Meu bom pai esteve em Paris.
Karl Gutzkow, Briefe aus Paris, vol. I, Leipzig, 1842, p. 58.
arqui]vos de antropo[logia
arquivo temático K [GS V]
Meu bom pai esteve em Paris.
Karl Gutzkow, Briefe aus Paris, vol. I, Leipzig, 1842, p. 58.
Biblioteca onde os livros se fundiram uns nos outros e os títulos se apagaram.
Doutor Pierre Mabille,
“Preface à l’Éloge des Préjugés Populaires“,
Minotaure, II, no 6, inverno de 1935, p. 2.
O Panteão elevando sua cúpula sombria até sombria cúpula do céu.
Ponson du Terrail, Les Drames de Paris, vol. 1, p. 9.
O despertar como um processo gradual que se impõe na vida tanto do indivíduo quanto das gerações. O sono é seu estágio primário. A experiência da juventude de uma geração tem muito em comum com a experiência do sonho. Sua configuração histórica é configuração onírica. Cada época tem um lado voltado para os sonhos, o lado infantil. Para o século passado, isto aparece claramente nas passagens. Porém, enquanto a educação de gerações anteriores interpretava esses sonhos segundo a tradição, no ensino religioso, a educação atual volta-se simplesmente à distração das crianças. Proust pôde surgir como um fenômeno sem precedentes apenas em uma geração que perdera todos os recursos corpóreo-naturais da rememoração e que, mais pobre do que as gerações anteriores, estivera abandonada à própria sorte e, por isso, conseguira apoderar-se dos mundos infantis apenas de maneira solitária, dispersa e patológica. O que é apresentado a seguir é um ensaio sobre a técnica do despertar. Uma tentativa de compreender a revolução dialética, copernicana, da rememoração.
A revolução copernicana na visão histórica é a seguinte: considerava-se como o ponto fixo “o ocorrido” e conferia-se ao presente o esforço de se aproximar, tateante, do conhecimento desse ponto fixo. Agora esta relação deve ser invertida, e o ocorrido, tornar-se a reviravolta dialética, o irromper da consciência desperta. Atribui-se a política o primado sobre a história. Os fatos tornam-se algo que acaba de nos tocar, e fixá-los é tarefa da recordação. E, de fato, o despertar é o caso exemplar da recordação: o caso no qual conseguimos recordar aquilo que é mais próximo, mais banal, mais ao nosso alcance. O que Proust quer dizer com a mudança experimental dos móveis no estado de semidormência matinal, o que Bloch percebe como a obscuridade do instante vivido, nada mais é do que aquilo que se estabelecerá aqui no plano da história, e coletivamente. Existe um saber ainda-não-consciente do ocorrido, cuja promoção tem a estrutura do despertar.
Existe uma experiência da dialética totalmente singular. A experiência compulsória, drástica, que desmente toda “progressividade” do devir e comprova toda aparente “evolução” como reviravolta dialética eminente e cuidadosamente composta, é o despertar do sonho. Para o esquematismo dialético, que está na base deste processo, os chineses encontraram freqüentemente em sua literatura de contos maravilhosos e novelas expressões altamente acertadas. O método novo, dialético, de escrever a história apresenta-se como a arte de experienciar o presente como o mundo da vigília ao qual se refere o sonho que chamamos de o ocorrido. Elaborar o ocorrido na recordação do sonho! — Quer dizer: recordação e despertar estão intimamente relacionados. O despertar é, com efeito, a revolução copernicana e dialética da rememoração.
O século XIX, um espaço de tempo [Zeitraum] (um sonho de tempo [Zeit-traum]), no qual a consciência individual se mantém cada vez mais na reflexão, enquanto a consciência coletiva mergulha em um sonho cada vez mais profundo. Ora, assim como aquele que dorme — e que nisto se assemelha ao louco — dá início à viagem macrocósmica através de seu corpo, e assim como os ruídos e sensações de suas próprias entranhas, como a pressão arterial, os movimentos peristálticos, os batimentos cardíacos e as sensações musculares — que no homem sadio e desperto se confundem no murmúrio geral do corpo saudável — produzem, graças à inaudita acuidade de sua sensibilidade interna, imagens delirantes ou oníricas que traduzem e explicam tais sensações, assim também ocorre com o coletivo que sonha e que, nas passagens, mergulha em seu próprio interior. É a ele que devemos seguir, para interpretar o século XIX, na moda e no reclame, na arquitetura e na política, como a conseqüência de suas visões oníricas.
É um dos pressupostos tácitos da psicanálise que a oposição categórica entre sono e vigília não tem valor algum para determinar a forma de consciência empírica do ser humano, mas cede o lugar a uma infinita variedade de estados de consciência concretos, cada um deles determinado pelo grau de vigília de todos os centros possíveis. Basta, agora, transpor o estado da consciência, tal como aparece desenhado e seccionado pelo sonho e pela vigília, do indivíduo para o coletivo. Para este, são naturalmente interiores muitas coisas que são exteriores para o indivíduo. A arquitetura, a moda, até mesmo o tempo atmosférico, são, no interior do coletivo, o que os processos orgânicos, o sentimento de estar doente ou saudável são no interior do indivíduo. E, enquanto mantêm sua forma onírica, inconsciente e indistinta, são processos tão naturais quanto a digestão, a respiração etc. Permanecem no ciclo da eterna repetição até que o coletivo se apodere deles na política e quando se transformam, então, em história.
Quem habitará a casa paterna? Quem fará preces na igreja em que foi batizado? Quem conhecerá ainda o quarto em que ouviu um primeiro grito, em que presenciou um último suspiro? Quem poderá apoiar sua fronte no parapeito da janela em que ele, quando jovem, se entregara a esses devaneios que são a graça da aurora no longo e sombrio jugo da vida? Ó raízes de alegrias extirpadas da alma humana!” Louis Veuillot, Les Odeurs de Paris, Paris, 1914, p. 11.
