sentido figurado – traz o barco da vida com sua correnteza, que é conduzido pelo vento e pelas estrelas, como soneca no sentido próprio, ergue-se durante a noite como a maré contra a praia da vida, na qual ela devolve os sonhos.

A propósito, proximidade [e distância?] são para o sonho não menos decisivas que para o erótico. Não obstante, porém, de modo atenuado, deteriorado. A essência dessa diferença estaria ainda por ser localizada. Em si, a proximidade extrema certamente se realiza no sonho; e – talvez! – também a distância extrema?

Quanto ao problema da realidade do sonho, deve ser averiguado: a determinação da relação do mundo do sonho com o mundo da vigília, ou seja, o mundo real, é estritamente distinta da análise de sua relação com o mundo verdadeiro. Na verdade, ou no “mundo verdadeiro”, sonho e vigília já não existem mais como tal; eles podem ser mais do que símbolos de sua representação. Pois no mundo da verdade, o mundo da percepção perdeu a sua realidade. Sim, talvez o mundo da verdade não seja de maneira alguma o mundo de algum tipo de consciência. Com isso deve ser dito: o problema da relação do sonho com a vigília não é nenhuma “teoria do conhecimento”, mas uma “teoria da percepção”. As percepções não podem ser verdadeiras ou falsas, mas são problemáticas apenas em termos da competência de seu teor de significação. O sistema de tais competências possíveis, de modo geral, é a natureza da pessoa. Portanto o problema aqui é o que diz respeito, na natureza da pessoa, ao teor de significação da percepção do sonho, que concerne a sua percepção desperta. Para o conhecimento, ambos são inteiramente significantes exatamente da mesma maneira, a saber, pura e simplesmente como objetos. – Perante a percepção, nomeadamente, é sem sentido o questionamento habitual pela superioridade de um desses modos de percepção, de acordo com a maior riqueza de critérios, visto que primeiro devem ser indicados 1) que em geral existe a consciência da verdade 2) que através de tal validade seria caracterizada, em comparação, a maioria relativa dos critérios. Na realidade é 1) sem sentido a comparação nas investigações teóricas da verdade 2) a princípio, sobretudo para a consciência, é responsável unicamente a relação com a vida, mas não com a verdade. No que diz respeito à vida, nenhum desses modos de consciência é verdadeiro, mas há apenas uma diferença de seu significado para os mesmos.

Perfeito equilíbrio entre proximidade e distância no amor perfeito “vens voando e encantada”. – Dante põe Beatrice sob as estrelas. Para ele, porém, as estrelas poderiam estar próximas em Beatrice. Porque na amada se apresentam próximas ao homem as forças da distância. De tal maneira são proximidade e distância os polos da vida de Eros: eis porque é crucial o presente e a dissolução no amor. – O encanto é a magia da proximidade.

Eros é a obrigação na natureza, cujas forças estão livres por toda parte onde ele não domina. “Um grande demônio, Sócrates, [é o Eros] pois que todo demoníaco está no meio entre o deus e o mortal. – Que poder tem? Eu perguntei. – De anunciar e transmitir aos deuses o que vem dos homens e aos homens o que vem dos deuses; de uns súplicas e sacrifícios, de outros ordens e recompensas aos sacrifícios. No meio de ambos está o cumprimento, de modo que o próprio universo está ligado a si mesmo. Por meio deste demoníaco é possível do mesmo modo a profecia, e a arte dos sacerdotes nos sacrifícios, nas bênçãos, nos cantos e em toda adivinhação e encantamento. Deus não lida com os homens, mas através deste está a relação total e a conversação divina com os homens na vigília e no sono” Symposion 202/203<.> O tipo e o fenômeno originário da ligação, porém, que se encontra em cada ligação particular, é da proximidade e da distância. Esta é, além de todas as outras, a obra originária de Eros.

Relação especial de proximidade e distância para com os gêneros. Para o homem, as forças da distância devem ser determinantes, ao passo que ele determina a partir das forças da proximidade. A saudade é um devir determinado. Qual é a força a partir da qual o homem determina sua proximidade? Ela está perdida. Vôo é o movimento da saudade. Qual é o movimento encantatório que determina a proximidade? Encanto e vôo se conjugam no tipo de sonho de voar baixo sobre a terra. (A vida de Nietzsche é típica da mera determinação da distância, que é a fatalidade do mais alto sobre a pessoa acabada). Devido a esta falha da força encantatória ela não pode “se manter a distância”. E tudo que penetra em sua proximidade é dissoluto. Eis porque se tornou a proximidade o domínio do dissoluto, como na mais íntima proximidade do casal na sexualidade, terrível o suficiente para trazer à luz, e que tem sido experimentado por Strindberg. Mas o Eros ileso tem poder obrigatório e encantatório também no próximo.

