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SOBRE O HORROR I

A meditação na música ou no sono, em sentido profundo, a maneira mais fácil de fazer sentir o horror no despertar, a partir de um estado de contemplação e concentração profundo. Este pode ser desencadeado de modo incomparavelmente mais forte e mais fácil do que todas aquelas outras percepções do rosto. Aqui, por outro lado, mais fortemente pela percepção mais íntima das pessoas do sexo feminino (e, provavelmente, do mesmo modo tanto para os homens como para as mulheres) <.> Assim, portanto, como eidética do caso ideal do horror, o aparecimento da mãe, no sentido mais profundo, seria percebido pela pessoa e, através dele, esta é despertada. A análise seguinte pode esclarecer até que ponto, nesta descrição, as “condições experimentais” ainda são indicadas inexatamente e, portanto, o horror sob tais condições ainda não se apresenta prontamente evidente.

O estado presumido da meditação necessita, particularmente, da determinação pormenorizada. Há estados de meditação, precisamente em sua profundeza, que não obstante tornam as pessoas não distraídas, mas altamente atentas. Mas a pessoa, na presença do espírito, não está sujeita ao horror. O único tipo de presença de espírito que tem estabilidade e que não pode ser minada é o da meditação sagrada, tal como o da oração. Nesta meditação aparece às pessoas não tão facilmente o fantasmagórico – e se ele assim pode aparecer como fantasmas, que é muito questionável, em todo o caso não provocaria qualquer horror. Portanto este tipo de meditação está longe de favorecer o horror, a mais segura proteção contra este.

Mas que tipo de meditação se coloca contra o sagrado, que predispõe ao horror? Aquela em que a pessoa não está completamente absorvida em Deus e, com isso, também não o está em si mesma, mas sim no alheio e, por conseguinte, está apenas incompletamente absorvida. Em torno desta incompletude, ainda que profunda, mas sempre absorção distraída, se expressa um esquema figurado: a alma forma um turbilhão no qual, de todos os membros e áreas do corpo vivo, os momentos espirituais estão envolvidos, e então o corpo vivo se despotencializa sob a ausência de espírito, praticamente desencarnado, portanto, e de fato deixa para trás apenas o corpo material. Com esta ausência do espírito volatiliza-se (que é apenas outra palavra para isto) o corpo vivo, e o corpo material é deixado para trás sem a distância dissoluta e distintiva do corporal e do espiritual, que assim expressa que o corpo material humano, em estado de distração espiritual, não possui qualquer limite. O percebido, sobretudo aquele percebido no rosto que agora refrata em seu interior, também a partir do corpo material estranho, arremete o espírito-corpo vivo no turbilhão e se mantém, ao lado do sentimento, na percepção visual do horror: você está à vista dos outros (“você” porque não há nenhum limite) em contrapartida, o sentimento: esse é o seu duplo no “outro”, mas agora relacionado com um corpo material não-limitado e desencarnado. Isto mostra claramente que o fenômeno originário do duplo não necessita de uma igualdade ou similaridade de objetos duplos para se fazer presente, mas, pelo contrário, que a igualdade é muito mais do que aquilo que se ajusta facilmente ao domínio do duplo. Uma pessoa pode, no momento de seu maior espanto, decidir imitar aquilo que a assustara.

O horror é um fenômeno que pode se ajustar apenas cara a cara, ou seja, apenas para um sujeito e apenas diante de outro (neste último caso não numérico, mas essencialmente um). Esta é mais uma vez a função do duplo, cuja relação com esta esfera do fantasmagórico, do corpo vivo despotencializado que, contudo, ainda é pouco clara.

Um esquema figurado, uma representação da modalidade existencial do corpo vivo, no caso da oração, ainda estaria por ser encontrado.

Muito importante: com a despotencialização do corpo vivo no horror fica suprimida também a antítese da linguagem e, na verdade, não apenas o acústico, mas a linguagem em sentido lato, como expressão, possibilidade a partir da qual, como graça incompreensível, parece com o costume de deambular sonâmbulo sobre uma corda.

SOBRE O HORROR II

A mudez no horror, uma vivência primeva. De repente é abandonado na plenitude de todas as outras forças, no meio das pessoas em plena luz do dia da língua, de cada possibilidade de expressão. E a consciência do eu: que essa mudez, impotência de expressão habitando tão profundamente na pessoa, em contrapartida, impõe nela o patrimônio da linguagem, do mesmo modo que esta impotência dos antepassados seria transmitida neles como atavismo.

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ESQUEMAS DO PROBLEMA PSICOFÍSICO

I. Espírito e corpo vivo

Eles são idênticos apenas como abordagens, não como objetos. A zona de sua identidade designa o termo “forma”. Em cada estágio de sua existência, o espírito-corporal é a forma do histórico, portanto a espírito-corporalidade é de alguma maneira a categoria de seu “instante”, sua manifestação momentânea como perecível-imperecível. Corpo vivo e espírito, com o sentido idêntico de corpo vivo, são então as supremas categorias de forma do acontecimento do mundo, mas não a categoria de seu conteúdo eterno, como faz dela a abordagem da escola georgiana. Nosso corpo vivo não é assim um processo histórico implicado em si, mas apenas o estar-nele respectivo, sua modificação de forma em forma não é função do acontecimento histórico em si, mas da respectiva relação abstrata de uma vida sobre este. Assim um corpo vivo pode se tornar real para todos, porém não como o substrato ou a substância de seu ser mais íntimo, como é o corpo material, mas sim como um fenômeno na exposição de seu “instante” histórico. Talvez seja mais conveniente chamar o espírito encarnado de “engenho”.

