Moda: Senhora Morte! Senhora Morte!
Giacomo Leopardi, Diálogo entre a Moda e a Morte.
arqui]vos de antropo[logia
Nesta parte predominam as categorias teóricas. ‘Salvação’ e ‘progresso’ podem ser ligadas a ‘tradição’; a primeira categoria, por afinidade temática, a segunda, por oposição.
“Este ano, diz Tristouse, a moda é bizarra e familiar, simples e cheia de fantasia. Todos os materiais dos diferentes reinos da natureza podem agora entrar na composição de uma roupa de mulher. Vi um vestido encantador feito de rolhas de cortiça… Um grande costureiro cogita lançar tailleurs feitos com o dorso de livros velhos, costurados com pêlo de bezerro… As espinhas de peixe são muito usadas em chapéus. Vêem-se freqüentemente deliciosas jovens vestidas como peregrinas de Santiago de Compostela, sendo sua roupa, como convém, constelada de conchas de ‘São Tiago’. A porcelana, o grés e a louça surgiram bruscamente na arte da vestimenta… As plumas decoram agora não apenas os chapéus, mas os sapatos e as luvas, e no próximo ano serão colocadas nas sombrinhas. Fazem-se sapatos de vidro de Veneza e chapéus de cristal de Baccarat… Esqueci-me de lhes dizer que, na última quarta- feira, vi nos boulevards uma velha madame vestida com pequenos espelhos aplicados e colados em um tecido. Ao sol, o efeito era suntuoso. Parecia, digamos, uma mina de ouro a passeio. Mais tarde começou a chover e a dama pareceu uma mina de prata… A moda torna-se prática e não despreza mais nada, enobrece tudo. Ela faz com a matéria o que os românticos fizeram com as palavras.” Guillaume Apollinaire, Le Poète Assassiné, nova edição. Paris, 1927, pp. 75-77.
Friedell explica em relação à mulher “que a história de seu vestuário demonstra surpreendentemente poucas variações, nada mais sendo do que uma seqüência de algumas nuances que mudam muito rapidamente, mas que também retornam com maior freqüência: o comprimento das caudas, a altura dos penteados, o comprimento das mangas, o volume da saia, o tamanho do decote, a altura da cintura. Mesmo revoluções radicais como o atual corte de cabelos à la garçonne são apenas ‘o eterno retorno do mesmo’.” Egon Friedell, Kulturgeschichte der Neuzeit, vol. III, Munique, 1931, p. 88. Desta forma, segundo o autor, a moda feminina se distingue da moda masculina, mais variada e mais determinada.
“De todas as promessas feitas no romance de Cabet, Viagem a Icária, ao menos uma se realizou. De fato, Cabet tentara mostrar no romance, no qual está descrito o seu sistema, que o futuro estado comunista não deveria conter nenhum produto da fantasia nem sofrer qualquer tipo de mudança institucional. Por isso, banira de Icária todas as modas e, em particular, as sacerdotisas da moda, as modistas, assim como os ourives e todas as outras profissões que prestam serviço ao luxo, exigindo que as roupas, os utensílios etc. jamais fossem modificados.” Sigmund Engländer, Geschichte der französischen Arbeiter-Associationen, Hamburgo, 1864, vol. II, pp. 165-166.
A seguinte observação permite reconhecer qual o significado da moda como disfarce de determinados desejos da classe dominante. “Os donos do poder sentem uma imensa aversão a grandes transformações. Desejam que tudo fique como está, por mil anos de preferência. Seria preferível que a lua permanecesse imóvel e que o sol não se movesse! Então ninguém sentiria mais fome e teria vontade de jantar. Quando tivessem usado sua arma, os adversários não deveriam mais atirar, seus tiros deveriam ser os últimos.” Bertolt Brecht, “Fünf Schwierigkeiten beim Schreiben der Wahrheit”, Unsere Zeit, VIII, 2-3, abril de 1935, Paris/Basiléia/Praga, p. 32.
“Nós observamos ao nosso redor … os efeitos de confusão e dissipação que nos inflige o movimento desordenado do mundo moderno. As artes não assumem compromisso com a pressa. Nossos ideais duram dez anos! A absurda superstição do novo — que infelizmente substituiu a antiga e excelente crença no julgamento da posteridade — atribui ao esforço do trabalho o fim mais ilusório e o utiliza para criar o que há de mais perecível, o que é perecível por essência: a sensação do novo… Ora, tudo o que se vê aqui foi experimentado, seduziu e encantou durante séculos, e toda essa glória nos diz com serenidade: ‘EU NÃO SOU NADA DE NOVO. O Tempo pode mesmo estragar a matéria na qual existo: mas enquanto ele não me destruir, não poderá fazê-lo a indiferença ou o desprezo de algum homem digno desse nome’.” Paul Valéry, “Préambule” (prefácio ao catálogo da exposição “L’art italien de Cimabue à Tiepolo”, Petit Palais, 1935, pp. IV-VII.)
