Moda: Senhora Morte! Senhora Morte!
Giacomo Leopardi, Diálogo entre a Moda e a Morte.
arqui]vos de antropo[logia
“Este ano, diz Tristouse, a moda é bizarra e familiar, simples e cheia de fantasia. Todos os materiais dos diferentes reinos da natureza podem agora entrar na composição de uma roupa de mulher. Vi um vestido encantador feito de rolhas de cortiça… Um grande costureiro cogita lançar tailleurs feitos com o dorso de livros velhos, costurados com pêlo de bezerro… As espinhas de peixe são muito usadas em chapéus. Vêem-se freqüentemente deliciosas jovens vestidas como peregrinas de Santiago de Compostela, sendo sua roupa, como convém, constelada de conchas de ‘São Tiago’. A porcelana, o grés e a louça surgiram bruscamente na arte da vestimenta… As plumas decoram agora não apenas os chapéus, mas os sapatos e as luvas, e no próximo ano serão colocadas nas sombrinhas. Fazem-se sapatos de vidro de Veneza e chapéus de cristal de Baccarat… Esqueci-me de lhes dizer que, na última quarta- feira, vi nos boulevards uma velha madame vestida com pequenos espelhos aplicados e colados em um tecido. Ao sol, o efeito era suntuoso. Parecia, digamos, uma mina de ouro a passeio. Mais tarde começou a chover e a dama pareceu uma mina de prata… A moda torna-se prática e não despreza mais nada, enobrece tudo. Ela faz com a matéria o que os românticos fizeram com as palavras.” Guillaume Apollinaire, Le Poète Assassiné, nova edição. Paris, 1927, pp. 75-77.
“De todas as promessas feitas no romance de Cabet, Viagem a Icária, ao menos uma se realizou. De fato, Cabet tentara mostrar no romance, no qual está descrito o seu sistema, que o futuro estado comunista não deveria conter nenhum produto da fantasia nem sofrer qualquer tipo de mudança institucional. Por isso, banira de Icária todas as modas e, em particular, as sacerdotisas da moda, as modistas, assim como os ourives e todas as outras profissões que prestam serviço ao luxo, exigindo que as roupas, os utensílios etc. jamais fossem modificados.” Sigmund Engländer, Geschichte der französischen Arbeiter-Associationen, Hamburgo, 1864, vol. II, pp. 165-166.
A seguinte observação permite reconhecer qual o significado da moda como disfarce de determinados desejos da classe dominante. “Os donos do poder sentem uma imensa aversão a grandes transformações. Desejam que tudo fique como está, por mil anos de preferência. Seria preferível que a lua permanecesse imóvel e que o sol não se movesse! Então ninguém sentiria mais fome e teria vontade de jantar. Quando tivessem usado sua arma, os adversários não deveriam mais atirar, seus tiros deveriam ser os últimos.” Bertolt Brecht, “Fünf Schwierigkeiten beim Schreiben der Wahrheit”, Unsere Zeit, VIII, 2-3, abril de 1935, Paris/Basiléia/Praga, p. 32.
“Nós observamos ao nosso redor … os efeitos de confusão e dissipação que nos inflige o movimento desordenado do mundo moderno. As artes não assumem compromisso com a pressa. Nossos ideais duram dez anos! A absurda superstição do novo — que infelizmente substituiu a antiga e excelente crença no julgamento da posteridade — atribui ao esforço do trabalho o fim mais ilusório e o utiliza para criar o que há de mais perecível, o que é perecível por essência: a sensação do novo… Ora, tudo o que se vê aqui foi experimentado, seduziu e encantou durante séculos, e toda essa glória nos diz com serenidade: ‘EU NÃO SOU NADA DE NOVO. O Tempo pode mesmo estragar a matéria na qual existo: mas enquanto ele não me destruir, não poderá fazê-lo a indiferença ou o desprezo de algum homem digno desse nome’.” Paul Valéry, “Préambule” (prefácio ao catálogo da exposição “L’art italien de Cimabue à Tiepolo”, Petit Palais, 1935, pp. IV-VII.)