Em geral, podemos dizer: todo real é forma contanto que ele seja considerado no modo de seu processo histórico, que é significativo para o todo tal como para seu “instante”, alojado no âmago de seu presente temporal. Toda forma desse tipo pode se manifestar em dois modos idênticos, que talvez estejam em uma relação polar: como engenho e como corpo vivo.

II. Espírito e corpo material

Enquanto corpo vivo e engenho podem se tornar real para todos a partir de sua relação presente com o processo histórico (e não apenas com Deus), o corpo material, e o espírito que lhe pertence, são fundados pura e simplesmente na existência, não na relação. O corpo material é uma entre as realidades que estão no próprio processo histórico. Como ele se difere do corpo vivo poderá ser ilustrado, por ora, pelo exemplo do ser humano. Tudo que a pessoa tem de si mesma como algo da percepção formal, que aparece na sua totalidade bem como em membros e órgãos, contanto que lhe seja plasmado, pertence ao seu corpo vivo. Todas as limitações que ela percebe em si mesma, sensualmente, pertencem igualmente a esta forma. Disso resulta que a existência única da pessoa percebida sensualmente é a percepção de uma relação na qual ela se encontra, mas não a percepção de um substrato, de uma substância própria, tal como o corpo material representa sensualmente. Pelo contrário, isto se manifesta numa dupla polaridade peculiar: como prazer e como dor. Em ambos não é percebida nenhuma forma, nenhuma limitação. Portanto, se nós tomamos conhecimento sobre nosso corpo material, apenas ou principalmente, através do prazer e da dor, então não conhecemos nenhuma limitação dele. Neste ponto é necessário tê-los em mente, sob as modificações da consciência do eu, já que tal limitação é tão estranha quanto os estados de prazer e dor que, em seu mais alto desenvolvimento, constituem a embriaguez. Esses estados são inicialmente os da percepção. Embora com diferenças de graus. A percepção visual, em contraste com a percepção gustativa, mais centripetamente dirigida, e especialmente com a percepção tátil, que poderíamos chamar formalmente centrífuga, é provavelmente aquela criada de forma mais ilimitada. A percepção visual mostra o corpo material, quando não ilimitado, ainda no limite amorfo e vacilante.

De maneira geral, pode-se então dizer: pelo que sabemos da percepção, sabemos do nosso corpo material que, em contraste com nosso corpo vivo, se estende sem limite formal determinado. Então, na verdade, este corpo material não é o substrato último de nosso ser, mas, todavia, a substância para a distinção do corpo vivo, do qual é apenas função. No sentido mais profundo, o corpo material é objetivo e por isso deve ser localizado, mais ainda do que no esclarecimento do engenho idêntico ao corpo vivo, na clarificação da “natureza” espiritual do ser vivente, que está ligada ao corpo material e presa a ele. Aqui a dificuldade está no fato de que a natureza é afirmada como pertencente ao corpo material, porém novamente indicando enfaticamente a limitação e o pormenor dos seres viventes. Essa realidade limitada, que é constituída através da fundação de uma natureza espiritual em um corpo material, chama-se a persona. De fato a persona está agora limitada, mas não formada. Portanto ela tem sua singularidade que, decerto, pode se atribuir um sentido seguro, mas não proveniente de si própria, porém da amplitude de sua extensão máxima. Assim é ao mesmo tempo com sua natureza e seu corpo material: eles não estão limitados de modo estruturado, mas ainda limitados através de um máximo de interpretação <sic>, o povo.

III. Corpo vivo e corpo material

A pessoa pertence ao corpo vivo e ao corpo material em conexões universais. Com um e outro, no entanto, de maneiras muito diversas: com o corpo vivo da humanidade, com o corpo material de Deus. Ambos os limites para com a natureza são precários, ambos os incrementos determinaram aqui o acontecimento do mundo a partir de seus fundamentos mais profundos. O corpo vivo, a função do presente histórico nos seres humanos, cresce para o corpo vivo da humanidade. A “individualidade” como princípio do corpo vivo é maior do que as individualidades corporais singulares. A humanidade como individualidade é a conclusão e simultaneamente o declínio da vida corporal. Declínio: porque com ele se alcança aquela vida histórica, cuja função do corpo vivo é o seu fim. Nesta vida do corpo vivo da humanidade e, portanto, neste declínio e nesta realização, pode a humanidade, excetuada a totalidade dos vivos, ainda que parcialmente, abranger a natureza através da técnica: objetos inanimados, plantas e animais, na qual se forma a unidade de suas vidas. Por fim pertence a sua vida, aos seus membros, tudo o que serve a sua felicidade.

A natureza corporal vai contra a sua dissolução, em comparação com a ressurreição de sua corporeidade. Do mesmo modo, sobre esta se encontra o momento decisivo na pessoa. O corpo material é para a pessoa a chancela de sua solidão e ela não vai se partir – nem mesmo na morte – visto que esta solidão não é nada mais que a consciência de sua dependência direta de Deus. O que, para cada pessoa, no âmbito de sua percepção, de suas dores e de seu prazer máximo, é salvo com ela na ressurreição. (Este prazer máximo não tem, obviamente, nada a ver com a felicidade) Dor é regida, prazer é avaliado <?> princípio do corpo material.

Portanto há na história natural os dois grandes decursos: dissolução e ressurreição.