“Para entender a essência da moda atual, é preciso recorrer não só a motivos de natureza individual, tais como: o desejo de mudança, o senso de beleza, a paixão por se vestir, o ímpeto de se adaptar aos padrões. Sem dúvida, tais motivações interferiram em diversas épocas … na criação das roupas… Entretanto, a moda, tal como se entende hoje, não tem motivações individuais, mas tão-somente uma motivação social; no momento em que se entende isso, chega-se à compreensão de toda a sua essência. Trata-se do empenho das classes altas de se distinguirem das mais baixas, ou melhor, das classes médias… A moda é a barreira — erigida sem cessar e sempre de novo demolida — através da qual o mundo elegante procura isolar-se das regiões medianas da sociedade. Trata-se da procura desenfreada da vaidade social, na qual se repete sem cessar um mesmo fenômeno: o esforço de um grupo para estabelecer a liderança, ainda que seja mínima a distância que o separe dos perseguidores, e o esforço destes de neutralizar essa vantagem através da adoção imediata da nova moda. Explicam-se assim os traços característicos da moda atual. Primeiramente seu surgimento nas camadas superiores da sociedade e sua imitação nas camadas médias. A moda se move de cima para baixo, não de baixo para cima… Uma tentativa das classes médias de lançar uma moda nova jamais … seria bem-sucedida; embora nada fosse mais desejável para as camadas mais altas do que a adotação de uma moda própria por parte daquelas classes. ([Nota:] Isto não as impede, contudo, de procurar novos padrões na cloaca do meio-mundo parisiense e lançar modas que carregam claramente na testa o carimbo de sua origem licenciosa, como Fr. Vischer demonstrou de maneira convincente em seu ensaio sobre a moda, … muito criticado, porém, na minha opinião, altamente meritório.) Daí vem a mudança contínua da moda. Tão logo as classes médias adorem a moda recém-lançada, esta perde seu valor para as classes superiores… Por isso, a novidade é a condição imprescindível da moda… A sua duração é inversamente proporcional à rapidez de sua difusão; seu caráter efêmero acentuou-se em nossos tempos na mesma medida em que se multiplicaram os meios para sua difusão graças ao aperfeiçoamento dos nossos meios de comunicação… E, finalmente, a referida motivação social explica também o terceiro traço característico de nossa moda atual: sua … tirania. A moda contém o critério exterior segundo o qual uma pessoa … ‘faz parte da sociedade’. Quem não quer abrir mão disso é obrigado a segui-la, mesmo que rejeite totalmente uma nova tendência dela… Com isso é decretada também a sentença da moda… Caso as camadas sociais, que são fracas e tolas o suficiente para imitá-la, conseguissem atingir o sentimento de sua dignidade e auto-estima…, chegar-se-ia ao fim da moda, e a beleza poderia, por sua vez, recuperar o lugar que ocupou em todos os povos que não sentiram a necessidade de acentuar as diferenças de classes através do vestuário, ou, onde isso ocorreu, tenham sido bastante razoáveis para respeitá-las.” Rudolph von Jhering, Der Zweck im Recht, vol. II, Leipzig, 1883, pp. 234-238.
Sobre a época de Napoleão III: “Ganhar dinheiro torna-se objeto de um ardor quase sensual, e o amor, uma questão de dinheiro. À época do Romantismo francês, o ideal erótico gravitava em torno da grisette; agora é a vez da lorette que se vende… Ocorreu na moda uma nuance marota: as senhoras usam colarinhos e gravatas, paletós, saias cortadas à semelhança de fraques … túnicas de zuavo, dólmãs, bengalas, monóculos. Dá-se preferência a cores fortemente contrastantes e berrantes, também para os penteados: cabelos vermelho-fogo são muito apreciados… O tipo mais característico da moda é o da grande dama que faz o papel da cocota.” Egon Frieden, Kulturgeschichte der Neuzeit, vol. III, Munique, 1931, p. 203. O “caráter plebeu” desta moda apresenta-se ao autor como “invasão … vinda de baixo”, por parte dos nouveaux riches.
Simmel indica que “a invenção da moda na época atual integra-se cada vez mais à organização objetiva do trabalho da economia”. “Não surge em algum lugar um artigo que se torna moda: ao contrário, criam-se artigos com a finalidade de tornar-se moda.” A oposição enfatizada nesta última frase poderia dizer respeito em certa medida àquela existente entre a era burguesa e a era feudal. Georg Simmel, Philosophische Kultur, Leipzig, 1911, P. 34 (“A moda”).
“A idéia tola e funesta de opor o conhecimento aprofundado dos meios de execução— trabalho sensatamente mantido … ao ato impulsivo da sensibilidade singular é um dos traços mais certos e mais deploráveis da leviandade e da fraqueza de caráter que marcaram a era romântica. A preocupação com a duração das obras já se enfraquecia e cedia, nos espíritos, ao desejo de surpreender: a arte se viu condenada a um regime de rupturas sucessivas. Nasceu um automatismo da ousadia. Esta tornou-se imperativa como fora a tradição. Enfim, a Moda, que é a mudança em alta freqüência do gosto de uma clientela substituiu sua mobilidade essencial às lentas formações dos estilos, das escolas, das grandes celebridades. Mas dizer que a Moda se encarrega do destino das Belas Artes é o bastante para dizer que o comércio aí se intromete.” Paul Valéry, Pièces sur l’Art, Paris, pp. 18-488 (“Sobre Corot”).
Cada geração vivencia a moda da geração imediatamente anterior como o mais radical dos antiafrodisíacos que se pode imaginar. Com esse veredicto, ela não comete um erro tão grande como se poderia supor. Em cada moda há um quê de amarga sátira ao amor; em cada uma delas delineiam-se perversões da maneira mais impiedosa. Toda moda está em conflito com o orgânico. Cada uma delas tenta acasalar o corpo vivo com o mundo inorgânico. A moda defende os direitos do cadáver sobre o ser vivo. O fetichismo que subjaz ao sex appeal do inorgânico é seu nervo vital.
Nascimento e morte — o primeiro, pelas circunstâncias naturais; a segunda, por circunstâncias sociais — limitam consideravelmente a margem de liberdade da moda, quando se tornam atuais. Este estado de coisas é realçado por uma dupla circunstância. A primeira refere-se ao nascimento e mostra como a recriação natural da vida é “superada” pela novidade no domínio da moda. A segunda refere-se à morte. No que concerne à morte, ela não aparece menos “superada” na moda, quando esta liberta o sex appeal do inorgânico.
O último texto de Blanqui, escrito em sua última prisão, permaneceu a meu ver totalmente despercebido até hoje. Trata-se de uma especulação cosmológica. É preciso admitir que, ao primeiro olhar, o texto parece banal e de mau gosto. Entretanto, as desajeitadas reflexões de um autodidata são apenas o prelúdio de uma especulação que não se imaginaria de modo algum encontrar neste revolucionário. Na medida em que o inferno é um objeto teológico, esta especulação pode ser denominada de teológica. A visão cósmica que expõe Blanqui, tomando seus dados à ciência natural mecanicista da sociedade burguesa, é uma visão do inferno — e é, ao mesmo tempo, um complemento da sociedade que Blanqui, no fim de sua vida, foi obrigado a reconhecer como vitoriosa. O que causa um choque é a ausência de qualquer traço de ironia nesse esboço. É uma rendição incondicional, porém, ao mesmo tempo, a acusação mais terrível contra uma sociedade que projeta no céu esta imagem do cosmos como imagem de si mesma. O texto, estilisticamente muito marcante, contém as mais notáveis relações tanto com Baudelaire quanto com Nietzsche. (Carta de 6 de janeiro de 1938 a Horkheimer).