“Die Verlassenen” de Karl Kraus, uma contrapartida <contraposição?> ao “Seliger Sehnsucht” de Goethe. Aqui o movimento do adejo e do vôo, acolá a paralisação encantada do sentimento. O poema de Goethe, um movimento ininterrupto poderoso; o poema de Kraus, uma interrupção desmedida e detida no meio da estrofe, como o abismo do mistério que separa o primeiro do último reciprocamente. Assim é o abismo, o fato originário que seria experimentado em toda proximidade erótica profunda.

[ +++ ]

[B 9a, 2]

Focillon sobre a fantasmagoria da moda: “Na maioria das vezes … ela cria … híbridos, impõe ao ser humano o perfil do animal… A moda inventa assim uma humanidade artificial que não é o cenário passivo do meio formal, mas o próprio meio formal. Essa humanidade — às vezes heráldica, outras vezes teatral, ou feérica, ou arquitetural — tem … como regra … a poética do ornamento, e o que ela chama de linha … talvez não seja senão um sutil compromisso entre um certo cânone fisiológico … e a fantasia das figuras.” Henri Focillon, Vie des Formes, Paris, 1934, p. 41.

[D 6, 1]

III eterno retorno

Extraído de L’Eternité par les Astres, de Blanqui: “Qual o homem que não se encontra, às vezes, em presença de duas carreiras? Aquela da qual ele se desvia lhe daria uma vida bem diferente, preservando-lhe ao mesmo tempo a mesma individualidade. Uma conduz à miséria, à vergonha, à servidão. A outra leva à glória, à liberdade. Aqui, uma mulher encantadora e a felicidade; lá, cólera e desolação. Falo pelos dois sexos. Quer se a tome ao acaso ou por escolha, não importa: não se escapa da fatalidade. Mas a fatalidade não roca o infinito, que não conhece alternativa e tem lugar para tudo. Existe uma terra em que o homem segue a estrada desdenhada na outra pelo sósia. Sua existência se duplica, um globo para cada uma, depois se bifurca uma segunda, uma terceira vez, milhares de vezes. Ele possui assim sósias completos e inúmeras variantes de sósias que se multiplicam e representam sempre sua pessoa, mas não tomam senão pedaços de seu destino. Tudo o que poderíamos ter sido aqui em baixo, nós o somos em alguma outra parte. Além de nossa existência inteira, do nascimento à morte, que vivemos numa multidão de terras, nós a vivemos em outras terras em mil edições diferentes.” Cit. em Gustave Geffroy, L’Enfermé, Paris, 1897, p. 399.

[D 6, 2]

III eterno retorno

Extraído do final da Eternité par les Astres: “O que escrevo neste momento, numa cela do Fort du Taureau, eu o escrevi e o escreverei por toda a eternidade, à mesa, com uma pena, vestido como estou agora, em circunstâncias inteiramente semelhantes.” Cit. em Gustave Geffroy, L’Enfermé, Paris, 1897, p. 401. Logo em seguida, Geffroy: “Ele escreve assim seu destino no número sem fim dos astros, e em todos os instantes da duração. Sua cela se multiplica até o incalculável. Ele é, no universo inteiro, o encarcerado que ele é nesta terra, com sua força revoltada, seu pensamento livre.”

[D 7; D 7a]