IV. Espírito e sexualidade/Natureza e corpo material

Espírito e sexualidade são as forças potenciais polares da “natureza” dos seres humanos. A natureza não é algo que pertence especialmente a cada corpo material singular. De fato, na sua relação com a singularidade do corpo material, ela é comparável com a relação das correntes do oceano com as gotas d’água individuais. Um sem número destas gotas é tomado da mesma corrente. Assim é também a natureza, embora não em todas, mas respectivamente em muitíssimas pessoas, a mesma. E no verdadeiro sentido de mesma e idêntica, não apenas igual. Ela não é constante, mas sua corrente muda com os séculos e, ao mesmo tempo, sempre será encontrado um número maior ou menor de tais correntes. Sexualidade e espírito são os dois pólos vitais dessa vida natural que flui para o corpo material e nele se diferencia. Assim é o espírito, bem como a sexualidade na origem, algo de natural e aparecerá no transcurso como um corpóreo. O conteúdo de uma vida depende do quanto o vivente consegue manifestar corporeamente sua natureza. A decadência completa do ideal da corporeidade, como experimenta o mundo ocidental atual, permanece como o último instrumento para sua renovação, o tormento da natureza, que na vida já não mais se deixa apreender e corre irrefreavelmente, em correntes selvagens, sobre o corpo material. A própria natureza é totalidade e o movimento descendente no insondável da vitalidade total é destino. O movimento ascendente a partir deste insondável é arte. Mas porque a vitalidade total na arte tem o seu efeito redentor singular, qualquer outra forma de expressão conduz ao aniquilamento. A representação da vitalidade total na vida deixa o destino desembocar na loucura. Porque toda reatividade vital está ligada a diferenciação, seu instrumento mais nobre é o corpo material. Esta sua determinação é reconhecida como essencial. O corpo material como instrumento de diferenciação das reações vitais, e apenas ele, é simultaneamente a sua vitalidade psíquica a ser apreendida. Toda vivacidade psíquica localiza-se nele de maneira diferenciada, mais ou menos como a antiga antroposofia empreendia na analogia do corpo material com o macrocosmo. O corpo material tem, na percepção, uma das determinações mais importantes da diferenciação; a zona das percepções também mostra mais claramente a variabilidade que ele está sujeito como função da natureza. Altera-se a natureza, então se altera as percepções do corpo material.

O corpo material é um instrumento moral. Ele é criado para o cumprimento do mandamento. Logo, ele foi instituído pela criação. Mesmo as suas percepções denotam o quanto subtrai ou traslada nelas seu dever.

V. Prazer e dor

Na diferença física entre prazer e dor está contida sua leitura metafísica. Sob esta diferença física resta, por fim, duas como elementares e irredutíveis. Do ponto de vista do prazer, seu caráter fulminante e uniforme o diferencia da dor; do ponto de vista desta, seu caráter crônico e diverso a diferencia do prazer. Somente a dor, mas nunca o prazer, pode se tornar o sentimento concomitante crônico dos processos orgânicos constantes. Só ela, nunca o prazer, é capaz da diferenciação extrema conforme a natureza dos órgãos, da qual ela provém. Isto está implícito na língua que, no alemão, para o máximo de prazer só são conhecidos os superlativos de Süßen [doçura] ou de Wonne [delícia], dos quais, na verdade, apenas o primeiro é acertada e inequivocamente sensual. Por conseguinte, o sentido mais baixo, o paladar, empresta a designação de sua sensação orgânica positiva para a expressão de todo o prazer sensual. Completamente diferente das designações da dor. Nas palavras: Schmerz [dor], Weh [mágoa], Qual [martírio], Leiden [sofrimento] está por toda a parte mais claramente pronunciado que – o que para o prazer, no campo da designação linguística, apenas aproximadamente está implícito na palavra “Wonne” [delícia] –, na dor, a ausência de toda e qualquer metáfora é diretamente afetada pelo simbólico, o anímico. Talvez seja justamente relacionado a isto que os sentimentos de dor são em grande medida incomparáveis como os sentimentos de prazer genuínos, portanto não são capazes apenas de uma variabilidade moderada de grau. Mas certamente existe uma ligação entre este valor inquebrantável do sentimento de dor para a essência integral da humanidade e sua capacidade de permanência. E esta permanência, por sua vez, conduz diretamente ao campo daquelas diferenças físicas exatamente correspondentes, e as diferenças metafísicas desses dois sentimentos as esclarecem. Apenas o sentimento de dor é capaz, nomeadamente, tanto no físico como no metafísico, da realização ininterrupta de um tratamento temático. A essência da pessoa é o instrumento perfeito da dor; apenas no sofrimento humano a dor chega a sua mais pura e adequada manifestação, apenas na vida humana ela deságua. Somente a dor, de todos os sentimentos do corpo material, é para a pessoa como um rio navegável que jamais se esgota a água, que a conduz para o mar. O prazer se mostra por toda parte onde a pessoa aspira a lhe dar sequência, como um beco sem saída. Na verdade, ele é apenas um presságio de um outro mundo, não como a dor, uma ligação entre os mundos. Portanto o prazer orgânico é intermitente, enquanto que a dor pode se tornar permanente.

Esta relação de prazer e dor está ligada ao fato de que, para o conhecimento essencial de uma pessoa, o motivo de sua maior dor é indiferente, no entanto o motivo de seu maior prazer é muito importante. Pois toda dor, mesmo a dor vã, se deixa levar até o extremo religioso, mas o prazer não é capaz de nenhum refinamento e tem sua nobreza inteira isolada da graça de seu nascimento, dirá o seu motivo.