Extraído de L’Eternité par les Astres, de Blanqui: “Qual o homem que não se encontra, às vezes, em presença de duas carreiras? Aquela da qual ele se desvia lhe daria uma vida bem diferente, preservando-lhe ao mesmo tempo a mesma individualidade. Uma conduz à miséria, à vergonha, à servidão. A outra leva à glória, à liberdade. Aqui, uma mulher encantadora e a felicidade; lá, cólera e desolação. Falo pelos dois sexos. Quer se a tome ao acaso ou por escolha, não importa: não se escapa da fatalidade. Mas a fatalidade não roca o infinito, que não conhece alternativa e tem lugar para tudo. Existe uma terra em que o homem segue a estrada desdenhada na outra pelo sósia. Sua existência se duplica, um globo para cada uma, depois se bifurca uma segunda, uma terceira vez, milhares de vezes. Ele possui assim sósias completos e inúmeras variantes de sósias que se multiplicam e representam sempre sua pessoa, mas não tomam senão pedaços de seu destino. Tudo o que poderíamos ter sido aqui em baixo, nós o somos em alguma outra parte. Além de nossa existência inteira, do nascimento à morte, que vivemos numa multidão de terras, nós a vivemos em outras terras em mil edições diferentes.” Cit. em Gustave Geffroy, L’Enfermé, Paris, 1897, p. 399.
Extraído do final da Eternité par les Astres: “O que escrevo neste momento, numa cela do Fort du Taureau, eu o escrevi e o escreverei por toda a eternidade, à mesa, com uma pena, vestido como estou agora, em circunstâncias inteiramente semelhantes.” Cit. em Gustave Geffroy, L’Enfermé, Paris, 1897, p. 401. Logo em seguida, Geffroy: “Ele escreve assim seu destino no número sem fim dos astros, e em todos os instantes da duração. Sua cela se multiplica até o incalculável. Ele é, no universo inteiro, o encarcerado que ele é nesta terra, com sua força revoltada, seu pensamento livre.”
Extraído do final de L’Eternité par les Astres: “Na hora presente, a vida inteira de nosso planeta, do nascimento à morte, é vivida em parte aqui e em parte lá, dia a dia, em miríades de astros-irmãos, com todos os seus crimes e suas desgraças. O que chamamos de progresso está enclausurado em cada terra e desaparece com ela. Sempre e em todo lugar, no campo terrestre, o mesmo drama, o mesmo cenário, sobre o mesmo palco estreito, uma humanidade barulhenta, enfatuada de sua grandeza, acreditando ser o universo e vivendo em sua prisão como numa imensidão, para logo desaparecer com o globo que carregou com o mais profundo desprezo o fardo de seu orgulho. Mesma monotonia, mesmo imobilismo nos astros estrangeiros. O universo se repete, sem fim, e patina no mesmo lugar.” Cit. em Gustave Geffroy, L’Enfermé, Paris, 1897, p. 402.
Blanqui enfatiza explicitamente o caráter científico de suas teses, que nada teriam a ver com as ingênuas fantasias de Fourier. “É preciso admitir que cada combinação particular da matéria e das pessoas deve se repetir milhares de vezes para enfrentar as necessidades do infinito.” Cit. em Geffroy, L’Enfermé, Paris, 1897, p. 400.
Misantropia de Blanqui: “As variações começam com os seres animados que têm vontades, dito de outra forma, caprichos. Desde que os homens fazem intervenções, a fantasia intervém com eles. Não que eles possam afetar muito o planeta… Sua turbulência jamais perturba seriamente o andamento natural dos fenômenos físicos, mas desequilibra a humanidade. É, preciso, pois, prever essa influência subversiva que … dilacera as nações e arruina os impérios. É claro que essas brutalidades acontecem sem sequer arranhar a epiderme terrestre. O desaparecimento dos perturbadores não deixaria vestígios de sua presença, que eles julgam soberana, e seria suficiente para devolver à natureza sua virgindade muito pouco atingida.” Blanqui, L’ Eternité par les Astres, pp. 63-64.
Capítulo final (VIII — “Résume”) de L’Eternité par les Astres, de Blanqui: ‘O universo inteiro é composto de sistemas estelares. Para criá-los, a natureza tem apenas cem corpos simples a sua disposição. Apesar da vantagem prodigiosa que ela sabe tirar desses recursos, e do número incalculável de combinações que eles oferecem à sua fecundidade, o resultado é necessariamente um número finito, como o dos próprios elementos; para preencher sua extensão, a natureza deve repetir ao infinito cada uma de suas combinações originais ou tipos. / Todo astro, qualquer que seja, existe portanto em número infinito no tempo e no espaço, não apenas sob um de seus aspectos, mas tal como se encontra em cada segundo de sua duração, do nascimento à morte. Todos os seres distribuídos em sua superfície, grandes ou pequenos, vivos ou inanimados, partilham o privilégio dessa perenidade. / A terra é um desses astros. Todo ser humano é, pois, eterno em cada um dos segundos de sua existência. O que escrevo neste momento, numa cela do Fort du Taureau, eu o escrevi e o escreverei por toda a eternidade, à mesa, com uma pena, vestido como estou agora, em circunstâncias inteiramente semelhantes. Assim para cada um. / Todas essas terras se abismam, uma após a outra, nas chamas renovadoras, para delas renascer e recair ainda, escoamento monótono de uma ampulheta que se vira e se esvazia eternamente a si mesma. Trata-se do novo sempre velho, e do velho sempre novo. / Os curiosos em relação à vida extraterrestre poderão, entretanto, sorrir diante de uma conclusão matemática que lhes conceda não apenas a imortalidade, mas a eternidade? O número de nossos sósias é infinito no tempo e no espaço. Em sã consciência, não se poderia exigir mais. Esses sósias são de carne e osso, até mesmo de calças e paletó, de crinolina e de coque. Não são fantasmas, são a atualidade eternizada. / Eis, entretanto, uma grande falha: não há progresso. Infelizmente! Não são reedições vulgares, repetições. Assim são os exemplares dos mundos passados, e assim também os dos mundos futuros. Somente o capítulo das bifurcações permanece aberto à esperança. Não nos esqueçamos que tudo o que poderíamos ter sido aqui