“Para entender a essência da moda atual, é preciso recorrer não só a motivos de natureza individual, tais como: o desejo de mudança, o senso de beleza, a paixão por se vestir, o ímpeto de se adaptar aos padrões. Sem dúvida, tais motivações interferiram em diversas épocas … na criação das roupas… Entretanto, a moda, tal como se entende hoje, não tem motivações individuais, mas tão-somente uma motivação social; no momento em que se entende isso, chega-se à compreensão de toda a sua essência. Trata-se do empenho das classes altas de se distinguirem das mais baixas, ou melhor, das classes médias… A moda é a barreira — erigida sem cessar e sempre de novo demolida — através da qual o mundo elegante procura isolar-se das regiões medianas da sociedade. Trata-se da procura desenfreada da vaidade social, na qual se repete sem cessar um mesmo fenômeno: o esforço de um grupo para estabelecer a liderança, ainda que seja mínima a distância que o separe dos perseguidores, e o esforço destes de neutralizar essa vantagem através da adoção imediata da nova moda. Explicam-se assim os traços característicos da moda atual. Primeiramente seu surgimento nas camadas superiores da sociedade e sua imitação nas camadas médias. A moda se move de cima para baixo, não de baixo para cima… Uma tentativa das classes médias de lançar uma moda nova jamais … seria bem-sucedida; embora nada fosse mais desejável para as camadas mais altas do que a adotação de uma moda própria por parte daquelas classes. ([Nota:] Isto não as impede, contudo, de procurar novos padrões na cloaca do meio-mundo parisiense e lançar modas que carregam claramente na testa o carimbo de sua origem licenciosa, como Fr. Vischer demonstrou de maneira convincente em seu ensaio sobre a moda, … muito criticado, porém, na minha opinião, altamente meritório.) Daí vem a mudança contínua da moda. Tão logo as classes médias adorem a moda recém-lançada, esta perde seu valor para as classes superiores… Por isso, a novidade é a condição imprescindível da moda… A sua duração é inversamente proporcional à rapidez de sua difusão; seu caráter efêmero acentuou-se em nossos tempos na mesma medida em que se multiplicaram os meios para sua difusão graças ao aperfeiçoamento dos nossos meios de comunicação… E, finalmente, a referida motivação social explica também o terceiro traço característico de nossa moda atual: sua … tirania. A moda contém o critério exterior segundo o qual uma pessoa … ‘faz parte da sociedade’. Quem não quer abrir mão disso é obrigado a segui-la, mesmo que rejeite totalmente uma nova tendência dela… Com isso é decretada também a sentença da moda… Caso as camadas sociais, que são fracas e tolas o suficiente para imitá-la, conseguissem atingir o sentimento de sua dignidade e auto-estima…, chegar-se-ia ao fim da moda, e a beleza poderia, por sua vez, recuperar o lugar que ocupou em todos os povos que não sentiram a necessidade de acentuar as diferenças de classes através do vestuário, ou, onde isso ocorreu, tenham sido bastante razoáveis para respeitá-las.” Rudolph von Jhering, Der Zweck im Recht, vol. II, Leipzig, 1883, pp. 234-238.
Sobre a época de Napoleão III: “Ganhar dinheiro torna-se objeto de um ardor quase sensual, e o amor, uma questão de dinheiro. À época do Romantismo francês, o ideal erótico gravitava em torno da grisette; agora é a vez da lorette que se vende… Ocorreu na moda uma nuance marota: as senhoras usam colarinhos e gravatas, paletós, saias cortadas à semelhança de fraques … túnicas de zuavo, dólmãs, bengalas, monóculos. Dá-se preferência a cores fortemente contrastantes e berrantes, também para os penteados: cabelos vermelho-fogo são muito apreciados… O tipo mais característico da moda é o da grande dama que faz o papel da cocota.” Egon Frieden, Kulturgeschichte der Neuzeit, vol. III, Munique, 1931, p. 203. O “caráter plebeu” desta moda apresenta-se ao autor como “invasão … vinda de baixo”, por parte dos nouveaux riches.
Simmel indica que “a invenção da moda na época atual integra-se cada vez mais à organização objetiva do trabalho da economia”. “Não surge em algum lugar um artigo que se torna moda: ao contrário, criam-se artigos com a finalidade de tornar-se moda.” A oposição enfatizada nesta última frase poderia dizer respeito em certa medida àquela existente entre a era burguesa e a era feudal. Georg Simmel, Philosophische Kultur, Leipzig, 1911, P. 34 (“A moda”).