VI. Proximidade e distância

Estas são duas relações espaciais que, na construção e na vida do corpo material, podem ser semelhantes à determinação como outros espaciais (acima e abaixo, direita e esquerda, etc.). Mas elas emergem principalmente na vida de Eros e da sexualidade. A vida de Eros se inflama pela distância. Por outro lado há um parentesco entre proximidade e sexualidade. – Sobre a distância seria possível comparar com as investigações do sonho de Klages. Ainda mais desconhecido que o efeito da distância nas relações corpóreas é o da proximidade. Os fenômenos relacionados podem ter sido repudiados e degradados a milhares de anos. – Além disso, por exemplo, subsiste uma relação precisa entre estupidez e proximidade: no fim das contas, a estupidez provém da contemplação próxima das idéias [A vaca em frente ao novo portão]. Mas precisamente esta demasiada contemplação (estúpida) próxima das idéias é uma fonte de beleza (não intermitente) permanente. Assim procede a relação entre a estupidez e a beleza.

Literatura
<Ludwig> Klages: Vom Traumbewußtsein Ztschr. für Pathopsychologie III Bd 4 Heft 1919 (ver mais estes)
<idem> Geist und Seele Deutsche Psychologie Bd I Heft 5 u Bd II Heft 6
<idem> Vom Wesen des Bewußtseins (J. A. Barth)
<idem> Mensch und Erde (Georg Müller)
<idem> Vom kosmogonischen Eros (Georg Müller)

VI. Proximidade e distância (continuação)

Quanto menos um homem é constrangido pelos laços do destino, menos o próximo o determina, seja através de circunstâncias, seja através das pessoas. Pelo contrário, tal pessoa livre tem sua proximidade própria; é ela quem a determina. A determinação própria de sua vida fatídica, pelo contrário, vem a ela da distância. Ela não regateia “considerando” o que está por vir, como se a ultrapassasse; mas com “cautela” para com o distante, ao qual ela se conforma. Eis porque é o questionamento das estrelas – mesmo entendido alegoricamente – plenamente fundamentado, como a especulação em torno do porvir. Por que o longínquo, que determina a pessoa, deve ser a própria natureza e quanto mais indivisa esta atua tanto mais pura é aquela. Por conseguinte a natureza pode, com seus menores presságios, assustar o neurótico, guiar com as estrelas os demoníacos, assim ela determina, com suas mais profundas harmonias – e apenas através destas – somente os devotos. Todos eles, não em suas ações mas sim em suas vidas, que por si só pode sim ser fatal. E aqui, mas não no campo da ação, está a liberdade em seu lugar. Justamente seu poder dispensa o vivente da determinação através do devir natural singular e permite a ele ser guiado pela existência da natureza que lhe é própria. Mas é conduzido como um dormidor. E a pessoa perfeita, sozinha em tais sonhos, a partir dos quais ela não desperta na vida. Pois quanto mais perfeita é a pessoa, tanto mais profundo é este sono – tanto mais constante e mais limitado ao fundamento originário de seu ser. Um sono, portanto, que não vem pelo ruído do próximo e nem através da voz de seus sonhos contemporâneos, no qual serão inquiridos a rebentação, os ambientes e o vento. Este mar de sono no solo profundo de toda natureza humana tem a preamar durante a noite: cada soneca apenas significa que ele banhou uma praia, a partir da qual ele se retira do tempo desperto. O que permanece: os sonhos são – como prodigiosamente formados – apenas o morto desde o regaço dessas profundezas. O vivente permanece protegido nele e sobre ele: o barco da vida desperta e os peixes como presas mudas nas redes do artista.

Assim é o mar, símbolo da natureza humana. Como sono – no mais profundo sentido figurado – traz o barco da vida com sua correnteza, que é conduzido pelo vento e pelas estrelas, como soneca no sentido próprio, ergue-se durante a noite como a maré contra a praia da vida, na qual ela devolve os sonhos.

A propósito, proximidade [e distância?] são para o sonho não menos decisivas que para o erótico. Não obstante, porém, de modo atenuado, deteriorado. A essência dessa diferença estaria ainda por ser localizada. Em si, a proximidade extrema certamente se realiza no sonho; e – talvez! – também a distância extrema?

Quanto ao problema da realidade do sonho, deve ser averiguado: a determinação da relação do mundo do sonho com o mundo da vigília, ou seja, o mundo real, é estritamente distinta da análise de sua relação com o mundo verdadeiro. Na verdade, ou no “mundo verdadeiro”, sonho e vigília já não existem mais como tal; eles podem ser mais do que símbolos de sua representação. Pois no mundo da verdade, o mundo da percepção perdeu a sua realidade. Sim, talvez o mundo da verdade não seja de maneira alguma o mundo de algum tipo de consciência. Com isso deve ser dito: o problema da relação do sonho com a vigília não é nenhuma “teoria do conhecimento”, mas uma “teoria da percepção”. As percepções não podem ser verdadeiras ou falsas, mas são problemáticas apenas em termos da competência de seu teor de significação. O sistema de tais competências possíveis, de modo geral, é a natureza da pessoa. Portanto o problema aqui é o que diz respeito, na natureza da pessoa, ao teor de significação da percepção do sonho, que concerne a sua percepção desperta. Para o conhecimento, ambos são inteiramente significantes exatamente da mesma maneira, a saber, pura e simplesmente como objetos. – Perante a percepção, nomeadamente, é sem sentido o questionamento habitual pela superioridade de um desses modos de percepção, de acordo com a maior riqueza de critérios, visto que primeiro devem ser indicados 1) que em geral existe a consciência da verdade 2) que através de tal validade seria caracterizada, em comparação, a maioria relativa dos critérios. Na realidade é 1) sem sentido a comparação nas investigações teóricas da verdade 2) a princípio, sobretudo para a consciência, é responsável unicamente a relação com a vida, mas não com a verdade. No que diz respeito à vida, nenhum desses modos de consciência é verdadeiro, mas há apenas uma diferença de seu significado para os mesmos.