III eterno retorno

Capítulo final (VIII — “Résume”) de L’Eternité par les Astres, de Blanqui: ‘O universo inteiro é composto de sistemas estelares. Para criá-los, a natureza tem apenas cem corpos simples a sua disposição. Apesar da vantagem prodigiosa que ela sabe tirar desses recursos, e do número incalculável de combinações que eles oferecem à sua fecundidade, o resultado é necessariamente um número finito, como o dos próprios elementos; para preencher sua extensão, a natureza deve repetir ao infinito cada uma de suas combinações originais ou tipos. / Todo astro, qualquer que seja, existe portanto em número infinito no tempo e no espaço, não apenas sob um de seus aspectos, mas tal como se encontra em cada segundo de sua duração, do nascimento à morte. Todos os seres distribuídos em sua superfície, grandes ou pequenos, vivos ou inanimados, partilham o privilégio dessa perenidade. / A terra é um desses astros. Todo ser humano é, pois, eterno em cada um dos segundos de sua existência. O que escrevo neste momento, numa cela do Fort du Taureau, eu o escrevi e o escreverei por toda a eternidade, à mesa, com uma pena, vestido como estou agora, em circunstâncias inteiramente semelhantes. Assim para cada um. / Todas essas terras se abismam, uma após a outra, nas chamas renovadoras, para delas renascer e recair ainda, escoamento monótono de uma ampulheta que se vira e se esvazia eternamente a si mesma. Trata-se do novo sempre velho, e do velho sempre novo. / Os curiosos em relação à vida extraterrestre poderão, entretanto, sorrir diante de uma conclusão matemática que lhes conceda não apenas a imortalidade, mas a eternidade? O número de nossos sósias é infinito no tempo e no espaço. Em sã consciência, não se poderia exigir mais. Esses sósias são de carne e osso, até mesmo de calças e paletó, de crinolina e de coque. Não são fantasmas, são a atualidade eternizada. / Eis, entretanto, uma grande falha: não há progresso. Infelizmente! Não são reedições vulgares, repetições. Assim são os exemplares dos mundos passados, e assim também os dos mundos futuros. Somente o capítulo das bifurcações permanece aberto à esperança. Não nos esqueçamos que tudo o que poderíamos ter sido aqui em baixo, nós o somos em alguma outra parte. O progresso aqui embaixo é apenas para nossos descendentes. Eles têm mais sorte que nós. Todas as coisas belas que o nosso globo verá, nossos futuros descendentes já as viram, vêem-nas neste momento e as verão sempre, é claro, sob a forma de sósias que os precederam e que os sucederão. Filhos de uma humanidade melhor, eles já nos ultrajaram muito e nos vaiaram muito sobre as terras mortas, passando por elas depois de nós. Continuam a nos fustigar sobre as terras vivas de onde nós desaparecemos. e nos perseguirão para sempre com seu desprezo sobre as terras a nascer. / Eles e nós — e todos os hóspedes de nosso planeta — renascemos prisioneiros do momento e do lugar que os destinos nos designam na série de suas metamorfoses. Nossa perenidade é um apêndice da sua. Não somos senão fenômenos parciais de suas ressurreições. Homens do século XIX, a hora de nossas aparições está para sempre fixada e nos reconduz sempre os mesmos, na melhor hipótese com a perspectiva de variantes felizes. Nada aí que satisfaça muito a sede de algo melhor. O que fazer? Não procurei meu prazer, procurei a verdade. Não há aqui revelação nem profeta, mas uma simples dedução da análise espectral e da cosmogonia de Laplace. Essas duas descobertas nos fazem eternos. Seria um ganho? Aproveitemos. Seria uma mistificação? Resignemo-nos / … / No fundo, é melancólica essa eternidade do homem pelos astros, e mais triste ainda é esse seqüestro dos mundos irmãos pela inexorável barreira do espaço. Tantas populações idênticas que passam sem ter suspeitado de sua mútua existência! Pois bem! Nós a descobrimos, enfim, no século XIX. Mas quem desejara acreditar nisso? / E depois, até aqui, o passado para nós representava a barbárie, e o futuro significava progresso, ciência, felicidade, ilusão! Esse passado viu desaparecer, sobre todos os nossos globos-sósias, as mais brilhantes civilizações, sem deixar um rastro, e elas desaparecerão ainda sem deixar outros. O futuro reverá sobre bilhões de terras a ignorância, as tolices, as crueldades de nossas velhas eras! / Na hora presente, a vida inteira de nosso planeta, do nascimento à morte, é vivida em parte aqui e em parte lá, dia a dia, em miríades de astros- irmãos, com todos os seus crimes e suas desgraças. O que chamamos de progresso está enclausurado em cada terra e desaparece com ela. Sempre e em todo lugar, no campo terrestre, o mesmo drama, o mesmo cenário, sobre o mesmo palco estreito uma humanidade barulhenta, enfatuada de sua grandeza, acreditando ser o universo e vivendo em sua prisão como numa imensidão, para logo desaparecer com o globo que carregou com o mais profundo desprezo o fardo de seu orgulho. Mesma monotonia, mesmo imobilismo nos astros estrangeiros. O universo se repete, sem fim, e patina no mesmo lugar. A eternidade perfaz imperturbavelmente ao infinito as mesmas representações.” A. Blanqui, L’Eternité par les Astres: Hypothèse Astronomique, Paris, 1872, pp. 73-76. O trecho que falta detém-se no “consolo” proporcionado pela idéia de que os entes queridos que se foram desta terra fazem companhia, enquanto sósias, nesta mesma hora, ao nosso sósia, num outro planeta.