“A idéia tola e funesta de opor o conhecimento aprofundado dos meios de execução— trabalho sensatamente mantido … ao ato impulsivo da sensibilidade singular é um dos traços mais certos e mais deploráveis da leviandade e da fraqueza de caráter que marcaram a era romântica. A preocupação com a duração das obras já se enfraquecia e cedia, nos espíritos, ao desejo de surpreender: a arte se viu condenada a um regime de rupturas sucessivas. Nasceu um automatismo da ousadia. Esta tornou-se imperativa como fora a tradição. Enfim, a Moda, que é a mudança em alta freqüência do gosto de uma clientela substituiu sua mobilidade essencial às lentas formações dos estilos, das escolas, das grandes celebridades. Mas dizer que a Moda se encarrega do destino das Belas Artes é o bastante para dizer que o comércio aí se intromete.” Paul Valéry, Pièces sur l’Art, Paris, pp. 18-488 (“Sobre Corot”).
Cada geração vivencia a moda da geração imediatamente anterior como o mais radical dos antiafrodisíacos que se pode imaginar. Com esse veredicto, ela não comete um erro tão grande como se poderia supor. Em cada moda há um quê de amarga sátira ao amor; em cada uma delas delineiam-se perversões da maneira mais impiedosa. Toda moda está em conflito com o orgânico. Cada uma delas tenta acasalar o corpo vivo com o mundo inorgânico. A moda defende os direitos do cadáver sobre o ser vivo. O fetichismo que subjaz ao sex appeal do inorgânico é seu nervo vital.
Nascimento e morte — o primeiro, pelas circunstâncias naturais; a segunda, por circunstâncias sociais — limitam consideravelmente a margem de liberdade da moda, quando se tornam atuais. Este estado de coisas é realçado por uma dupla circunstância. A primeira refere-se ao nascimento e mostra como a recriação natural da vida é “superada” pela novidade no domínio da moda. A segunda refere-se à morte. No que concerne à morte, ela não aparece menos “superada” na moda, quando esta liberta o sex appeal do inorgânico.
Rey argumenta a favor das caxemiras francesas. Elas têm, entre outras vantagens, a de serem novas. Não é o caso dos xales indianos. “Preciso falar de todas as festas galantes de que elas foram testemunhas, de todas as cenas voluptuosas, para não dizer mais, em que serviram de véu? Nossas sensatas e modestas francesas ficariam um pouco mais que confusas se viessem a conhecer os antecedentes do xale que lhes traz a felicidade!” De qualquer modo, o autor não quer endossar a opinião de que todos os xales já teriam sido usados na Índia, uma afirmação que seria tão falsa como a “que pretende que o chá já tenha servido para infusão antes de sair da China.” J. Rey, Études pour Servir à l’Histoire des Châles, Paris, 1823, pp. 226-227.
O “moderno”, o tempo do inferno. Os castigos do inferno são sempre o que há de mais novo neste domínio. Não se trata do fato de que acontece “sempre o mesmo”, e nem se deve falar aqui do eterno retorno. Antes, trata-se do fato de que o rosto do mundo nunca muda justamente naquilo que é o mais novo, de forma que este “mais novo” permanece sempre o mesmo em todas as suas partes. — É isto que constitui a eternidade do inferno. Determinar a totalidade dos traços em que se manifesta o “moderno” significaria representar o inferno.
“Se guardamos da história apenas os fatos mais gerais, os que se prestam aos paralelos e às teorias, basta — como dizia Schopenhauer — conferir com Heródoto o jornal da manhã: tudo o que ocorre no intervalo, repetição evidente e fatal dos fatos mais longínquos e dos fatos mais recentes, torna-se inútil e fastidioso.” Rémyv de Gourmont, Le II Livre des Masques, Paris, 1924, p. 259. A passagem não é muito clara. Ao pé da letra, dever-se-ia supor que a repetição no decurso histórico refere-se tanto aos grandes fatos quanto aos pequenos. Porém, o autor provavelmente se refere apenas aos primeiros. É preciso mostrar, em vez disso, que é justamente nos detalhes do que ocorre no intervalo que se manifesta o eternamente igual.