Perfeito equilíbrio entre proximidade e distância no amor perfeito “vens voando e encantada”. – Dante põe Beatrice sob as estrelas. Para ele, porém, as estrelas poderiam estar próximas em Beatrice. Porque na amada se apresentam próximas ao homem as forças da distância. De tal maneira são proximidade e distância os polos da vida de Eros: eis porque é crucial o presente e a dissolução no amor. – O encanto é a magia da proximidade.

Eros é a obrigação na natureza, cujas forças estão livres por toda parte onde ele não domina. “Um grande demônio, Sócrates, [é o Eros] pois que todo demoníaco está no meio entre o deus e o mortal. – Que poder tem? Eu perguntei. – De anunciar e transmitir aos deuses o que vem dos homens e aos homens o que vem dos deuses; de uns súplicas e sacrifícios, de outros ordens e recompensas aos sacrifícios. No meio de ambos está o cumprimento, de modo que o próprio universo está ligado a si mesmo. Por meio deste demoníaco é possível do mesmo modo a profecia, e a arte dos sacerdotes nos sacrifícios, nas bênçãos, nos cantos e em toda adivinhação e encantamento. Deus não lida com os homens, mas através deste está a relação total e a conversação divina com os homens na vigília e no sono” Symposion 202/203<.> O tipo e o fenômeno originário da ligação, porém, que se encontra em cada ligação particular, é da proximidade e da distância. Esta é, além de todas as outras, a obra originária de Eros.

Relação especial de proximidade e distância para com os gêneros. Para o homem, as forças da distância devem ser determinantes, ao passo que ele determina a partir das forças da proximidade. A saudade é um devir determinado. Qual é a força a partir da qual o homem determina sua proximidade? Ela está perdida. Vôo é o movimento da saudade. Qual é o movimento encantatório que determina a proximidade? Encanto e vôo se conjugam no tipo de sonho de voar baixo sobre a terra. (A vida de Nietzsche é típica da mera determinação da distância, que é a fatalidade do mais alto sobre a pessoa acabada). Devido a esta falha da força encantatória ela não pode “se manter a distância”. E tudo que penetra em sua proximidade é dissoluto. Eis porque se tornou a proximidade o domínio do dissoluto, como na mais íntima proximidade do casal na sexualidade, terrível o suficiente para trazer à luz, e que tem sido experimentado por Strindberg. Mas o Eros ileso tem poder obrigatório e encantatório também no próximo.

“Die Verlassenen” de Karl Kraus, uma contrapartida <contraposição?> ao “Seliger Sehnsucht” de Goethe. Aqui o movimento do adejo e do vôo, acolá a paralisação encantada do sentimento. O poema de Goethe, um movimento ininterrupto poderoso; o poema de Kraus, uma interrupção desmedida e detida no meio da estrofe, como o abismo do mistério que separa o primeiro do último reciprocamente. Assim é o abismo, o fato originário que seria experimentado em toda proximidade erótica profunda.

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[B 1, 4]

III novidade

Aqui a moda inaugurou o entreposto dialético entre a mulher e a mercadoria — entre o desejo e o cadáver. Seu espigado e atrevido caixeiro, a morte, mede o século em braças e, por economia, ele mesmo faz o papel de manequim e gerencia pessoalmente a liquidação que, em francês, se chama révolution. Pois a moda nunca foi outra coisa senão a paródia do cadáver colorido, provocação da morte pela mulher, amargo diálogo sussurrado com a putrefação entre gargalhadas estridentes e falsas. Isso é a moda. Por isso ela muda tão rapidamente; faz cócegas na morte e já é outra, uma nova, quando a morte a procura com os olhos para bater nela. Durante um século, a moda nada ficou devendo à morte. Agora, finalmente, ela está prestes a abandonar a arena. A morte, porém, doa a armadura das prostitutas como troféu à margem de um novo Letes que rola pelas passagens como um rio de asfalto. ■ RevoluçãoAmor

[B 7a, 1]

A seguinte análise da moda esclarece igualmente o significado das viagens que se tornaram moda na burguesia durante a segunda metade do século: “A ênfase dos atrativos desloca-se de maneira crescente de seu centro substancial para seu início e seu fim. Isto começa com os sintomas mais insignificantes, como … a substituição do charuto pelo cigarro, manifesta-se pela mania das viagens que provoca, tanto quanto possível, uma vibração da vida em vários períodos curtos do ano, com forte ênfase sobre a partida e a chegada. O ritmo … da vida moderna traduz não só o desejo pela mudança rápida dos conteúdos qualitativos da vida, mas principalmente a força do atrativo formal da fronteira, do início e do fim.” Georg Simmel, Philosophische Kultur, Leipzig, 1911, p. 41 (“A moda”).