O fato de termos sido crianças nesta época faz parte de sua imagem objetiva. Ela tinha que ser assim para fazer nascer esta geração. Quer dizer: no contexto onírico procuramos um momento teleológico. Este momento é a espera. O sonho espera secretamente pelo despertar, o homem que dorme entrega-se à morte apenas até nova ordem — ele espera com astúcia pelo segundo em que escapará de suas garras. Assim também o coletivo que sonha, para o qual os filhos se tornam o feliz motivo para seu próprio despertar. ■ Método ■
Tarefa da infância: integrar o novo mundo ao espaço simbólico. A criança é capaz de fazer algo que o adulto não consegue: rememorar o novo. Para nós, as locomotivas já possuem um caráter simbólico, uma vez que as encontramos na infância. Nossas crianças, por sua vez, perceberão o caráter simbólico dos automóveis, dos quais nós vemos apenas o lado novo, elegante, moderno, atrevido. Não existe antítese mais rasa, mais estéril do que aquela que pensadores reacionários como Klages esforçam-se para estabelecer entre o espaço simbólico da natureza e a técnica. A cada formação verdadeiramente nova da natureza — e no fundo também a técnica é uma delas — correspondem novas “imagens”. Cada infância descobre estas novas imagens para incorporá-las ao patrimônio de imagens da humanidade. ■ Método ■
É notável o fato de que as construções nas quais o especialista reconhece antecipações da arquitetura atual não pareçam ter nada de precursor aos olhos de um observador atento, mas não versado em arquitetura, e que, ao contrário, tenham para ele um aspecto especialmente antiquado, como pertencentes a um sonho. (Velhas estações de trem, instalações de gás, pontes.)
“O século XIX: mistura singular de tendências individualistas e coletivistas. Como nenhuma época anterior, ele cola em todas as ações a etiqueta ‘individualista’ (o Eu, a Nação, a Arte), mas, subterraneamente, nos mais desprezados domínios cotidianos, ele precisa criar, como em uma vertigem, os elementos para uma configuração coletiva… Eis a matéria-prima de que devemos nos ocupar: construções cinzentas, mercados cobertos, lojas de departamentos, exposições.” Sigfried Giedion, Bauen in Frankreich, Leipzig-Berlim, p. 15.
Não só as formas em que se manifestam os sonhos coletivos do século XIX não podem ser negligenciadas, não só elas o caracterizam de maneira muito mais decisiva do que aconteceu em qualquer século anterior: elas são também — se bem interpretadas — da maior importância prática, permitindo-nos conhecer o mar em que navegamos e a margem da qual nos afastamos. É aqui, em suma, que precisa começar a “crítica” ao século XIX. Não a crítica ao seu mecanismo e maquinismo, e sim ao seu historicismo narcótico e à sua mania de se mascarar, na qual existe, contudo, um sinal de verdadeira existência histórica, que os surrealistas foram os primeiros a captar. Decifrar este sinal é a proposta da presente pesquisa. E a base revolucionária e materialista do Surrealismo é uma garantia suficiente para o fato de que, no sinal da verdadeira existência histórica, de que se trata aqui, o século XIX fez sua base econômica alcançar sua mais alta expressão.
Tentativa de avançar a partir das teses de Giedion. Ele diz: “A construção desempenha no século XIX o papel do subconsciente.” Não seria melhor dizer: “o papel do processo corpóreo”, em torno do qual se colocam as arquiteturas “artísticas” como os sonhos em torno do arcabouço do processo fisiológico?
O capitalismo foi um fenômeno natural com o qual um novo sono, repleto de sonhos, recaiu sobre a Europa e, com ele, uma reativação das forças míticas.
“É estranho, além do mais, constatar que, ao observar este movimento intelectual em seu conjunto, Scribe tenha sido o único a tratar do presente de forma direta e profunda. Todos os outros ocupam-se mais com o passado do que com os poderes e interesses que põem em movimento seu próprio tempo… Foi igualmente do passado, da história da filosofia, que a doutrina eclética tirou suas forças; e foi finalmente a história da literatura, cujos tesouros a crítica descobriu com Villemain, sem aprofundar-se na vida literária de sua própria época.” Julius Meyer, Geschichte der modernen französischen Malerei, Leipzig, 1867, pp. 415-416.
O que a criança (e na lembrança esmaecida, o homem) encontra nas dobras dos velhos vestidos, nas quais ela se comprimia ao agarrar-se as saias da mãe — eis o que estas páginas devem conter. ■ Moda ■
Diz-se que o método dialético consiste em levar em conta, a cada momento, a respectiva situação histórica concreta de seu objeto. Mas isto não basta. Pois, para esse método, igualmente importante levar em conta a situação concreta e histórica do interesse por seu objeto. Esta situação sempre se funda no fato de o próprio interesse já se encontrar pré-formado naquele objeto e, sobretudo, no fato de ele concretizar o objeto em si, sentindo-o elevado de seu ser anterior para a concretude superior do ser agora (do ser desperto!). A questão de como este ser agora (que é algo diverso do ser agora do “tempo do agora”, já que é um ser agora descontinuo, intermitente) já significa em si uma concretude superior, entretanto, não pode ser apreendida pelo método dialético no âmbito da ideologia do progresso, mas apenas numa visão da história que ultrapasse tal ideologia em todos os aspectos. Aí deveria se falar de uma crescente condensação (integração) da realidade, na qual tudo o que é passado (em seu tempo) pode adquirir um grau mais alto de atualidade do que no próprio momento de sua existência. O passado adquire o caráter de uma atualidade superior graças à imagem como a qual e através da qual é compreendido. Esta perscrutação dialética e a presentificação das circunstâncias do passado são a prova da verdade da ação presente. Ou seja: ela acende o pavio do material explosivo que se situa no ocorrido (cuja figura autêntica é a moda). Abordar desta maneira o ocorrido significa estudá-lo não como se fez até agora, de maneira histórica, mas de maneira política, com categorias políticas. ■ Moda ■
O despertar iminente é como o cavalo de madeira dos gregos na Tróia dos sonhos.