em baixo, nós o somos em alguma outra parte. O progresso aqui embaixo é apenas para nossos descendentes. Eles têm mais sorte que nós. Todas as coisas belas que o nosso globo verá, nossos futuros descendentes já as viram, vêem-nas neste momento e as verão sempre, é claro, sob a forma de sósias que os precederam e que os sucederão. Filhos de uma humanidade melhor, eles já nos ultrajaram muito e nos vaiaram muito sobre as terras mortas, passando por elas depois de nós. Continuam a nos fustigar sobre as terras vivas de onde nós desaparecemos. e nos perseguirão para sempre com seu desprezo sobre as terras a nascer. / Eles e nós — e todos os hóspedes de nosso planeta — renascemos prisioneiros do momento e do lugar que os destinos nos designam na série de suas metamorfoses. Nossa perenidade é um apêndice da sua. Não somos senão fenômenos parciais de suas ressurreições. Homens do século XIX, a hora de nossas aparições está para sempre fixada e nos reconduz sempre os mesmos, na melhor hipótese com a perspectiva de variantes felizes. Nada aí que satisfaça muito a sede de algo melhor. O que fazer? Não procurei meu prazer, procurei a verdade. Não há aqui revelação nem profeta, mas uma simples dedução da análise espectral e da cosmogonia de Laplace. Essas duas descobertas nos fazem eternos. Seria um ganho? Aproveitemos. Seria uma mistificação? Resignemo-nos / … / No fundo, é melancólica essa eternidade do homem pelos astros, e mais triste ainda é esse seqüestro dos mundos irmãos pela inexorável barreira do espaço. Tantas populações idênticas que passam sem ter suspeitado de sua mútua existência! Pois bem! Nós a descobrimos, enfim, no século XIX. Mas quem desejara acreditar nisso? / E depois, até aqui, o passado para nós representava a barbárie, e o futuro significava progresso, ciência, felicidade, ilusão! Esse passado viu desaparecer, sobre todos os nossos globos-sósias, as mais brilhantes civilizações, sem deixar um rastro, e elas desaparecerão ainda sem deixar outros. O futuro reverá sobre bilhões de terras a ignorância, as tolices, as crueldades de nossas velhas eras! / Na hora presente, a vida inteira de nosso planeta, do nascimento à morte, é vivida em parte aqui e em parte lá, dia a dia, em miríades de astros- irmãos, com todos os seus crimes e suas desgraças. O que chamamos de progresso está enclausurado em cada terra e desaparece com ela. Sempre e em todo lugar, no campo terrestre, o mesmo drama, o mesmo cenário, sobre o mesmo palco estreito uma humanidade barulhenta, enfatuada de sua grandeza, acreditando ser o universo e vivendo em sua prisão como numa imensidão, para logo desaparecer com o globo que carregou com o mais profundo desprezo o fardo de seu orgulho. Mesma monotonia, mesmo imobilismo nos astros estrangeiros. O universo se repete, sem fim, e patina no mesmo lugar. A eternidade perfaz imperturbavelmente ao infinito as mesmas representações.” A. Blanqui, L’Eternité par les Astres: Hypothèse Astronomique, Paris, 1872, pp. 73-76. O trecho que falta detém-se no “consolo” proporcionado pela idéia de que os entes queridos que se foram desta terra fazem companhia, enquanto sósias, nesta mesma hora, ao nosso sósia, num outro planeta.
“Pensemos este pensamento em sua forma mais terrível: a existência, tal como ela é, sem sentido ou objetivo, porém, repetindo-se inevitavelmente, sem um final, no nada: ‘o eterno retorno‘. [p. 45] … Negamos objetivos finais: se a existência tivesse um, este deveria ter sido atingido.” Friedrich Nietzsche, Gesammelte Werke, Munique, 1926, vol. XVIII, Der Wille zur Macht (A vontade de Poder), Livro I, p. 46.
“Contudo, o velho hábito de imaginar um objetivo para cada acontecimento é tão poderoso que o pensador precisa se esforçar para não pensar a falta mesma de objetivo do mundo como intencional. Esta idéia — de que, portanto, o mundo evita intencionalmente um objetivo … — impõe-se a todos aqueles que querem atribuir ao mundo a faculdade da eterna novidade [p. 369] … O mundo, enquanto força, não deve ser pensado como ilimitado, pois ele não pode ser pensado dessa forma… Falta, portanto, ao mundo também a faculdade da eterna novidade.” Nietzsche, Gesammelte Werke, vol. XIX, Munique, 1926, p. 370 (Der Wille zur Macht, Livro IV).
“Se o mundo pode ser pensado como uma grandeza determinada de força e como um número determinado de centros de força — e qualquer outra representação seria … inútil — resulta daí que ele deve passar por um número calculável de combinações no grande jogo de dados de sua existência. Num tempo infinito, qualquer combinação possível seria atingida um dia; além disso, ela seria atingida infinitas vezes. E como entre cada combinação e seu retorno seguinte precisariam ter sido percorridas todas as combinações ainda possíveis … seria provado com isso um círculo de séries absolutamente idênticas… Esta concepção não é simplesmente mecanicista; pois se o fosse, ela não determinaria um retorno infinito de casos idênticos, e sim um estado final. Porque o mundo não o atingiu, o mecanicismo deve nos parecer uma hipótese incompleta e apenas provisória.” Nietzsche, Gesammelte Werke, Munique, 1926, vol. XIX, p. 373 (Der Wille zur Macht, Livro IV).
Na idéia do eterno retorno, o historicismo do século XIX se derruba a si mesmo. Segundo ela, toda tradição, mesmo a mais recente, torna-se a tradição de algo que já se passou na noite imemorial dos tempos. Com isso, a tradição assume o caráter de uma fantasmagoria, na qual a história primeva desenrola-se nos palcos sob a mais moderna ornamentação.
Sobre o problema da Modernidade e Antigüidade: “Esta existência que se tornou inconstante e absurda e este mundo que se tornou inconcebível e abstrato se conjugam na vontade do eterno retorno, do igual como tentativa de repetir, no auge da modernidade, no símbolo, a vida dos gregos no cosmos vivo do mundo visível.” Karl Liwith, Nietzsches Philosophie der ewigen Wiederkunft des Gleichen, Berlim, 1935, p. 83.