[B 9, 2]

III novidade

Nascimento e morte — o primeiro, pelas circunstâncias naturais; a segunda, por circunstâncias sociais — limitam consideravelmente a margem de liberdade da moda, quando se tornam atuais. Este estado de coisas é realçado por uma dupla circunstância. A primeira refere-se ao nascimento e mostra como a recriação natural da vida é “superada” pela novidade no domínio da moda. A segunda refere-se à morte. No que concerne à morte, ela não aparece menos “superada” na moda, quando esta liberta o sex appeal do inorgânico.

[D 2, 1]

Outras cidades européias acolhem as colunatas em sua fisionomia urbana; Berlim serve de exemplo com o estilo de suas portas monumentais. Característico é especialmente o Hallesches Tor, inesquecível para mim num cartão postal azulado, representando a Praça Belle-Alliance à noite. Era um cartão transparente, e olhando-o contra a luz, iluminavam-se todas as suas janelas exatamente com o mesmo brilho que emanava da lua cheia no alto do céu.

[D 3, 1]

“Em resumo, a arte clássica urbana, depois de ter apresentado suas obras-primas, esterilizou- se no tempo dos filósofos e dos fabricantes de sistemas. O século XVIII, que terminava, havia trazido à luz inúmeros projetos; a Comissão dos Artistas os reunira em corpo de doutrina, o Império os aplicava sem originalidade criadora. Ao estilo clássico, flexível e vivo, sucedia o pseudoclássico, sistemático e rígido… O Arco do Triunfo repete a porta Louis XIV, a coluna Vendôme é imitação de Roma, a Madeleine, a Bolsa de Valores e o Palais-Bourbon são templos antigos.” Lucien Dubech e Pierre d’Espezel, Histoire de Paris, Paris, 1926, p. 345. ■ Intérieur

[O 2a, 1]

Ritos de passagem – assim se denominam no folclore as cerimônias ligadas à morte, ao nascimento, ao casamento, à puberdade, etc. Na vida moderna, estas transições tornaram-se cada vez mais irreconhecíveis e difíceis de vivenciar. Tornamo-nos muito pobres em experiências liminares. O adormecer talvez seja a única delas que nos restou. (E, com isso, também o despertar.) E, finalmente, tal qual as variações das figuras do sonho, oscilam também em torno de limiares os altos e baixos da conversação e as mudanças sexuais do amor. “Como agrada ao homem”, diz Aragon, “manter-se na soleira da imaginação!” (Paysan de Paris, 1926, p. 74). Não é apenas dos limiares destas portas fantásticas, mas dos limiares em geral que os amantes, os amigos, adoram sugar as forças. As prostitutas, porém, amam os limiares das portas do sonho. – O limiar [Schwelle] deve ser rigorosamente diferenciado da fronteira [Grenze]. O limiar é uma zona. Mudança, transição, fluxo estão contidos na palavra schwellen (inchar, intumescer), e a etimologia não deve negligenciar estes significados. Por outro lado, é necessário determinar o contexto tectônico e cerimonial imediato que deu à palavra o seu significado. ■ Morada de sonho

[O 3, 3]

“A aventura do guarda municipal a cavalo, colocado como um talismã diante da porta de um jogador maltratado pela sorte, ficou nos anais de nossos círculos. O bravo soldado, que pensava estar ali para fazer as honras aos convidados de alguma festa, já estranhava o silêncio da rua e da casa, quando chegou, por volta de uma hora da manhã, a triste vítima do pano verde. Como nas outras noites, e apesar do poder do talismã, o jogador havia perdido muito. Ele toca a campainha; ninguém atende. Toca novamente; nada se move na guarita do cérbero adormecido, e a porta é inexorável. Impaciente, exasperado, amargurado por causa das perdas que acabara de sofrer, o locatário quebra uma vidraça com sua bengala para acordar o porteiro. Neste momento, o guarda, até então um simples espectador da cena noturna, julga que é seu dever intervir. Ele se abaixa, agarra o perturbador pela gola, iça-o sobre o cavalo e galopa até seu quartel, satisfeito com o pretexto válido para pôr fim a uma vigilância que o entediava… Apesar da explicação, o jogador passou o resto da noite numa cama de quartel.” Édouard Gourdon, Les Faucheurs de Nuit, Paris, 1860, pp. 181-182.

[O 5, 3]

Extraído do decreto policial de 14 de abril de 1830 sobre o regulamento da prostituição: “Art. 1: …Igualmente fica-lhes proibido aparecer a qualquer hora e sob qualquer pretexto nas passagens, nos jardins públicos e nos boulevards. Art. 2: As mulheres públicas só poderão se dedicar á prostituição nas casas de tolerância. Art. 3: As prostitutas autônomas, ou seja, aquelas que não moram nas casas de tolerância, só poderão se dirigir a essas casas depois de se acenderem os lampiões da rua. Elas deverão se dirigir diretamente a esses locais, vestidas de forma simples e decente… Art. 4: Elas não poderão, em uma mesma noite, deixar uma casa de tolerância para ir a uma outra. Art. 5: As prostitutas autônomas deverão ter deixado as casas de tolerância e voltado para seus domicílios as onze horas da noite… Art. 7: As casas de tolerância poderão ser indicadas por um lampião e, nas primeiras horas, por uma mulher idosa que se manterá à porta… Assinado; Mangin”. F. F. A. Béraud: Les Filles Publiques de Paris et la Police qui les Régit, vol. II, Paris-Leipzig, 1839, pp. 133-135.