Sobre a doutrina da superestrutura ideológica. A primeira vista, parece que Marx pretendia somente estabelecer uma relação causal entre superestrutura e infra-estrutura. Mas a observação de que as ideologias da superestrutura refletem as condições de maneira falsa e deformada já vai além. A questão é, de fato, a seguinte: se a infra-estrutura determina de certa forma a superestrutura no material do pensamento e da experiência, mas se esta determinação não se reduz a um simples reflexo, como ela deve então ser caracterizada, independentemente da questão da causa de seu surgimento? Como sua expressão. A superestrutura é a expressão da infra-estrutura. As condições econômicas, sob as quais a sociedade existe, encontram na superestrutura a sua expressão — exatamente como o estômago estufado de um homem que dorme, embora possa “condicioná-lo” do ponto de vista causal, encontra no conteúdo do sonho não o seu reflexo, mas a sua expressão. O coletivo expressa primeiramente suas condições de vida. Estas encontram no sonho a sua expressão e no despertar a sua interpretação.
O Jugendstil — uma primeira tentativa de confrontação com o ar livre. Ele encontra uma primeira expressão característica, por exemplo, nos desenhos da revista Simplizissimus, que mostram claramente como era preciso recorrer à sátira para se conseguir respirar. Por outro lado, o Jugendstil pôde se desenvolver naquela luminosidade e naquele isolamento artificiais nos quais o reclame apresenta seus objetos. Este nascimento do “ar livre” a partir do espírito do intérieur é a expressão sensível da situação do Jugendstil do ponto de vista da filosofia da história: ele significa sonhar que despertamos. ■ Reclame ■
Assim como a técnica mostra a natureza em uma perspectiva sempre nova, assim também, no que toca ao homem, ela mobiliza de forma sempre variada seus mais primitivos afetos, angústias e imagens de desejo [Sehnsuchtsbilder]. Neste trabalho, quero conquistar para a história primeva uma parte do século XIX. A face atraente e ameaçadora da história primeva aparece claramente para nós nos primórdios da técnica, no estilo de morar do século XIX; naquilo que está temporalmente mais próximo de nós, essa face ainda não se revelou. Ela aparece mais intensamente na técnica — em razão da causa natural desta — do que em outros domínios. É por isso que fotografias antigas — diferentemente do que acontece com gravuras antigas — possuem algo de espectral.
Sobre o quadro de Wiertz, Pensamentos e visões de um decapitado, e sua explicação. A primeira coisa que chama a atenção nesta experiência magnetopática é o salto magnífico que a consciência dá na morte. “Estranho! Aqui debaixo do cadafalso está a cabeça no chão, pensando que ainda está em cima, acredita que ainda faz parte do corpo, ainda está esperando o golpe que deve separá-la do tronco.” A. J. Wiertz, Œuvres Littéraires, Paris, 1870, p. 492. Trata-se, em Wiertz, da mesma inspiração que permitiu a Bierce criar a grandiosa narrativa do rebelde que é enforcado. No instante de sua morte, este rebelde vive a fuga que o liberta de seus carrascos.
Cada corrente de moda ou de visão do mundo tem seu declive determinado por aquilo que caiu no esquecimento. O declive é tão forte que normalmente só o grupo pode se entregar a ele; o indivíduo — o precursor — corre o risco de sucumbir sob a violência da correnteza, como ocorreu com Proust. Em outras palavras: o que Proust, enquanto indivíduo, viveu em termos de fenômeno da rememoração, nós somos obrigados a experimentar (em relação ao século XIX) como “corrente”, “moda”, “tendência” — como uma espécie de castigo pela indolência que nos impediu de assumirmos esta rememoração.
A moda, como a arquitetura, situa-se na penumbra do instante vivido, pertence à consciência onírica do coletivo. Este desperta, por exemplo, no reclame.
“Muito interessante…, observar como a influência do fascismo no domínio da ciência teve que modificar justamente aqueles elementos em Freud que provinham ainda do período iluminista e materialista da burguesia… Em Jung, … o inconsciente não é mais individual — não é, portanto, um estado adquirido no homem … isolado —, e sim um tesouro da humanidade primitiva, que volta a ser atual; tampouco seria um recalque, mas um bem-sucedido retorno.” Ernst Bloch, Erbschaft dieser Zeit, Zurique, 1935, p. 254.
Índice histórico da infância segundo Marx. Em sua dedução do caráter normativo da arte grega (como arte nascida da infância da espécie humana), Marx diz: “Cada época não vê reviver, na natureza da criança, seu próprio caráter em sua forma verdadeira e natural?” Cit. em Max Raphael, Proudhon, Marx, Picasso, Paris, 1933, p. 175.
Mais de um século antes de tornar-se plenamente manifesta, a tremenda intensificação do ritmo da vida anuncia-se no ritmo da produção, mais precisamente na forma da máquina. “O número de instrumentos de trabalho com os quais o homem pode operar ao mesmo tempo é limitado pelo número de seus instrumentos naturais de produção, seus próprios órgãos corporais… A Jenny, ao contrário, tece desde o início com doze ou dezoito fusos; o tear de meias tece com milhares de agulhas de uma só vez etc. Desde o início, o número de instrumentos com os quais trabalha simultaneamente a mesma máquina de operações independe do limite orgânico que restringe o instrumento artesanal de um operário.” Karl Marx, Das Kapital, vol. I, Hamburgo, 1922, p. 337. O ritmo do trabalho mecanizado tem como conseqüência modificações no ritmo da economia. “Neste país, o ponto essencial é fazer fortuna no menor tempo possível. Antigamente, o projeto de fazer fortuna de uma empresa começada pelo avô somente era concluído pelo neto. Hoje, as coisas não são mais assim; todo mundo quer fruir sem esperar, sem ter paciência.” Louis Rainier Lanfranchi, Voyage á Paris, ou Esquisses des Hommes et des Choses dans Cette Capitale, Paris, 1830, p. 110.
Também a simultaneidade, esta base do novo estilo de vida, provém da produção mecânica: “Cada máquina, em sua parte, fornece matéria-prima a máquina seguinte e, como todas elas funcionam simultaneamente, o produto se encontra assim constantemente tanto nos diversos graus de seu processo de fabricação quanto na transição de uma fase de produção à outra… A máquina de operação combinada, agora um sistema articulado de diferentes máquinas isoladas e de grupos de máquinas, é tanto mais perfeita quanto mais contínuo for seu processo total, isto é, quanto menos interrupções ocorrerem na passagem da matéria-prima da primeira à ultima fase de produção, portanto quanto mais o mecanismo, e não a mão humana, conduzir o material de uma fase de produção à outra. Se o princípio da manufatura é o isolamento dos processos particulares pela divisão do trabalho, na fábrica desenvolvida reina a continuidade ininterrupta destes mesmos processos.” Karl Marx, Das Kapital, vol. I, Hamburgo, 1922, p. 344.