[D 9a, 1]

Extraído de “Les étoiles” (As estrelas), de Lamartine:

Então esses globos de ouro, essas ilhas de luz,
Que a sonhadora pálpebra procura por instinto,
Jorram aos milhares da sombra fugidia,
Como um pó de ouro sobre os passos da noite;
E o sopro da tarde que voa sobre seu rastro
Semeia-os em turbilhão no brilhante espaço.
Tudo o que procuramos, o amor, a verdade,
Esses frutos caídos do céu, de que a terra provou,
Em vossos brilhantes climas que o olhar inveja
Nutrem para sempre os filhos da vida;
E o homem, um dia talvez, entregue a seu destino,
Encontrará em vossa casa tudo o que perdeu.

Lamartine, Œuvres Complètes, vol. I, Paris, 1850, pp. 221 e 224 (Méditations). A meditação termina com um sonho, no qual Lamartine se imagina transformado em estrela, entre as estrelas.

[D 10, 4]

Confrontar L’Eternité par les Astres com o espírito de 1848, que anima Terre et Ciel, de Reynaud. A esse respeito, Cassou: “O homem, descobrindo seu destino terrestre, tem uma espécie de vertigem, e não pode, de imediato, conformar-se apenas com esse destino terrestre. Ele precisa associá-lo à mais vasta imensidão possível de tempo e de espaço. Em sua dimensão mais extensa, ele quer se embriagar de ser, de movimento, de progresso. Somente então ele pode, com toda confiança e com todo orgulho, pronunciar esta sublime palavra do mesmo Jean Reynaud: ‘Durante muito tempo pratiquei o universo’.” “Não encontramos nada no universo que não sirva para nos elevar, e não podemos nos elevar realmente senão fazendo uso daquilo que o universo nos oferece. Os próprios astros, em sua sublime hierarquia, não são senão os degraus superpostos, pelos quais subimos progressivamente até o infinito.” Jean Cassou, Quarante-huit, Paris, 1939, pp. 49 e 48.

[O 1, 1]

Não estaria ele acostumado a reinterpretar a imagem da cidade, por toda parte, em razão de suas constantes andanças? Não transformaria ele a passagem em um cassino, em um salão de jogos, onde aposta as fichas vermelhas, azuis, amarelas dos sentimentos em mulheres: em um rosto que surge — responderá este rosto a seu olhar? —, em uma boca silente — dirá ela algo? Aquilo que mira o jogador a partir de cada número sobre o pano verde — a sorte — dirige-lhe uma piscadela vinda de todos os corpos femininos como a quimera da sexualidade: como o seu tipo. Este nada mais é do que o número, a cifra sob a qual a sorte quer ser chamada pelo nome, neste exato instante, para saltar logo depois para um outro número. O tipo é a casa da aposta — que rende trinta e seis vezes o valor apostado — sobre a qual recai sem querer o olhar do libertino, como a bolinha de marfim que cai na casa vermelha ou na preta. Ele sai do Palais-Royal com os bolsos cheios, acena para uma prostituta e celebra mais uma vez em seus braços o ato com o número, graças ao qual o dinheiro e a riqueza, livres de todo peso terrestre, chegaram a ele pelas mãos do destino como um abraço plenamente retribuído. Pois no bordel e no salão de jogos trata-se do mesmo deleite, que é o mais pecaminoso: enfrentar o destino no prazer. Deixemos que os idealistas ingênuos acreditem que o prazer dos sentidos, seja qual for, possa determinar o conceito teológico de pecado. A luxúria autêntica tem como base nada mais do que justamente essa subtração do prazer do curso da vida com Deus, cuja ligação com ele reside no nome. O próprio nome é o grito do prazer desnudo. Este elemento sóbrio, em si mesmo desprovido de destino — o nome — não conhece outro adversário senão o destino, que ocupa o seu lugar na prostituição e monta seu arsenal na superstição. Daí, no jogador e na prostituta, a superstição que dispõe as figuras do destino e preenche todo o entretenimento galante com o atrevimento e a concupiscência do destino, fazendo o próprio prazer ajoelhar-se diante de seu trono.