[O 5a, 1]

-II- prostituta

Dos esclarecimentos de Béraud sobre suas propostas para um novo regulamento. 1) No que se refere à mulher idosa no limiar: “O segundo parágrafo proíbe a esta mulher ultrapassar a soleira da porta, porque, muitas vezes, acontece que ela tem a audácia de ir ao encontro dos transeuntes. Vi com meus próprios olhos essas mercadoras pegarem homens pelo braço, pelas roupas, e forçá-los, por assim dizer, a entrar em suas casas.” 2) No que se refere interdição de atividade comercial para prostitutas: “Proíbo também a abertura de lojas e boutiques nas quais as mulheres públicas se instalam como modistas, costureiras de roupa íntima, vendedoras de perfumes etc. As mulheres que ocupam essas lojas ou butiques mantêm as portas ou janelas abertas, para fazer sinais aos transeuntes… Há outras, mais astutas, que fecham suas portas e janelas, mas fazem sinais através das vidraças sem cortinas, ou essas cortinas ficam entreabertas, deixando uma fresta que permite uma comunicação fácil entre o interior e o exterior. Algumas batem na vitrine da boutique, toda vez que um homem passa, o que o faz se voltar para o lado de onde vem o ruído, e então os sinais se sucedem de uma maneira tão escandalosa que ninguém pode deixar de percebê-los. Todas essas boutiques se encontram nas passagens.” F. F. A. Béraud, Les Filles Publiques de Paris et la Police qui les Régit, vol. II, Paris-Leipzig, 1839, pp. 149-150, 152-153.

[O 6a, 2]

II o flâneur e a massa

“À primeira vista somos levados a crer que existe um grande número de mulheres públicas, por uma espécie da fantasmagoria que produzem as idas e vindas dessas mulheres, sempre nos mesmos pontos, o que parece multiplicá-las ao infinito… Há uma outra circunstância que contribui para essa ilusão: os vários tipos de roupa com as quais se disfarçam as mulheres públicas numa mesma noite. Mesmo com um olho pouco exercitado, é fácil convencer-se de que uma moça que, às oito horas, está com uma roupa elegante, rica, é a mesma que aparece às nove como costureirinha, e que se mostra às dez como camponesa, e vice-versa. É assim em todos os pontos da capital onde afluem habitualmente as prostitutas. A título de exemplo, siga uma dessas moças no boulevard, entre as portas Saint-Martin e Saint-Denis: ela está agora com um chapéu de plumas e um vestido de seda coberto com um xale; ela entra na Rue Saint-Martin, segue pelo lado direito, passa pelas pequenas ruas que chegam à Rue Saint-Denis, entra em uma das inúmeras casas de devassidão que ali se encontram, e, pouco depois, sai vestida de costureirinha ou de camponesa.” F. F. A. Béraud, Les Filles Publiques de Paris, vol. I, Paris-Leipzig, 1839, pp. 51-52. ■ Moda

[O 12, 2]

Uma descrição do baixo meretrício que se instalou nas zonas próximas à barrière. É da autoria de Du Camp e serviria de excelente legenda para muitas aquarelas de Guys: “Se empurramos a barreira e a porta que fecham a entrada, encontramo-nos num botequim guarnecido de mesas de mármore ou de madeira, e iluminado a gás; através das nuvens da fumaça espalhada pelos cachimbos, distinguimos removedores de entulho, operários de aterro, carroceiros, na maioria embriagados, sentados diante de um frasco de absinto, conversando com criaturas de aspecto tão grotesco quanto lamentável. Todas elas, e quase uniformemente, estão vestidas com aquele algodão vermelho tão apreciado pelas negras da África, e com o qual se fazem cortinas nos pequenos albergues de província. O que as cobre não pode ser chamado de vestido, é um blusão sem cintura e que se estufa sobre a crinolina. Exibindo os ombros ultrajosamente decotados e chegando apenas à altura dos joelhos, esta roupa lhes dá a aparência de grandes crianças velhas, inchadas, reluzindo de gordura, enrugadas, embrutecidas, e cujo crânio pontudo anuncia a imbecilidade. Elas têm a graça de um cão adestrado quando os inspetores, verificando o livro de registros, as chamam e elas se levantam para responder.” Maxime Du Camp, Paris: Ses Organes, ses Fonctions et sa Vie dans la Seconde Moitié du XIX Siècle, vol. III, Paris, 1872, p. 447 (“La prostitution”).

[S 2, 5]

III jugendstil

“Talvez nenhum simulacro tenha criado um conjunto de objetos aos quais se aplique com maior propriedade o conceito de ideal que o grande simulacro constituído pela perturbadora arquitetura ornamental do Modern Style. Nenhum esforço coletivo chegou a criar um mundo de sonho tão puro e tão inquietante quanto esses edifícios modern style, os quais, à margem da arquitetura, constituem por si mesmos verdadeiras realizações de desejos solidificados, nos quais o mais violento e cruel automatismo revela dolorosamente o ódio da realidade e a necessidade de refúgio num mundo ideal, à maneira do que se passa numa neurose infantil.” Salvador Dalí, “L’âne pourri”, in: Le Surréalisme au Service de la Révolution, ano I, n° 1, Paris, 1930, p. 12. ■ IndústriaReclame ■

[S 4a, 3]

III jugendstil

“A rua de Paris”, na Exposição universal de 1900, em Paris, realiza de maneira extrema a idéia de casa própria característica do Jugendstil: “Aqui foi construída uma longa fileira de edifícios de formas muito diversas… O jornal satírico Le Rire construiu um teatro de marionetes… Loie Fuller, que inventou a dança serpentina, possui uma casa neste conjunto. Não muito longe dali, há uma casa que parece estar de ponta-cabeça, com o telhado fincando raízes na terra e as portas com suas soleiras apontando para o céu; chama-se ‘A Torre dos Milagres’… A idéia, em todo o caso, é original.” Th. Heine, “Die Straße von Paris”, in: Die Pariser Weltausstellung in Wort und Bild, ed. org. por Georg Malkowsky, Berlim, 1900, p. 78.