A idéia do eterno retorno faz surgir magicamente a fantasmagoria da felicidade a partir da miséria dos anos da modernização alemã. Esta doutrina é uma tentativa de conciliar as tendências contraditórias do prazer: a da repetição e da eternidade. Este heroísmo é uma contrapartida ao heroísmo de Baudelaire, que faz surgir magicamente a fantasmagoria da modernidade a partir da miséria do Segundo Império.
Crítica à doutrina do eterno retorno: “Como estudioso das ciências naturais, … Nietzsche é um diletante que filosofa, e como fundador de religião, um ‘híbrido de doença e vontade de poder’.” [Prefácio a Ecce Homo], (p. 83) “Toda esta doutrina parece ser nada mais que um experimento da vontade humana e uma tentativa de perpetuar o nosso fazer e não fazer, um substituto ateísta da religião. A isto corresponde o estilo da prédica e a composição de Zaratustra, que muitas vezes imita o Novo Testamento nos mínimos detalhes.” (pp. 86- 87) Karl Löwith, Nietzsches Philosophie der ewigen Wiederkunft des Gleichen, Berlim, 1935.
Primeira alusão à doutrina do eterno retorno no final do quarto livro de Die fröhliche Wissenschaft (A Gaia Ciência): “E se, um dia ou uma noite qualquer, um demônio viesse sorrateiramente atrás de ti, perseguindo-te na tua mais solitária solidão, e te dissesse: ‘Esta vida que estás vivendo agora e já viveste terá que ser vivida por ti mais uma vez e ainda mais incontáveis vezes; nada nela será novo, ao contrário, cada dor e cada prazer, cada pensamento e cada suspiro e tudo o que existe de indescritivelmente pequeno e grande em tua vida terá de retornar, tudo na mesma sucessão e seqüência — e assim também esta aranha e este luar por entre as árvores, e igualmente este instante e eu mesmo. A eterna ampulheta da existência será sempre virada de novo — e tu com ela, grãozinho de poeira!’ — Não irias tu amaldiçoar o demônio que assim falasse? Ou terias tu vivido um instante formidável em que irias responder-lhe: ‘tu és um deus e nunca ouvi coisas mais divinas!” Cit. em Löwith, Nietzsche Philosophie der ewigen Wiederkunft des Gleichen, Berlim, 1935, pp. 57-58.
“Afirmo que a paixão pelo jogo é a mais nobre das paixões, porque ela comporta todas as outras. Uma seqüência de jogadas felizes me proporciona mais prazer do que um homem que não joga poderia ter em vários anos. Eu me deleito espiritualmente, isto é, da maneira mais sensível e mais delicada. Você pensa que no ouro que me chega eu só vejo o lucro? Você está enganado. Vejo nele as alegrias que ele proporciona e saboreio-as verdadeiramente. Essas alegrias, vivas e ardentes como relâmpagos, são rápidas demais para me dar desgosto e diversas demais para me entediar. Tenho cem vidas numa só. Se viajo, faço-o como uma faísca elétrica… Se tenho a mão fechada e guardo meu dinheiro, é porque conheço muito bem o preço do tempo para gastá-lo como os outros homens. Um prazer que eu me concedesse me faria perder mil outros prazeres… Tenho os prazeres do espírito e não quero outros.” Édouard Gourdon, Les Faucheurs de Nuit, Paris, 1860, pp. 14-15. A citação foi tomada de empréstimo a La Bruyère! — Cf. “Mesmo que fosse possível, eu já não poderia do modo como eu queria.” Wallenstein.
“Tentar a sorte não é uma volúpia medíocre. Experimentar — num segundo — meses, anos, toda uma vida de temor e de esperança não é um prazer sem embriaguez. Eu não tinha nem dez anos quando o Sr. Grépinet, meu professor da nona série, leu-nos em aula a fábula do Homem e do Gênio. No entanto, lembro-me dela melhor do que se a tivesse ouvido ontem. Um gênio dá a um menino um novelo de linha e lhe diz: ‘Este é o fio dos seus dias. Pega-o. Quando quiseres que seu tempo passe, puxa o fio: seus dias passarão rápidos ou lentos conforme você desenrolar o novelo, rápida ou lentamente. Enquanto você não tocar o fio, permanecerá na mesma hora da sua existência.’ O menino pegou o fio; puxou-o primeiro para tornar-se um homem, depois para desposar a noiva que amava, depois para ver crescerem seus filhos, para conseguir os empregos, os salários, as honras, para superar as preocupações, evitar os aborrecimentos, as doenças que vêm com a idade, enfim, ai de mim! para terminar uma velhice insuportável. Ele tinha vivido quatro meses e seis dias desde a visita do gênio. Pois bem! O que é o jogo senão a arte de viver num segundo as mudanças que o destino geralmente só produz ao longo de muitas horas e mesmo de muitos anos; a arte de acumular num só instante as emoções esparsas na lenta existência dos outros homens, o segredo de viver toda uma vida em alguns minutos, enfim, o novelo de linha do gênio? O jogo é um corpo-a-corpo com o destino… Joga-se a dinheiro — dinheiro, quer dizer, a possibilidade imediata, infinita. Talvez a carta que se vira ou a bolinha que corre dê ao jogador parques e jardins, campos e vastos bosques, castelos elevando ao céu suas torres pontiagudas. Sim, esta pequena bola que rola contém em si hectares de boa terra e telhados de ardósia, cujas chaminés esculpidas se refletem no Loire; ela encerra os tesouros da arte, as maravilhas do gosto, jóias prodigiosas, os corpos mais belos do mundo, e mesmo almas — que se pensava que não fossem venais —, todas as decorações, todas as honras, toda a graça e todo o poder da Terra… E você quer que não se jogue? Se pelo menos o jogo desse apenas esperanças infinitas, se mostrasse apenas o sorriso de seus olhos verdes, talvez não o amássemos tão ardorosamente. Mas ele tem unhas de diamante, é terrível; proporciona, quando lhe apraz, a miséria e a vergonha; é por isso que o adoramos. A atração do perigo subjaz a todas as grandes paixões. Não há volúpia sem vertigem. O prazer misturado com o medo embriaga. E o que há de mais terrível que o jogo? Ele dá e tira; suas razões não são absolutamente as nossas razões. Ele é mudo, cego e surdo. Pode tudo. É um deus… Tem seus devotos e seus santos que o amam pelo que ele é, não pelo que promete, e que o adoram quando os atinge. Se os despoja cruelmente, atribuem a falta a si mesmos, não a ele: ‘Joguei mal’, dizem. Eles se acusam e não blasfemam.” Anatole France, Le jardin d’Épicure, Paris, pp. 15-18.