[ +++ ]

[O 2a, 1]

Ritos de passagem – assim se denominam no folclore as cerimônias ligadas à morte, ao nascimento, ao casamento, à puberdade, etc. Na vida moderna, estas transições tornaram-se cada vez mais irreconhecíveis e difíceis de vivenciar. Tornamo-nos muito pobres em experiências liminares. O adormecer talvez seja a única delas que nos restou. (E, com isso, também o despertar.) E, finalmente, tal qual as variações das figuras do sonho, oscilam também em torno de limiares os altos e baixos da conversação e as mudanças sexuais do amor. “Como agrada ao homem”, diz Aragon, “manter-se na soleira da imaginação!” (Paysan de Paris, 1926, p. 74). Não é apenas dos limiares destas portas fantásticas, mas dos limiares em geral que os amantes, os amigos, adoram sugar as forças. As prostitutas, porém, amam os limiares das portas do sonho. – O limiar [Schwelle] deve ser rigorosamente diferenciado da fronteira [Grenze]. O limiar é uma zona. Mudança, transição, fluxo estão contidos na palavra schwellen (inchar, intumescer), e a etimologia não deve negligenciar estes significados. Por outro lado, é necessário determinar o contexto tectônico e cerimonial imediato que deu à palavra o seu significado. ■ Morada de sonho

[O 4, 1]

“É impossível esperar que um burguês algum dia consiga compreender os fenômenos de distribuição das riquezas. Pois, à medida que se desenvolve a produção mecânica, a propriedade se despersonaliza e se reveste com a forma coletiva impessoal da sociedade anônima, cujas cotas terminam por rodopiar no turbilhão da bolsa de valores… Alguns perdem…, outros ganham, de uma maneira que se assemelha tanto ao jogo, que os negócios da bolsa de valores são efetivamente chamados de ‘jogo’. O desenvolvimento econômico moderno como um todo tende a transformar, cada vez mais, a sociedade capitalista em um enorme cassino internacional, onde os burgueses ganham e perdem capitais em conseqüência de acontecimentos que lhes permanecem desconhecidos… O ‘inescrutável’ reina na sociedade burguesa como num antro de jogo… Sucessos e fracassos, cujas causas são inesperadas, geralmente desconhecidas e aparentemente regidas pelo acaso, predispõem o burguês a adquirir uma mentalidade de jogador… O capitalista, cuja fortuna está aplicada em valores mobiliários, submetidos a oscilações de preço e dividendos cujas causas desconhece, é um jogador profissional. O jogador, porém, é um ser altamente supersticioso. Os freqüentadores assíduos dos antros de jogo possuem sempre fórmulas mágicas para exorcizar o destino; um deles murmura uma oração a santo Antônio de Pádua ou a qualquer outro espírito celestial; um segundo aposta apenas quando uma determinada cor ganhou; um terceiro segura com a mão esquerda uma pata de coelho etc. O inescrutável social envolve o burguês, como o inescrutável da natureza envolve o selvagem.” Paul Lafargue, “Die Ursachen des Gottesglaubens”, Die Neue Zeit, XXIV, n° I, Stuttgart, 1906, p. 512.

[O 4a]