O cinema: desdobramento [Auswicklung] <resultado [Auswirkung]?> de todas as formas de percepção, velocidades e ritmos já pré-formados nas máquinas atuais, de tal maneira que todos os problemas da arte contemporânea encontram sua formulação definitiva apenas no contexto do cinema. ■ Precursores ■
Um pequeno exemplo de análise materialista, mais valioso que a maioria das coisas que existem neste domínio: “Amamos estes materiais pesados que a frase de Flaubert eleva e deixa cair com o barulho intermitente de uma escavadeira. Pois, se, como alguém escreveu, a lâmpada de Flaubert acesa na noite servia de farol para os marinheiros, pode-se dizer também que quando ‘descarregou’ suas frases, estas vinham com o ritmo regular de uma dessas máquinas de terraplanagem. Felizes os que sentem esse ritmo obsedante.” Marcel Proust, Chroniques, Paris, 1927, p. 204 (“A propos du ‘style’ de Flaubert”).
Em seu capítulo sobre o caráter fetiche da mercadoria, Marx demonstrou quão ambíguo parece ser o mundo econômico do capitalismo — uma ambigüidade fortemente acentuada pela intensificação da gestão capitalista. Isto é claramente perceptível, por exemplo, nas máquinas que agravam a exploração em vez de amenizarem o fardo dos homens. Não se relaciona a isto, de maneira geral, a ambivalência dos fenômenos com o que temos que lidar no século XIX? Um significado até então desconhecido da embriaguez para a percepção, da ficção para o pensamento? “Uma coisa desapareceu na desordem geral, o que é uma grande perda para a arte: a ingênua e, portanto, fortemente marcada harmonia entre a vida e a aparência”, é o que se lê significativamente em Julius Meyer, Geschichte der modernen französischen Malerei seit 1789, Leipzig, 1867, p. 31.
Sobre o significado político do filme. O socialismo jamais teria surgido no mundo se tivesse pretendido despertar o entusiasmo do operariado simplesmente por uma melhor ordem das coisas. O que constituiu a força e a autoridade do movimento foi o fato de Marx ter conseguido despertar o interesse dos operários por uma ordem na qual as condições de vida deles seriam melhores, mostrando que esta seria também uma ordem justa. Exatamente o mesmo vale para a arte. Em nenhuma época, por mais utópica que seja, será possível conquistar as massas para uma arte superior, mas apenas para uma arte que lhes seja mais próxima. E a dificuldade consiste justamente em dar a esta arte uma forma tal que se possa afirmar, em plena consciência, que se trata de uma arte superior. Ora, algo desse gênero dificilmente será alcançado por aquilo que é propagado pela vanguarda burguesa. Neste ponto, é perfeitamente correta a argumentação de Berl: “A confusão da palavra revolução, que significa para um leninista a conquista do poder pelo proletariado, e para outros a reviravolta dos valores espirituais estabelecidos, é acentuada pelos surrealistas por seu desejo de mostrar Picasso como um revolucionário… Picasso os decepciona … um pintor não mais revolucionário por ter ‘revolucionado’ a pintura que um costureiro como Poiret por ter ‘revolucionado’ a moda, ou algum médico por ter ‘revolucionado’ a medicina.” Emmanuel Berl, “Premier pamphlet” (Europe, no 75, 1929, p. 401). As massas decididamente exigem da obra de arte (que se situa, para elas, no domínio dos objetos de uso) algo que as aqueça. Aqui, a chama mais fácil para ser acesa é o ódio. O ardor do ódio, porém, fere ou queima, e não oferece o “conforto ao coração” que torna a arte própria para o consumo. O kitsch, ao contrário, nada mais é do que a arte em seu pleno, absoluto e instantâneo caráter de consumo. Assim, o kitsch e a arte, justamente em suas formas de expressão consagradas, se situam em uma oposição irreconciliável. Ora, o que importa para as formas vivas e em desenvolvimento é que tenham em si algo que aqueça, que seja utilizável, enfim, algo que traga felicidade, para que possam abrigar em si, dialeticamente, o kitsch, aproximando-se assim das massas e conseguindo, todavia, superá-lo. Atualmente, talvez apenas o cinema esteja à altura desta tarefa — de qualquer modo, é ele que se encontra mais próximo dela que qualquer outra forma de arte. E quem reconhecer isto estará inclinado a rebater as pretensões do filme abstrato, por mais importantes que sejam seus experimentos. Ele solicitará um período de resguardo, uma proteção natural para aquele kitsch que encontra no cinema seu lugar providencial. Somente o cinema pode detonar as substâncias explosivas que o século XIX acumulou nesta matéria estranha, talvez desconhecida anteriormente, que é o kitsch. Mas, assim como para a estrutura política do filme, a abstração pode também se tornar perigosa para os outros meios modernos de expressão (iluminação, técnica de construção etc.).
O problema formal da nova arte pode ser expressado exatamente desta maneira: quando e como os universos de formas que, sem a nossa interferência, surgiram na mecânica, no cinema, na construção de máquinas, na nova física etc., e que nos subjugaram, revelarão o que, neles, pertence à natureza? Quando será atingido o estado da sociedade em que essas formas, ou as que delas surgiram, revelar-se-ão para nós como formas naturais? De fato, isso evidencia apenas um momento na essência dialética da técnica. (É difícil dizer qual momento: a antítese, se não for a síntese.) De qualquer modo, também está presente na técnica um outro momento: o cumprimento de objetivos estranhos à natureza com meios que lhe são também estranhos e hostis, meios que se emancipam da natureza e a submetem.