Rey argumenta a favor das caxemiras francesas. Elas têm, entre outras vantagens, a de serem novas. Não é o caso dos xales indianos. “Preciso falar de todas as festas galantes de que elas foram testemunhas, de todas as cenas voluptuosas, para não dizer mais, em que serviram de véu? Nossas sensatas e modestas francesas ficariam um pouco mais que confusas se viessem a conhecer os antecedentes do xale que lhes traz a felicidade!” De qualquer modo, o autor não quer endossar a opinião de que todos os xales já teriam sido usados na Índia, uma afirmação que seria tão falsa como a “que pretende que o chá já tenha servido para infusão antes de sair da China.” J. Rey, Études pour Servir à l’Histoire des Châles, Paris, 1823, pp. 226-227.
O “moderno”, o tempo do inferno. Os castigos do inferno são sempre o que há de mais novo neste domínio. Não se trata do fato de que acontece “sempre o mesmo”, e nem se deve falar aqui do eterno retorno. Antes, trata-se do fato de que o rosto do mundo nunca muda justamente naquilo que é o mais novo, de forma que este “mais novo” permanece sempre o mesmo em todas as suas partes. — É isto que constitui a eternidade do inferno. Determinar a totalidade dos traços em que se manifesta o “moderno” significaria representar o inferno.
“Se guardamos da história apenas os fatos mais gerais, os que se prestam aos paralelos e às teorias, basta — como dizia Schopenhauer — conferir com Heródoto o jornal da manhã: tudo o que ocorre no intervalo, repetição evidente e fatal dos fatos mais longínquos e dos fatos mais recentes, torna-se inútil e fastidioso.” Rémyv de Gourmont, Le II Livre des Masques, Paris, 1924, p. 259. A passagem não é muito clara. Ao pé da letra, dever-se-ia supor que a repetição no decurso histórico refere-se tanto aos grandes fatos quanto aos pequenos. Porém, o autor provavelmente se refere apenas aos primeiros. É preciso mostrar, em vez disso, que é justamente nos detalhes do que ocorre no intervalo que se manifesta o eternamente igual.
“Eis o que podemos ainda amar: o bloco imponente desses edifícios delirantes e frios espalhados em toda a Europa, desprezados e negligenciados pelas antologias e pelos estudos.” Salvador Dalí, “L’âne pourri”, in: Le Surréalisme au Service de la Révolution, ano I, n° 1, Paris, 1930, p. 12. Talvez cidade alguma contenha exemplos mais perfeitos deste Jugendstil do que Barcelona, nos edifícios do arquiteto que projetou a igreja da Sagrada Família.
Após a Comuna: “A Inglaterra acolheu os proscritos e fez de tudo para retê-los: por ocasião da Exposição de 1878, foi possível perceber que ela acabava de tirar da França e de Paris o primeiro lugar nas indústrias da arte. Se o Modern Style voltou à França em 1900, isso talvez tenha sido uma conseqüência longínqua da maneira bárbara pela qual foi reprimida a Comuna.” Dubech e D’Espezel, Histoire de Paris, Paris, 1926, p. 437.
“Quis-se criar um estilo eclético. As influências estrangeiras favoreceram o Modern Style, quase exclusivamente inspirado na decoração floral. Seguia-se o modelo dos pré-rafaelistas ingleses e dos urbanistas de Munique. À construção em ferro sucedeu o cimento armado. Para a arquitetura, esse foi o ponto mais baixo da curva, que coincidiu com a mais profunda depressão política. Foi nesse momento que Paris recebeu suas casas e seus monumentos mais bizarros, os que menos harmonizavam com a cidade antiga: a casa de estilo compósito construída pelo Sr. Bouwens no n° 27 do Quai d’Orsay, os abrigos do metrô, a loja de departamentos La Samaritaine, erguida pelo Sr. Frantz Jourdain no meio da paisagem histórica do bairro Saint-Germain l’Auxerrois.” Dubech e D’Espezel, op. cit., p. 465.
“O que o Sr. Arsène Alexandre então chama de ‘o encanto profundo das serpentinas agitadas pelo vento’ é o estilo polvo, a cerâmica verde e mal cozida, as linhas forçadas e esticadas em ligamentos tentaculares, a matéria torturada em vão… A moranga, a abóbora, a raiz de malva, a voluta de fumaça inspiram um mobiliário ilógico sobre o qual vêm pousar a hortênsia, o morcego, a angélica, a pena de pavão, invenções de artistas presos à má paixão pelo símbolo e pelo poema… Numa época de luz e de eletricidade, o que triunfa é o aquário, o esverdeado, o submarino, o híbrido, o venenoso.” Paul Morand, 1900, Paris, 1931, pp. 101-103.
“Pareceu-me interessante que um número de revista [Nota: Minotaure, n° 3-4] onde foram apresentados alguns admiráveis exemplos da arte Modern Style, reunisse também um certo número de desenhos medianímicos… Na verdade, é inevitável que fiquemos chocados com as afinidades entre as tendências desses dois modos de expressão: o que é o modern style, eu me pergunto, senão uma tentativa de generalização e adaptação do desenho, da pintura e da escultura medianímicos à arte imobiliária e mobiliária? Encontra-se aí a mesma disparidade nos detalhes, a mesma impossibilidade de se repetir, que leva justamente à verdadeira, à cativante estereotipia; encontra-se o mesmo deleite colocado na curva que nunca acaba, como a da samambaia nascente, a do caracol ou a do enrodilhado embrionário, cuja observação, aliás excitante, desvia do prazer do conjunto… Pode-se afirmar, então, que os dois empreendimentos são concebidos sob o mesmo signo, que poderia bem ser o do polvo, ‘do polvo’, como disse Lautréamont, ‘de olhar de seda’. De uma parte a outra é, plasticamente, até no traço, o triunfo do equívoco; do ponto de vista da interpretação é, até no insignificante, o triunfo do complexo. Mesmo o empréstimo, contínuo até o fastio, de temas — acessórios ou não — ao mundo vegetal, é comum a esses dois modos de expressão, que em princípio respondem a necessidades de exteriorização tão distintas. E eles compartilham também uma certa propriedade que eles têm de evocar superficialmente … certas produções da antiga arte asiática ou americana.” André Breton, Point du Jour, Paris, 1934, pp. 234-236.