III spleen

“Tentar a sorte não é uma volúpia medíocre. Experimentar — num segundo — meses, anos, toda uma vida de temor e de esperança não é um prazer sem embriaguez. Eu não tinha nem dez anos quando o Sr. Grépinet, meu professor da nona série, leu-nos em aula a fábula do Homem e do Gênio. No entanto, lembro-me dela melhor do que se a tivesse ouvido ontem. Um gênio dá a um menino um novelo de linha e lhe diz: ‘Este é o fio dos seus dias. Pega-o. Quando quiseres que seu tempo passe, puxa o fio: seus dias passarão rápidos ou lentos conforme você desenrolar o novelo, rápida ou lentamente. Enquanto você não tocar o fio, permanecerá na mesma hora da sua existência.’ O menino pegou o fio; puxou-o primeiro para tornar-se um homem, depois para desposar a noiva que amava, depois para ver crescerem seus filhos, para conseguir os empregos, os salários, as honras, para superar as preocupações, evitar os aborrecimentos, as doenças que vêm com a idade, enfim, ai de mim! para terminar uma velhice insuportável. Ele tinha vivido quatro meses e seis dias desde a visita do gênio. Pois bem! O que é o jogo senão a arte de viver num segundo as mudanças que o destino geralmente só produz ao longo de muitas horas e mesmo de muitos anos; a arte de acumular num só instante as emoções esparsas na lenta existência dos outros homens, o segredo de viver toda uma vida em alguns minutos, enfim, o novelo de linha do gênio? O jogo é um corpo-a-corpo com o destino… Joga-se a dinheiro — dinheiro, quer dizer, a possibilidade imediata, infinita. Talvez a carta que se vira ou a bolinha que corre dê ao jogador parques e jardins, campos e vastos bosques, castelos elevando ao céu suas torres pontiagudas. Sim, esta pequena bola que rola contém em si hectares de boa terra e telhados de ardósia, cujas chaminés esculpidas se refletem no Loire; ela encerra os tesouros da arte, as maravilhas do gosto, jóias prodigiosas, os corpos mais belos do mundo, e mesmo almas — que se pensava que não fossem venais —, todas as decorações, todas as honras, toda a graça e todo o poder da Terra… E você quer que não se jogue? Se pelo menos o jogo desse apenas esperanças infinitas, se mostrasse apenas o sorriso de seus olhos verdes, talvez não o amássemos tão ardorosamente. Mas ele tem unhas de diamante, é terrível; proporciona, quando lhe apraz, a miséria e a vergonha; é por isso que o adoramos. A atração do perigo subjaz a todas as grandes paixões. Não há volúpia sem vertigem. O prazer misturado com o medo embriaga. E o que há de mais terrível que o jogo? Ele dá e tira; suas razões não são absolutamente as nossas razões. Ele é mudo, cego e surdo. Pode tudo. É um deus… Tem seus devotos e seus santos que o amam pelo que ele é, não pelo que promete, e que o adoram quando os atinge. Se os despoja cruelmente, atribuem a falta a si mesmos, não a ele: ‘Joguei mal’, dizem. Eles se acusam e não blasfemam.” Anatole France, Le jardin d’Épicure, Paris, pp. 15-18.

[O 13, 3]

A proscrição do jogo tem provavelmente sua razão mais profunda no fato de que um dom natural do ser humano que o eleva acima de si mesmo, quando voltado para objetos mais elevados, é voltado para um dos objetos mais vis, o dinheiro, rebaixando assim o homem. O dom de que se trata é a presença de espírito. Sua manifestação suprema é a leitura, que, em ambos os casos, é divinatória.

[O 13, 4]

O sentimento particular de felicidade do ganhador é caracterizado pelo fato de que dinheiro e bens, que costumam ser as coisas mais maciças e mais pesadas do mundo, chegam-lhe através do destino como um abraço feliz plenamente retribuído. Elas podem ser comparadas ao testemunho de amor de uma mulher plenamente satisfeita pelo homem. Jogadores são tipos aos quais não é dado satisfazer a mulher. Não seria Don Juan um jogador?

[K 1, 1]

O despertar como um processo gradual que se impõe na vida tanto do indivíduo quanto das gerações. O sono é seu estágio primário. A experiência da juventude de uma geração tem muito em comum com a experiência do sonho. Sua configuração histórica é configuração onírica. Cada época tem um lado voltado para os sonhos, o lado infantil. Para o século passado, isto aparece claramente nas passagens. Porém, enquanto a educação de gerações anteriores interpretava esses sonhos segundo a tradição, no ensino religioso, a educação atual volta-se simplesmente à distração das crianças. Proust pôde surgir como um fenômeno sem precedentes apenas em uma geração que perdera todos os recursos corpóreo-naturais da rememoração e que, mais pobre do que as gerações anteriores, estivera abandonada à própria sorte e, por isso, conseguira apoderar-se dos mundos infantis apenas de maneira solitária, dispersa e patológica. O que é apresentado a seguir é um ensaio sobre a técnica do despertar. Uma tentativa de compreender a revolução dialética, copernicana, da rememoração.

[K 1, 4]

O século XIX, um espaço de tempo [Zeitraum] (um sonho de tempo [Zeit-traum]), no qual a consciência individual se mantém cada vez mais na reflexão, enquanto a consciência coletiva mergulha em um sonho cada vez mais profundo. Ora, assim como aquele que dorme — e que nisto se assemelha ao louco — dá início à viagem macrocósmica através de seu corpo, e assim como os ruídos e sensações de suas próprias entranhas, como a pressão arterial, os movimentos peristálticos, os batimentos cardíacos e as sensações musculares — que no homem sadio e desperto se confundem no murmúrio geral do corpo saudável — produzem, graças à inaudita acuidade de sua sensibilidade interna, imagens delirantes ou oníricas que traduzem e explicam tais sensações, assim também ocorre com o coletivo que sonha e que, nas passagens, mergulha em seu próprio interior. É a ele que devemos seguir, para interpretar o século XIX, na moda e no reclame, na arquitetura e na política, como a conseqüência de suas visões oníricas.