Sobre Grandville: “Ele vivia uma vida imaginária sem limites, num domínio prodigioso de poesia primária, entre a visão inábil da rua e os conhecimentos de uma vida secreta de cartomante ou de astrólogo, sinceramente atormentados pela fauna, pela flora e pela humanidade dos sonhos… Grandville talvez tenha sido o primeiro desenhista a dar à vida larvar dos sonhos uma forma plástica razoável. Mas sob essa aparência ponderada surge esse flebile nescio quid que desconcerta e provoca uma inquietude, às vezes bastante constrangedora.” Mac-Orlan, “Grandville le précurseur”, Arts et Métiers Graphiques, 44, 15 dez. 1934, pp. 20-21. O ensaio apresenta <Grandville> como precursor do Surrealismo, e sobretudo do cinema surrealista (Méliès, Walt Disney).
Confronto entre o “inconsciente visceral” e o “inconsciente do esquecimento”, sendo o primeiro predominantemente individual, e o segundo predominantemente coletivo. “A outra parte do inconsciente é feita da massa de coisas aprendidas ao longo dos anos ou ao longo da vida, que foram conscientes e que por difusão entraram no esquecimento… Vasto fundo submarino onde todas as culturas, todos os estudos, todas as diligências dos espíritos e das vontades, todas as revoltas sociais, todas as lutas empreendidas encontram-se reunidas num recipiente informe… Os elementos passionais da vida dos indivíduos se retiraram, extinguiram-se. Subsistem apenas os dados provenientes do mundo exterior, mais ou menos transformados e digeridos. E, do mundo externo que é feito esse inconsciente… Nascido da vida social, esse humus pertence às sociedades. A espécie e o indivíduo contam pouco, as únicas referências são as raças e o tempo. Esse enorme trabalho confeccionado na sombra reaparece nos sonhos, nos pensamentos, nas decisões; sobretudo durante os períodos importantes e das reviravoltas sociais, ele é o grande fundo comum, reserva dos povos e dos indivíduos. A revolução e a guerra, como a febre, acionam melhor seu movimento… Estando ultrapassada a psicologia individual, recorramos a uma espécie de história natural dos ritmos vulcânicos e dos cursos d’água subterrâneos. Nada há na superfície do globo que não tenha sido subterrâneo (água, terra, fogo). Não há nada na inteligência que não tenha sido digerido e que não tenha circulado nas profundezas.” Docteur Pierre Mabille, “Préface a l’Éloge des Préjugés Populaires”, Minotaure, II, n° 6, inverno de 1935, p. 2.
“O passado mais recente apresenta-se sempre como se tivesse sido destruído por uma série de catástrofes.” Wiesengrund, em uma carta <de 5 de junho de 1935>
A brasa queima em tuas pupilas
E tu reluzes como um espelho.
Tens patas, tens asas,
Minha locomotiva de dorso negro?
Vejam ondular sua crina,
Ouçam seu relinchar,
Seu galope é um rufar
De artilharia e de trovão.
Refrão
Dá aveia a teu cavalo!
Selado, freado, apita! E avancemos!
A galope, sobre a ponte, sob o arco,
Corta montanhas, planícies e vales:
Nenhum cavalo é teu rival.
Pierre Dupont, “Le chauffeur de locomotive”, Paris (Passage du Caire).
Notas de D’Eichthal sobre o projeto da “cidade nova” de Duveyrier. Elas se referem ao templo. É significativo que o próprio Duveyrier diz: “Meu templo é uma mulher!”… A réplica de D’Eichthal: “Penso que haverá no templo o palácio do homem e o palácio da mulher; o homem irá passar a noite na casa da mulher e a mulher virá trabalhar durante o dia na casa do homem. Entre os dois palácios ficará o templo propriamente dito, o lugar da comunhão do homem e da mulher com todas as mulheres e com todos os homens; e ali o casal não repousará nem trabalhará sozinho… O templo deve representar um andrógino, um homem e uma mulher… A mesma divisão deverá se reproduzir na cidade, no reino, na terra inteira: haverá o hemisfério do homem e o da mulher.” Henry-René d’Allemagne, Les Saint-Simoniens 1827-1837, Paris, 1930, p. 310.
“A Paris dos Saint-Simonianos.” Do projeto enviado por Charles Duveyrier a L’Advocat, para ser integrado ao Livre des Cent-et-un (o que acabou não ocorrendo): “Quisemos dar forma humana à primeira cidade sob a inspiração de nossa fé.” “O bom Deus disse pela boca do homem que ele envia… Paris! É nas margens de teu rio e sobre o território dentro de teus muros que imprimirei o selo de minha generosidade… Teus reis e teus povos caminharam com a lentidão dos séculos e se detiveram numa praça magnífica. É ali que repousará a cabeça da minha cidade… Os palácios de teus reis serão sua fronte… Conservarei sua barba de altos castanheiros… Varrerei o velho templo cristão do alto dessa cabeça … e sobre esse terreno limpo estenderei uma cabeleira de árvores… Sobre o peito de minha cidade, nesse lar simpático de onde irradiam e para onde convergem todas as paixões, ali onde vibram as dores e as alegrias, construirei meu templo…, plexo solar do colosso… As colinas do Roule e de Chaillot serão seus flancos; colocarei ali o banco e a universidade, os mercados e as gráficas… Estenderei o braço esquerdo do colosso sobre a margem do Sena; ele estará … no lado oposto … a Passy. A associação dos engenheiros … constituirá a parte superior, que se estenderá em direção a Vaugirard; formarei o antebraço da reunião de todas as escolas especiais das ciências físicas… No vão do braço … agruparei todos os liceus, para que minha cidade os aperte contra o seio esquerdo, onde fica a Universidade… Estenderei o braço direito do colosso em sinal de força até a estação de Saint-Ouen… Encherei esse braço das oficinas da pequena indústria, de passagens, galerias, bazares… Formarei a coxa e a perna direita com todos os estabelecimentos das grandes fábricas. O pé direito pousará em Neuilly. A coxa esquerda oferecerá aos estrangeiros longas filas de hotéis. A perna esquerda se estenderá até o Bois de Boulogne… Minha cidade está na atitude de um homem prestes a caminhar; seus pés são de bronze e se apóiam sobre uma dupla estrada de pedra e de ferro. Aqui se fabricam … os veículos de transporte e os aparelhos de comunicação; aqui as carruagens disputam em velocidade… Entre os joelhos está uma arena de equitação, em forma de elipse; entre as pernas, um imenso hipódromo.” Henry-René d’Allemagne, Les Saint-Simoniens 1827-1837, Paris, 1930, pp. 309-310. A idéia desse projeto deve-se a Enfantin, que utilizou pranchas anatômicas para a planificação da cidade do futuro.
