Sobre a teoria psicanalítica da recordação: “As pesquisas posteriores de Freud mostraram que esta concepção [ou seja, a do recalque (Verdrängung)] deveria ser ampliada… O mecanismo do recalque … é … um caso particular do processo mais geral e significativo que tem inicio quando nosso Eu não consegue corresponder de forma adequada ás exigências feitas ao aparelho psíquico. O mecanismo geral de defesa não anula as fortes impressões; ele apenas as põe de lado… Em favor da clareza, seria útil formular de maneira intencionalmente simples a oposição entre memória e recordação: a função da memória [o autor identifica a esfera do ‘esquecimento’ com a da ‘memória inconsciente’, p. 130] é proteger as nossas impressões; a recordação visa a sua dissolução. A memória [Gedächtnis] é essencialmente conservadora, a recordação [Erinnerung] é destrutiva.” Theodor Reik, Der überraschte Psychologe, Leiden, 1935, pp. 130-132.
[K_08]
arquivo temático K, folio 8
[K 8, 2]
“Vivenciamos, por exemplo, a morte de um parente próximo … e imaginamos sentir toda a profundeza da dor… Mas a dor revelará sua profundeza só muito tempo depois de acreditarmos tê-la superado.” A dor “esquecida” se entranha e se alastra; cf. a morte da avó em Proust. “Vivenciar significa dominar psicologicamente uma impressão tão forte que não pôde ser apreendida de imediato por nós.” Esta definição da vivência [Erleben] no sentido de Freud é totalmente distinta daquilo a que se referem os que dizem “ter tido uma vivência [Erlebnis]” . Theodor Reik, Der überraschte Psychologe, Leiden, 1935, p. 131.
[K 8, 3]
O que foi depositado no inconsciente como conteúdo da memória. Proust fala do “sono muito vivo e criador do inconsciente onde acabam de se gravar as coisas que apenas nos afloraram, onde as mãos adormecidas se apoderam da chave certa, inutilmente procurada até então.” Marcel Proust, La Prisonnière, vol. II, Paris, 1923, p. 189.
[K 8a, 1]
A passagem clássica sobre a “memória involuntária” em Proust — prelúdio ao momento em que é descrito o efeito da madeleine sobre o autor: “Foi assim que, durante muito tempo, quando acordado no meio da noite eu me lembrava de Combray, nada me vinha a mente senão essa espécie de painel luminoso… Para dizer a verdade, teria podido responder, a quem me perguntasse, que Combray tinha ainda outra coisa… Mas como aquilo de que me teria lembrado teria sido fornecido somente pela memória voluntária, a memória da inteligência, e como as informações que ela dá sobre o passado não conservam nada dele, eu nunca teria tido vontade de pensar nesse resíduo de Combray… Assim é com o nosso passado. É trabalho perdido procurar evocá-lo; todos os esforços de nossa inteligência são inúteis. Ele está escondido fora de seu domínio e de seu alcance, em algum objeto material … de que nós não suspeitamos. Quanto a esse objeto, depende do acaso se o encontramos ou não o encontramos, antes de morrer.” Marcel Proust, Du Côté de Chez Swann, vol. I, pp. 67-69.
[K 8a, 2]
A passagem clássica sobre o despertar durante a noite, no quarto escuro, e a orientação do autor dentro dele: “Quando eu acordava assim, e meu espírito se agitava, sem sucesso, tentando saber onde eu me encontrava, tudo girava ao meu redor na escuridão: as coisas, os países, os anos. Meu corpo, entorpecido demais para se mover, procurava reconhecer, pela forma de seu cansaço, a posição de seus membros, para perceber a partir deles a direção da parede, o lugar dos móveis, para reconstruir e nomear o local em que se encontrava. Sua memória, a memória de suas costelas, de seus joelhos, de seus ombros, apresentava-lhe sucessivamente os vários quartos em que dormira, enquanto em torno dele rodopiavam nas trevas as paredes invisíveis, mudando de lugar conforme o cômodo imaginado. E antes mesmo que meu pensamento … tivesse identificado o aposento…, ele — meu corpo — lembrava-se, para cada quarto, do tipo de cama, do lugar das porcas, de como a luz do dia entrava pelas janelas, da existência de um corredor, com o pensamento que tivera ao adormecer e que reencontrava ao despertar.” Marcel Proust, Du Côté Chez Swann, vol. I, p. 15.