“Assim como os móveis atraem-se uns aos outros — o entorno do sofá e a chapeleira são o resultado de tais uniões! — igualmente as paredes, o assoalho e o teto parecem ser possuídos por uma singular capacidade de atração. Os móveis tornam-se cada vez mais intransportáveis, aninham-se nas paredes e nos cantos, prendem-se ao assoalho e fincam raízes… Obras de arte ‘livres’, quadros pendurados e esculturas expostas são eliminados na medida do possível; desta tendência origina-se o desenvolvimento da pintura mural, do afresco, da tapeçaria decorativa e da pintura em vidro… Todo o conteúdo permanente da casa é subtraído desta maneira do mercado de troca; o próprio morador é privado de sua liberdade de circular e fica preso ao solo e à propriedade.” Dolf Sternberger, “Jugendstil”, Die Neue Rundschau, XLV, 9 set. 1934, pp. 264-266.
“Por intermédio do contorno voluptuoso e poderoso … a figura da alma se torna ornamento… Maeterlinck, em Le Trésor des Humbles [O tesouro dos humildes], celebra o silêncio, o silêncio que não se origina do arbítrio de dois indivíduos, mas flui e cresce como um terceiro ser, um ser particular, que enlaça os amantes, selando desta maneira sua união: assim tal invólucro de silêncio manifesta-se claramente como uma forma de contorno ou como uma forma verdadeiramente animada do ornamento.” Dolf Sternberger, “Jugendstil”, Die Neue Rundschau, XLV, 9 set. 1934, p. 270.
“Assim, cada casa parece … ser um organismo que expressa seu interior no exterior, e Van de Velde revela … claramente o modelo de sua concepção visionária da cidade dos caracteres… ‘Quem, ao contrário, objetar que isto seria um selvagem carnaval…, deve lembrar-se da impressão harmoniosa e prazerosa provocada por um jardim com plantas terrestres e aquáticas desenvolvendo-se livremente.’ Se a cidade é um jardim cheio de organismos habitacionais crescendo livremente, falta completamente nesta visão o lugar que o homem deve ocupar nela, a menos que ele ficasse preso no interior dessas plantas, ele próprio enraizado e preso ao solo — à terra ou à água —, como se estivesse incapacitado por um feitiço (metamorfose) de mover-se de maneira diferente do que a planta que o envolve e emoldura… Como um corpo astral, tal como o viu e vivenciou Rudolf Steiner…, cuja escola deu a muitas de suas produções uma consagração ornamental, com signos curvilíneos que nada mais são do que vestígios dos ornamentos do Jugendstil.” Cf. a epígrafe do ensaio, Ovídio, Metamorfoses, livro III, versos 509-510: “O corpo desaparecera. Mas em vez do corpo, uma flor / Amarela como o açafrão adornado de folhas brancas.” Sternberger. “Jugendstil”, loc. cit., pp. 268-269 e 254.
O seguinte olhar sobre o Jugendstil é muito problemático, pois nenhuma manifestação histórica pode ser concebida somente sob a categoria da fuga; esta carrega sempre, de forma concreta, a marca daquilo de que se foge. “O que permanece fora … é o burburinho das cidades, a fúria monstruosa, não dos elementos, e sim das indústrias, o poder onipresente da moderna economia de mercado, o mundo das empresas, do trabalho tecnológico e das massas, que parecia aos exponentes do Jugendstil como um alarido geral, sufocante e caótico.- Dolf Sternberger, “Jugendstil”, Die Neue Rundschau, XLV, 9 set. 1934, p. 260.
O Jugendstil e a política social de habitação. “A arte que virá será mais pessoal do que qualquer uma que a precedeu. Em época alguma o desejo do homem por autoconhecimento foi tão forte, e o lugar por excelência onde ele pode viver e transfigurar sua própria individualidade é a casa, que cada um de nós construirá segundo seu desejo… Em cada um de nós dormita uma capacidade de invenção ornamental suficientemente grande, de modo que não precisamos lançar mão de nenhum intermediário para construir nossa casa.” Após esta citação extraída de Renaissance im modernen Kunstgewerbe, de Van de Velde, Karski prossegue: “Para qualquer um que leia este texto deve ficar absolutamente claro que este ideal não pode ser alcançado na nossa sociedade atual e que sua realização fica reservada ao socialismo.” J. Karski, “Moderne Kunstströmungen und Sozialismus”, Die Neue Zeit, XX, n° 1, Stuttgart, pp. 146-147.
Assim como Ibsen, em Solness, o Construtor, faz o julgamento da arquitetura do Jugendstil, assim o faz a respeito de seu tipo de mulher em Hedda Gabler. Ela é a irmã dramática das diseuses e dançarinas que aparecem nuas nos cartazes do Jugendstil, sem pano de fundo real, com uma devassidão ou inocência floral.
“A rua de Paris”, na Exposição universal de 1900, em Paris, realiza de maneira extrema a idéia de casa própria característica do Jugendstil: “Aqui foi construída uma longa fileira de edifícios de formas muito diversas… O jornal satírico Le Rire construiu um teatro de marionetes… Loie Fuller, que inventou a dança serpentina, possui uma casa neste conjunto. Não muito longe dali, há uma casa que parece estar de ponta-cabeça, com o telhado fincando raízes na terra e as portas com suas soleiras apontando para o céu; chama-se ‘A Torre dos Milagres’… A idéia, em todo o caso, é original.” Th. Heine, “Die Straße von Paris”, in: Die Pariser Weltausstellung in Wort und Bild, ed. org. por Georg Malkowsky, Berlim, 1900, p. 78.