Mas não, O Oriente vos chama
Ide fecundar seus desertos,
Fazei gigantes nos ares
As torres da cidade nova.
E Maynard, “L’avenir est beau”, in: Foi Nouvelle: Chants et Chansons de Barrault, Vinçard… 1831 a 1834, Paris, 1 jan. 1835, fascículo I, p. 81. Sobre o tema do deserto, comparar, Chant des industriels”, de Rouget de Lisle, e “Le désert”, de Félicien David.
Paris no ano de 2855: “A cidade tem trinta léguas de circunferência. Versailles e Fontainebleau, bairros perdidos entre tantos outros, projetam sobre periferias menos pacíficas os refrescantes perfumes de suas árvores vinte vezes centenárias. Sèvres, convertido em mercado permanente dos chineses, nossos compatriotas desde a guerra de 2850, exibe … seus pagodes com sinos retumbantes, entre os quais existe ainda a manufatura de outrora reconstruída em porcelana a moda da rainha.” Arsène Houssaye, “Le Paris futur”, in: Paris et les Parisiens au XIX Siècle, Paris, 1856, p. 459.
Chateaubriand sobre o obelisco da Place de la Concorde: “Chegará a hora em que o obelisco do deserto encontrará, na Praça dos Assassinos, o silêncio e a solidão de Luxor.” Cit. em Louis Bertrand, “Discours sur Chateaubriand”, Le Temps, 18 set. 1935.
Saint-Simon propôs “transformar uma montanha da Suíça em uma estátua de Napoleão, que teria em uma das mãos uma cidade habitada, e na outra, um lago.” Conde Gustav von Schlabrendorf, em Paris, sobre acontecimentos e personalidades de sua época [em Carl Gustav Jochmann, Reliquien: Aus seinen nachgelassenen Papieren, ed. org. por Heinrich Zscholcke, vol. I, Hechingen, 1836, p. 146.]
A Paris noturna em L’Homme Qui Rit. “O pequeno errante sentia a paixão indefinível da cidade adormecida. Esses silêncios de formigueiros paralisados emanam vertigem. Todas essas letargias misturam seus pesadelos, esses sonos são uma multidão.” Cit. em R. Caillois, “Paris, mythe moderne”, Nouvelle Revue Française, XXV, n° 284, 1 maio 1937, P. 691.
“Sendo o inconsciente coletivo uma manifestação da história do mundo que se expressa … na estrutura do cérebro e do simpático, ele significa … uma espécie de imagem do mundo atemporal, de certa forma, eterna, que se opõe a nossa imagem consciente momentânea.” C. G. Jung, Seelenprobleme der Gegenwart, Zurique-Leipzig-Stuttgart, 1932, p. 326 (‘Analytische Psychologie und Weltanschauung”).
Jung denomina a consciência — ocasionalmente! — como “nossa conquista prometéica”. C. G. Jung, Seelenprobleme der Gegenwart, Zurique-Leipzig-Stuttgart, 1932, p. 249 (“Die Lebenswende”). E em outro contexto: “O pecado prometéico é o de ser a-histórico. O homem moderno, neste sentido, vive no pecado. Um grau maior de consciência é, portanto, culpa.” Op. cit., p. 404 (“Das Seelenproblem des modernen Menschen”).
“Não há dúvida que … desde a época memorável da Revolução Francesa, o psíquico passou pouco a pouco para o primeiro plano da consciência geral…, devido à sua força crescente de atração. Aquele gesto simbólico de entronização da Deusa Razão em Notre-Dame parece ter significado para o mundo ocidental algo análogo ao abate dos carvalhos de Wotan pelos missionários cristãos, pois tanto naquela ocasião quanto hoje nenhum raio atingiu os blasfemadores.” C. G. Jung, Seelenprobleme der Gegenwart, Zurique-Leipzig-Stuttgart, 1932, p. 419 (“Das Seelenproblem des modernen Menschen”). A “vingança” para estes dois gestos históricos fundadores parece estar iminente hoje, simultaneamente! O nacional-socialismo se encarrega do primeiro, Jung, do segundo.
Enquanto ainda houver um mendigo, ainda haverá mito.
“Aliás, um aperfeiçoamento engenhoso foi introduzido na construção das praças. A administração comprava-as já prontas, sob encomenda. Árvores em papelão colorido e flores em tafetá desempenhavam muito bem seu papel nestes oásis, onde se tinha até mesmo a precaução de esconder nas folhagens pássaros artificiais que cantavam o dia todo. Assim, conservou-se o que há de agradável na natureza, evitando o que ela tem de sujo e de irregular.” Victor Fournel, Paris Nouveau et Paris Futur, Paris, 1868, p. 252.
“Os trabalhos do Sr. Haussmann deram impulso, pelo menos no inicio, a uma grande quantidade de planos bizarros ou grandiosos… Por exemplo, o Sr. Hérard, arquiteto, publica em 1855 um projeto de passarelas a serem construídas no cruzamento dos boulevards Saint-Denis e Sebastopol: essas passarelas com galerias desenhariam um quadrado contínuo, em que cada lado seria determinado pelo ângulo que formam, ao se cruzarem, os dois boulevards. O Sr. J. Brame expõe em 1856, numa série de litografias, seu plano ferroviário para as cidades, particularmente Paris, com um sistema de arcos sustentando os trilhos, de vias laterais para os pedestres e de pontes móveis para colocar essas vias laterais em comunicação… Mais ou menos na mesma época ainda, um advogado pede, por uma “Carta ao Ministro do Comércio”, o estabelecimento de toldos em todo o comprimento das ruas, a fim de evitar que o pedestre tenha que pegar uma carruagem ou um guarda-chuva. Um pouco mais tarde, um arquiteto propõe reconstruir a Cité inteira em estilo gótico, para harmonizá-la com Notre-Dame.” Victor Fournel, Paris Nouveau et Paris Futur, Paris, 1868, pp. 384-386.