[ +++ ]

[S 4a, 4]

Sobre a casa de cabeça para baixo: “Esta casinha, construída em estilo gótico, está literalmente de cabeça para baixo, isto é: seu telhado, com as chaminés e pequenas torres, estende-se pelo chão, enquanto os alicerces se elevam para o céu. Naturalmente, todas as janelas, portas, terraços, galerias, esquadrias, ornamentos e inscrições estão invertidos; até os ponteiros do grande relógio obedecem a esta tendência ao inverso… Embora esta idéia maluca seja divertida…, ela se torna monótona no interior. Lá ficamos nós mesmos de ponta-cabeça, como as curiosidades expostas. Lá estão uma mesa posta, um salão ricamente mobiliado e também um banheiro… O gabinete adjacente … e alguns outros cômodos estão forrados de espelhos côncavos e convexos. Os organizadores chamam-nos simplesmente de gabinetes do riso.” “Le manoir à l’envers”, in: Die Pariser Weltausstellung in Wort und Bild, ed. org. por Georg Malkowsky, Berlim, 1900, pp. 474-475.

[S 9, 4]

No Jugendstil, a burguesia começa a confrontar-se com as condições não ainda de seu domínio social, mas de seu domínio sobre a natureza. A percepção destas condições começa a exercer uma pressão sobre o limiar de sua consciência. Daí o misticismo (Maeterlinck) que procura atenuar essa pressão; mas daí também a recepção de formas técnicas no Jugendstil, p. e., o espaço vazio.

[K 1a, 6]

Não só as formas em que se manifestam os sonhos coletivos do século XIX não podem ser negligenciadas, não só elas o caracterizam de maneira muito mais decisiva do que aconteceu em qualquer século anterior: elas são também — se bem interpretadas — da maior importância prática, permitindo-nos conhecer o mar em que navegamos e a margem da qual nos afastamos. É aqui, em suma, que precisa começar a “crítica” ao século XIX. Não a crítica ao seu mecanismo e maquinismo, e sim ao seu historicismo narcótico e à sua mania de se mascarar, na qual existe, contudo, um sinal de verdadeira existência histórica, que os surrealistas foram os primeiros a captar. Decifrar este sinal é a proposta da presente pesquisa. E a base revolucionária e materialista do Surrealismo é uma garantia suficiente para o fato de que, no sinal da verdadeira existência histórica, de que se trata aqui, o século XIX fez sua base econômica alcançar sua mais alta expressão.

[K 5]

“A Paris dos Saint-Simonianos.” Do projeto enviado por Charles Duveyrier a L’Advocat, para ser integrado ao Livre des Cent-et-un (o que acabou não ocorrendo): “Quisemos dar forma humana à primeira cidade sob a inspiração de nossa fé.” “O bom Deus disse pela boca do homem que ele envia… Paris! É nas margens de teu rio e sobre o território dentro de teus muros que imprimirei o selo de minha generosidade… Teus reis e teus povos caminharam com a lentidão dos séculos e se detiveram numa praça magnífica. É ali que repousará a cabeça da minha cidade… Os palácios de teus reis serão sua fronte… Conservarei sua barba de altos castanheiros… Varrerei o velho templo cristão do alto dessa cabeça … e sobre esse terreno limpo estenderei uma cabeleira de árvores… Sobre o peito de minha cidade, nesse lar simpático de onde irradiam e para onde convergem todas as paixões, ali onde vibram as dores e as alegrias, construirei meu templo…, plexo solar do colosso… As colinas do Roule e de Chaillot serão seus flancos; colocarei ali o banco e a universidade, os mercados e as gráficas… Estenderei o braço esquerdo do colosso sobre a margem do Sena; ele estará … no lado oposto … a Passy. A associação dos engenheiros … constituirá a parte superior, que se estenderá em direção a Vaugirard; formarei o antebraço da reunião de todas as escolas especiais das ciências físicas… No vão do braço … agruparei todos os liceus, para que minha cidade os aperte contra o seio esquerdo, onde fica a Universidade… Estenderei o braço direito do colosso em sinal de força até a estação de Saint-Ouen… Encherei esse braço das oficinas da pequena indústria, de passagens, galerias, bazares… Formarei a coxa e a perna direita com todos os estabelecimentos das grandes fábricas. O pé direito pousará em Neuilly. A coxa esquerda oferecerá aos estrangeiros longas filas de hotéis. A perna esquerda se estenderá até o Bois de Boulogne… Minha cidade está na atitude de um homem prestes a caminhar; seus pés são de bronze e se apóiam sobre uma dupla estrada de pedra e de ferro. Aqui se fabricam … os veículos de transporte e os aparelhos de comunicação; aqui as carruagens disputam em velocidade… Entre os joelhos está uma arena de equitação, em forma de elipse; entre as pernas, um imenso hipódromo.” Henry-René d’Allemagne, Les Saint-Simoniens 1827-1837, Paris, 1930, pp. 309-310. A idéia desse projeto deve-se a Enfantin, que utilizou pranchas anatômicas para a planificação da cidade do futuro.