[K 1, 5]

É um dos pressupostos tácitos da psicanálise que a oposição categórica entre sono e vigília não tem valor algum para determinar a forma de consciência empírica do ser humano, mas cede o lugar a uma infinita variedade de estados de consciência concretos, cada um deles determinado pelo grau de vigília de todos os centros possíveis. Basta, agora, transpor o estado da consciência, tal como aparece desenhado e seccionado pelo sonho e pela vigília, do indivíduo para o coletivo. Para este, são naturalmente interiores muitas coisas que são exteriores para o indivíduo. A arquitetura, a moda, até mesmo o tempo atmosférico, são, no interior do coletivo, o que os processos orgânicos, o sentimento de estar doente ou saudável são no interior do indivíduo. E, enquanto mantêm sua forma onírica, inconsciente e indistinta, são processos tão naturais quanto a digestão, a respiração etc. Permanecem no ciclo da eterna repetição até que o coletivo se apodere deles na política e quando se transformam, então, em história.

[K 2a, 3]

Cada corrente de moda ou de visão do mundo tem seu declive determinado por aquilo que caiu no esquecimento. O declive é tão forte que normalmente só o grupo pode se entregar a ele; o indivíduo — o precursor — corre o risco de sucumbir sob a violência da correnteza, como ocorreu com Proust. Em outras palavras: o que Proust, enquanto indivíduo, viveu em termos de fenômeno da rememoração, nós somos obrigados a experimentar (em relação ao século XIX) como “corrente”, “moda”, “tendência” — como uma espécie de castigo pela indolência que nos impediu de assumirmos esta rememoração.

[K 2a, 5]

“Muito interessante…, observar como a influência do fascismo no domínio da ciência teve que modificar justamente aqueles elementos em Freud que provinham ainda do período iluminista e materialista da burguesia… Em Jung, … o inconsciente não é mais individual — não é, portanto, um estado adquirido no homem … isolado —, e sim um tesouro da humanidade primitiva, que volta a ser atual; tampouco seria um recalque, mas um bem-sucedido retorno.” Ernst Bloch, Erbschaft dieser Zeit, Zurique, 1935, p. 254.

[K 4,2]

Confronto entre o “inconsciente visceral” e o “inconsciente do esquecimento”, sendo o primeiro predominantemente individual, e o segundo predominantemente coletivo. “A outra parte do inconsciente é feita da massa de coisas aprendidas ao longo dos anos ou ao longo da vida, que foram conscientes e que por difusão entraram no esquecimento… Vasto fundo submarino onde todas as culturas, todos os estudos, todas as diligências dos espíritos e das vontades, todas as revoltas sociais, todas as lutas empreendidas encontram-se reunidas num recipiente informe… Os elementos passionais da vida dos indivíduos se retiraram, extinguiram-se. Subsistem apenas os dados provenientes do mundo exterior, mais ou menos transformados e digeridos. E, do mundo externo que é feito esse inconsciente… Nascido da vida social, esse humus pertence às sociedades. A espécie e o indivíduo contam pouco, as únicas referências são as raças e o tempo. Esse enorme trabalho confeccionado na sombra reaparece nos sonhos, nos pensamentos, nas decisões; sobretudo durante os períodos importantes e das reviravoltas sociais, ele é o grande fundo comum, reserva dos povos e dos indivíduos. A revolução e a guerra, como a febre, acionam melhor seu movimento… Estando ultrapassada a psicologia individual, recorramos a uma espécie de história natural dos ritmos vulcânicos e dos cursos d’água subterrâneos. Nada há na superfície do globo que não tenha sido subterrâneo (água, terra, fogo). Não há nada na inteligência que não tenha sido digerido e que não tenha circulado nas profundezas.” Docteur Pierre Mabille, “Préface a l’Éloge des Préjugés Populaires”, Minotaure, II, n° 6, inverno de 1935, p. 2.