Do capítulo de Fournel intitulado “Paris futura”: “Havia … cafés de primeira, de segunda e de terceira classes … e para cada categoria estava previsto o número de salas, de mesas, de bilhares, de espelhos, de ornamentos e de peças douradas… Havia ruas para os patrões e ruas de serviço, como há escadas sociais e escadas de serviço nas casas bem organizadas… No frontão do quartel, um baixo-relevo … representava, com esplendor, a Ordem Pública fardada como um soldado de infantaria, com uma auréola na fronte, abatendo a Hidra de cem cabeças da Descentralização… Cinqüenta sentinelas posicionadas nas cinqüenta guaritas do quartel, frente aos cinqüenta boulevards, podiam ver, com uma luneta, a quinze ou vinte quilômetros dali, as cinqüenta sentinelas das cinqüenta barreiras… Montmartre era coroada com uma cúpula ornada com um imenso relógio elétrico visível a oito e audível a dezesseis quilômetros de distância, servindo de referência para todos os demais relógios da cidade. Tinha-se enfim atingido o grande objetivo perseguido há tanto tempo: fazer de Paris um objeto de luxo e curiosidade mais que de uso, uma cidade em exposição, numa redoma de vidro, … objeto de admiração e inveja para os estrangeiros, e insuportável para seus habitantes.” V. Fournel, op. cit., pp. 235-237, 240-241.
Crítica de Fournel a cidade saint-simoniana de Ch. Duveyrier: “Não podemos continuar acompanhando a exposição dessa metáfora atrevida que o Sr. Duveyrier desenvolve … com uma fleuma cada vez mais estupeficante, sem nem mesmo perceber que sua engenhosa distribuição levaria Paris, por força do progresso, de volta até a época da Idade Média, quando cada indústria e cada ramo do comércio eram confinados num mesmo bairro.” Victor Fournel, Paris Nouveau et Paris Futur, Paris, 1868, pp. 374-375 (“Les précurseurs de M. Haussmann”).
“Vamos falar de um monumento que estimamos particularmente, e que parece de primeira necessidade quando se tem um céu como o nosso … um Jardim de inverno!… Quase no centro da cidade, um lugar vasto, muito vasto, capaz de receber, como o Coliseu em Roma, grande parte da população, seria rodeado por uma imensa cúpula luminosa, mais ou menos como o Palácio de Cristal de Londres ou como nossos mercados de hoje: colunas de ferro, algumas pedras para assentar as fundações… Ali! Meu jardim de inverno, que partido tiraria de ti para meus Novutopianos; enquanto em Paris, na grande cidade, eles construíram um grande monumento de pedra, pesado e feio, que não serve para nada, e onde, neste ano, os quadros de nossos artistas, a contraluz aqui, escaldavam um pouco mais ao longe sob um sol ardente.” F. A. Couturier de Vienne, Paris Moderne: Plan d’une Ville Modèle que l’Auteur a Appelée Novutopie, Paris, 1860, pp. 263-265.
Sobre a morada de sonho: “Em todos os países meridionais, onde a concepção popular de rua pretende que os exteriores das casas pareçam mais ‘habitados’ que seus interiores, essa exposição da vida privada dos habitantes confere as suas moradias um valor de lugar secreto que aguça a curiosidade dos estrangeiros. A impressão é a mesma nas feiras: tudo está exposto de forma tão abundante na rua que aquilo que não se encontra ali ganha a força de um mistério” Adrien Dupassage, “Peintures foraines”, Arts et Métiers Graphiques, 1939.
Não seria possível comparar a diferenciação social na arquitetura (cf. a descrição dos cafés por Fournel em K 6a, 2, ou a oposição entre escada social e escada de serviço) com aquela presente na moda?
Sobre o niilismo antropológico, cf. N 8a, 1: Céline, Benn.
“O século XV … é uma época em que os cadáveres, os crânios e os esqueletos eram ultrajosamente populares. Na pintura, na escultura, na literatura e nas representações dramáticas, a Dança Macabra estava onipresente. Para o artista do século XV, a atração pela morte, bem tratada, era uma chave tão segura para atingir a popularidade quanto o é, em nossa época, um bom sex appeal.” Aldous Huxley, Croisière d’Hiver: Voyage en Amérique Centrale, Paris, 1935, p. 58.
Sobre o interior do corpo. “Este tema e sua elaboração remontam ao modelo de João Chrysóstomo, ‘Sobre as mulheres e a beleza’ (Opera, ed. B. de Montfaucon, Paris, 1735, tomo 12, p. 523).” “A beleza do corpo não reside senão na pele. Com efeito, se os homens vissem o que está debaixo da pele — assim como o lince da Beócia, que dizem que pode ver o interior —, a vista das mulheres dar-lhes-ia náuseas. Toda aquela graça consiste de muco e sangue, de humores e fel. Se alguém considerar o que se esconde nas narinas, na garganta e no ventre, encontrará sempre sujeira. E se nos repugna tocar o muco e a sujeira mesmo só com a ponta do dedo, como então poderíamos desejar abraçar o próprio saco de excrementos?” Odon de Cluny, Collationum, livro III, Migne, tomo 133, p. 556), cit. em J. Huizinga, Herbst des Mittelalters, Munique, 1928, p. 197
Sobre a teoria psicanalítica da recordação: “As pesquisas posteriores de Freud mostraram que esta concepção [ou seja, a do recalque (Verdrängung)] deveria ser ampliada… O mecanismo do recalque … é … um caso particular do processo mais geral e significativo que tem inicio quando nosso Eu não consegue corresponder de forma adequada ás exigências feitas ao aparelho psíquico. O mecanismo geral de defesa não anula as fortes impressões; ele apenas as põe de lado… Em favor da clareza, seria útil formular de maneira intencionalmente simples a oposição entre memória e recordação: a função da memória [o autor identifica a esfera do ‘esquecimento’ com a da ‘memória inconsciente’, p. 130] é proteger as nossas impressões; a recordação visa a sua dissolução. A memória [Gedächtnis] é essencialmente conservadora, a recordação [Erinnerung] é destrutiva.” Theodor Reik, Der überraschte Psychologe, Leiden, 1935, pp. 130-132.