É necessário prestar atenção à relação entre Simbolismo e Jugendstil, o que aponta para o lado esotérico deste último. Thérive escreve na resenha sobre o livro de Édouard Dujardin, Mallarmé par un des Siens, Paris, 1936: “No prefácio astucioso que escreveu para o livro de Édouard Dujardin, o Sr. Jean Cassou explica que o Simbolismo era um empreendimento místico e mágico, e que colocava o eterno problema do jargão, ‘gíria sofisticada, onde se expressa a vontade de ausência e de evasão da casta artística’… O Simbolismo se prestava sobretudo aos jogos meio paródicos do sonho, às formas ambíguas, e o comentarista chega a dizer que a mistura de esteticismo e mau gosto no estilo do Chat Noir (caf’ conc’ [para café concert], mangas tufadas, orquídeas e penteados com tiaras) foi uma combinação refinada, necessária.” André Thérive, “Les livres”, Le Temps, 25 jun. 1936.
“O conforto privado era quase desconhecido entre os gregos; esses cidadãos de pequenas cidades, que erguiam em torno de si tantos admiráveis monumentos públicos, moravam em casas mais que modestas, nas quais alguns vasos — na verdade, obras-primas da elegância — constituíam todo o mobiliário.” Ernest Renan, Essais de Morale et de Critique, Paris, 1859, p. 359 (“La poésie ä l’Exposition”). Fazer uma comparação com o caráter dos cômodos na casa de Goethe. — Cf., ao contrário, o amor pelo conforto na produção de Baudelaire.
“Embora os progressos da arte estejam longe de ser comparáveis àqueles que uma nação alcança no gosto do confortável (sou obrigado a me servir dessa palavra bárbara para exprimir uma idéia pouco francesa), pode-se dizer, sem paradoxo, que os tempos e os países nos quais o conforto se tornou o principal atrativo do público foram os menos dotados do ponto de vista da arte… A comodidade exclui o estilo; um jarro de fabricação inglesa é mais adaptado à sua função que todos os vasos gregos de Vulci ou de Nola; estes são obras de arte, enquanto o jarro inglês não será nunca senão um utensílio doméstico… Resultado incontestável: o progresso da indústria na história não é absolutamente paralelo ao da arte.” Ernest Renan, Essais de Morale et de Critique, Paris, 1859, pp. 359, 361, 363 (“La poésie ä l’Exposition”).
No capitulo XXIV — “Beaux-Arts”, do Argument du Livre sur la Belgique: “Especialistas. — Um pintor para o sol, um para a neve, um para o clarão da lua, um para os móveis, um para os tecidos, um para as flores — e subdivisão de especialistas ao infinito. — A colaboração necessária, como na indústria.” Baudelaire, Œuvres, vol. II, ed. org. por Y-G. Le Dantec, Paris, 1932, p. 718.
Ingres, Réponse au Rapport sur l’École des Beaux-Arts, Paris, 1863, defende as instituições da Escola diante do ministro das Belas-Artes, a quem é dirigida a resposta, da forma mais áspera. Ele não se posiciona contra o Romantismo. Desde o começo (p. 4), refere-se à indústria: “Agora querem misturar a indústria à arte. A indústria! Nós não queremos isso! Que ela fique onde está e não venha se instalar nos degraus de nossa escola…!” Ingres insiste na importância do desenho como fundamento exclusivo do ensino da pintura. Lidar com cores é algo que se aprenderia em uma semana.
Fórmulas da emancipação em Ibsen: a exigência ideal; morrer de forma bela; residências para seres humanos [cf. I 4, 4]; responsabilidade própria (da Dama do Mar).
A idéia do eterno retorno em Zaratustra é, segundo sua verdadeira natureza, uma estilização da concepção do mundo que Blanqui apresenta ainda em seus traços infernais. É uma estilização da existência até os mínimos fragmentos de seu decurso temporal. Não obstante, o estilo de Zaratustra é desmentido pela doutrina exposta nesta obra.
Os três “temas” nos quais se manifesta o Jugendstil: o tema hierático, o tema da perversão, o tema da emancipação. Todos eles têm seu lugar nas Fleurs du Mal; a cada um deles pode-se atribuir um poema representativo do livro. Para o primeiro, “Bénédiction”, para o segundo, “Delphine et Hippolyte”, para o terceiro, “Les litanies de Satan”.
Zaratustra apropriou-se em primeiro lugar dos elementos tectônicos do Jugendstil, em contraste com seus temas orgânicos. Particularmente as pausas, que são características de seu ritmo, são um contraponto exato ao fenômeno tectônico básico desse estilo, que é a predominância da forma vazia sobre a forma cheia.
O Jugendstil força o aurático. Nunca o sol sentiu-se melhor em sua auréola radiante; nunca o olho humano foi mais brilhante do que em Fidus. Maeterlinck leva o desenvolvimento do aurático até o absurdo. O silêncio dos personagens dramáticos é uma de suas formas de expressão. A “Perte d’auréole”, de Baudelaire, opõe-se a este tema do Jugendstil da maneira mais categórica.
O Jugendstil é a segunda tentativa da arte de confrontar-se com a técnica. A primeira foi o Realismo. Neste, o problema se situava mais ou menos na consciência dos artistas. Eles ficaram inquietos com os novos procedimentos da técnica de reprodução. (A teoria do Realismo comprova isto; cf. S 5, 5.) No Jugendstil, o problema como tal já havia sido recalcado. Ele não se considerava mais ameaçado pela concorrência da técnica. Assim o confronto com a técnica que está oculto no Jugendstil se tornou tão mais agressivo. Sua recorrência a temas técnicos advém da tentativa de esterilizá-los através da ornamentação. (Alias, isto conferiu excepcional significado político ao combate que Adolf Loos empreendeu contra o ornamento.)
O luto que o outono desperta em Baudelaire. E, a época da colheita, a época em que as flores se desfazem. O outono é invocado por Baudelaire com particular solenidade. Ao outono dedica os versos que talvez sejam os mais melancólicos de seus poemas. A respeito do sol diz o seguinte:
Ele “manda as colheitas crescerem e amadurecerem
No coração imortal que sempre quer florir!”
Com a figura do coração que não quer dar frutos, Baudelaire deu seu veredito sobre o Jugendstil muito antes de seu surgimento.