[p 1a, 1]

II o flâneur e a massa

Charles Louandre sobre as fisiologias que ele acusa de corromper os costumes: “Esse triste gênero … logo cumpriu seu destino. A fisiologia, que se publica no formato in-32 para ser comprada … pelas pessoas que passeiam, figurava, em 1836, na Bibliographie de la France, com 2 volumes. Ela apresenta 8 volumes em 1838, 76 em 1841, 44 em 1842, 15 no ano seguinte, e, na melhor das hipóteses, 3 ou 4 nos últimos dois anos. Da fisiologia dos indivíduos passou-se à fisiologia das cidades. Havia Paris la nuit, Paris à table, Paris dans l’eau, Paris à cheval, Paris pittoresque, Paris bohémien, Paris littéraire, Paris marié. Em seguida, veio a fisiologia dos povos: Les français, les anglais peints par eux-mêmes; depois a fisiologia dos animais: Les animaux peints par eux-mêmes et dessinés par d’autres. Enfim … os autores … já sem assunto, acabaram pintando a si mesmos e nos deram La physiologie des physiologistes.”‘ Charles Louandre, “Statistique littéraire de la production intellectuelle en France depuis quinze ans”, Revue de Deux Mondes, 15 nov. 1847, pp. 686-687.

[ +++ ]

[p 2a, 3]

A exigência do “mistério” nas relações entre os sexos, em oposição a sua “publicidade”, para Démar, está estreitamente relacionada com a exigência de períodos probatórios mais ou menos longos. Não obstante, para ela, a forma tradicional do casamento deveria ser suplantada por uma forma mais flexível. Ademais, a reivindicação do matriarcado decorre logicamente destas concepções.

[p 3a, 3]

II o heroi-II- lesbos

Máximas de James de Laurence, em Les Enfants de Dieu, ou La Religion de Jésus Réconciliée avec la Philosophie, Paris, junho de 1831: “É mais razoável crer que todos os filhos são feitos por Deus, que dizer que todos os casados são unidos por Deus” (p. 14). A partir do episódio da adúltera que fica sem castigo diante de Jesus, Laurence chega à conclusão de que este não era favorável ao casamento: “Ele a perdoou porque considerava o adultério uma conseqüência natural do casamento, e ele o teria admitido se o encontrasse entre seus discípulos… Enquanto existir casamento, a mulher adúltera será uma criminosa, porque ela dá ao seu marido a carga dos filhos de outro. Jesus não podia tolerar uma tal injustiça; seu sistema é conseqüente: ele queria que os filhos pertencessem à mãe. Daí estas palavras admiráveis: ‘A ninguém na terra chameis ‘Pai’ pois um só é o vosso Pai, o celeste.'” (p. 13). “Os filhos de Deus, descendentes de uma só mulher, formam uma só família… A religião dos judeus foi a da paternidade, através da qual os patriarcas exerceram sua autoridade doméstica. A religião de Jesus é a da maternidade, cujo símbolo é uma mãe trazendo uma criança nos braços; e esta mãe é chamada ‘a Virgem’, porque mesmo cumprindo os deveres de uma mãe, ela não havia renunciado à independência de uma virgem.” (pp. 13-14)

[ +++ ]

[p 3a, 4]

“Algumas seitas, nos primeiros séculos da Igreja, parecem ter adivinhado as intenções de Jesus: os Simonianos, os Nicolaítas, os Carpocratianos, os Basilidianos, os Marcionitas e outros … não só aboliram o casamento, como também estabeleceram a comunidade das mulheres.” James de Laurence, Les Enfants de Dieu, ou La Religion de Jésus Réconciliée avec La Philosophie, Paris, junho de 1831, p. 8.

[p 4, 1]

James de Laurence dá ao milagre de Caná uma interpretação bem ao estilo do início da Idade Média, para torná-lo uma prova de que Jesus era contrário ao casamento: “Ao ver os dois cônjuges fazendo o sacrifício de sua liberdade, ele transformou a água em vinho, para mostrar que o casamento era uma loucura que só se podia fazer com a razão perturbada pelo vinho.” James de Laurence, Les Enfants de Dieu, ou La Religion de Jésus Réconciliée avec la Philosophie, Paris, junho de 1831, p. 8.

[ +++ ]

[p 5, 1]

Extraído da constituição das Vesuvianas: “As cidadãs deverão formar um contingente para os exércitos de terra e mar… As recrutas formarão um exército designado como reserva, que será distribuído em três divisões: a das operárias, a das vivandeiras, a de caridade… Sendo o casamento uma associação, cada um dos dois esposos deve participar de todos os trabalhos. Todo marido que se recusar a fazer sua parte nos cuidados domésticos será condenado … a assumir, em vez de seu serviço pessoal na Garde Nationale, o serviço de sua mulher na Guarda Cívica.” Firmin Maillard, La Legende de la Femme Émancipée, Paris, pp. 179 e 181.