“Vivenciamos, por exemplo, a morte de um parente próximo … e imaginamos sentir toda a profundeza da dor… Mas a dor revelará sua profundeza só muito tempo depois de acreditarmos tê-la superado.” A dor “esquecida” se entranha e se alastra; cf. a morte da avó em Proust. “Vivenciar significa dominar psicologicamente uma impressão tão forte que não pôde ser apreendida de imediato por nós.” Esta definição da vivência [Erleben] no sentido de Freud é totalmente distinta daquilo a que se referem os que dizem “ter tido uma vivência [Erlebnis]” . Theodor Reik, Der überraschte Psychologe, Leiden, 1935, p. 131.
O que foi depositado no inconsciente como conteúdo da memória. Proust fala do “sono muito vivo e criador do inconsciente onde acabam de se gravar as coisas que apenas nos afloraram, onde as mãos adormecidas se apoderam da chave certa, inutilmente procurada até então.” Marcel Proust, La Prisonnière, vol. II, Paris, 1923, p. 189.
A passagem clássica sobre a “memória involuntária” em Proust — prelúdio ao momento em que é descrito o efeito da madeleine sobre o autor: “Foi assim que, durante muito tempo, quando acordado no meio da noite eu me lembrava de Combray, nada me vinha a mente senão essa espécie de painel luminoso… Para dizer a verdade, teria podido responder, a quem me perguntasse, que Combray tinha ainda outra coisa… Mas como aquilo de que me teria lembrado teria sido fornecido somente pela memória voluntária, a memória da inteligência, e como as informações que ela dá sobre o passado não conservam nada dele, eu nunca teria tido vontade de pensar nesse resíduo de Combray… Assim é com o nosso passado. É trabalho perdido procurar evocá-lo; todos os esforços de nossa inteligência são inúteis. Ele está escondido fora de seu domínio e de seu alcance, em algum objeto material … de que nós não suspeitamos. Quanto a esse objeto, depende do acaso se o encontramos ou não o encontramos, antes de morrer.” Marcel Proust, Du Côté de Chez Swann, vol. I, pp. 67-69.
A passagem clássica sobre o despertar durante a noite, no quarto escuro, e a orientação do autor dentro dele: “Quando eu acordava assim, e meu espírito se agitava, sem sucesso, tentando saber onde eu me encontrava, tudo girava ao meu redor na escuridão: as coisas, os países, os anos. Meu corpo, entorpecido demais para se mover, procurava reconhecer, pela forma de seu cansaço, a posição de seus membros, para perceber a partir deles a direção da parede, o lugar dos móveis, para reconstruir e nomear o local em que se encontrava. Sua memória, a memória de suas costelas, de seus joelhos, de seus ombros, apresentava-lhe sucessivamente os vários quartos em que dormira, enquanto em torno dele rodopiavam nas trevas as paredes invisíveis, mudando de lugar conforme o cômodo imaginado. E antes mesmo que meu pensamento … tivesse identificado o aposento…, ele — meu corpo — lembrava-se, para cada quarto, do tipo de cama, do lugar das porcas, de como a luz do dia entrava pelas janelas, da existência de um corredor, com o pensamento que tivera ao adormecer e que reencontrava ao despertar.” Marcel Proust, Du Côté Chez Swann, vol. I, p. 15.
Proust sobre noites de sono profundo após um grande cansaço: “Elas nos fazem reencontrar, ali onde nossos músculos fincam e retorcem suas ramificações aspirando a vida nova, o jardim onde fomos crianças. Não é preciso viajar para revê-lo; é preciso descer para reencontrá- lo. O que um dia cobriu a terra não está mais sobre ela, mas abaixo; para visitar a cidade morta, não basta uma mera excursão — é preciso fazer escavações.” As palavras contradizem a orientação de sair à procura dos lugares onde fomos crianças. Elas mantêm, no entanto, seu significado também como crítica à memória voluntária. Marcel Proust, Le Côté de Guermantes, vol. I, Paris, 1920, p. 82.
Articulação entre a obra proustiana e a obra de Baudelaire: “Uma das obras-primas da literatura francesa, Sylvie, de Gérard de Nerval, assim como o livro Mémoires d’Outre-Tombe … oferece uma sensação do mesmo tipo que a do gosto da madeleine… Em Baudelaire, enfim, essas reminiscências, mais numerosas ainda, são evidentemente menos fortuitas e, portanto, a meu ver, decisivas. É o próprio poeta que, com uma escolha mais ampla e com mais preguiça, procura voluntariamente, no perfume de uma mulher, por exemplo, de sua cabeleira e de seu seio, as analogias inspiradoras que lhe evocarão ‘o azul do céu imenso e redondo’, e ‘um porto cheio de velas e mastros’. Eu ia procurar lembrar-me das peças de Baudelaire que se baseiam, da mesma forma, em uma sensação transposta, para colocar-me decididamente numa filiação tão nobre, e assim assegurar-me de que a obra, que não hesitaria empreender, merecia o esforço que iria lhe consagrar, quando, tendo chegado ao fim da escada…, encontrei-me … no meio de uma festa.” Marcel Proust, Le Temps Retrouvé, vol. II, Paris, 1927, pp. 82-83.
“O homem só é homem na superficie. Levante a pele, disseque: aqui começam as máquinas. Depois, você se perde numa substância inexplicável, estranha a tudo o que você conhece e que é, entretanto, o essencial.” Paul Valéry, Cahier B, 1910, Paris, 1930, pp. 39-40.
Cidade de sonho de Napoleão I: “Napoleão, que a princípio quis erigir o Arco do Triunfo em um ponto qualquer da cidade — como o primeiro, e decepcionante, na Place du Caroussel —, aceitou a sugestão de Fontaine de construir a oeste da cidade, onde havia uma vasta área disponível, uma Paris imperial que superasse a cidade do rei, inclusive Versailles. Ela deveria ser erguida entre a Avenue des Champs Elysées e o Sena … sobre o platô em cuja extremidade se localiza hoje o Trocadéro, com ‘palácios para doze reis e seu séquito’…, ‘não somente a mais bela cidade que existe, mas a mais bela cidade que jamais poderia existir’. O Arco do Triunfo foi planejado como o primeiro edifício dessa cidade.” Fritz Stahl, Paris, Berlim. 1929, pp. 27-28.