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nota do editor Esse esquema tem caráter central para o pensamento benjaminiano, pelo menos entre os anos de 1916-1920, que Scholem caracterizou assim: seu “espírito ronda e ainda vai rondar por muito tempo em torno do fenômeno do mito, do qual ele se aproxima pelas mais diferentes facetas. Da história, que ele aborda a partir do romantismo, da poesia, que ele aborda a partir de Hölderlin, da religião, que ele aborda a partir do judaísmo, e do direito. Se algum dia eu tiver a minha própria filosofia – disse-me ele – de algum modo ela será uma filosofia do judaísmo” (Scholem, Freundschaft, 45). Em relação ao dito acima Scholem apresenta sua anotação no diário de 1916: “A reviravolta decisiva de Benjamin para uma penetração filosófica do mito [em importantes conversas em junho de 1916] apareceu pela primeira vez […], disse Benjamin […], nesta relação diferencial entre direito e justiça, pela qual o direito seria uma ordem fundamentada apenas no mundo do mito. Nesta época [ele] deve ter estabelecido contato mais próximo com os escritos de Bachofen assim como com os já conhecidos escritos do etnólogo Karl Theodor Preuß sobre animismo e pré-animismo. Com freqüência ele se utilizava destes discursos sobre o pré-animismo. Isto nos fez pensar em fantasmas e o seu papel na era pré-animista” (op.cit., 44). Sem dúvida o esboço foi delineado posteriormente, a partir de 1918. No verão deste ano Benjamin “leu-me um grande esboço [perdido] de sonho e clarividência [ver nota fr 54], no qual ele também tentou formular as leis que dominavam o mundo fantasmagórico pré-mítico. Ele diferenciou duas idades históricas do fantasmagórico e do demoníaco, às quais precediam a idade da revelação” (op.cit., 80), portanto também da linguagem histórica – todas as categorias do esquema que, naquele momento, Benjamin poderia ter formulado. Fonte: Ms 667 – folha de cerca de 16,5 x 10,5 cm. nota do tradutor Outra dificuldade na tradução deste fragmento gira em torno da palavra Geniushaftes [destino], que surge no esquema contraposto a Freiheit [liberdade], reaparecendo logo no início do fr 47, na expressão geniushafter Einsamkeit [solidão do destino]. A rigor, Genius-haft significa aquilo que está ligado, que é relativo à, as qualidades e as características que são próprias do gênio, sendo assim possível traduzi-la inicialmente por ‘genial’, ‘genialidade’, ‘genioso’. Todavia Benjamin utiliza Genius e não Genie, palavras a princípio sinônimas, sendo que a primeira remete mais diretamente a origem latina de ambas, donde deriva também o substantivo ‘gênio’ em português. No seu ensaio sobre as Afinidades Eletivas, da mesma época desses dois fragmentos, Benjamin observa que “[Genie] equivale a um título que, na boca dos modernos, […] nunca se prestará a captar a relação de um homem com a arte como sendo essencial. A palavra Genius consegue isso […]” [p. 71]. Dessa forma, o que parece estar em jogo é a distinção entre uma concepção moderna de gênio [indivíduo com qualidades/talentos excepcionais, fora do comum, acima da média], idéia melhor expressa pela palavra Genie, de uma concepção mais arcaica ou, nos termos do fr 47, mais “própria do helenismo” [espírito ou demônio tutelar das artes e das ciências, de um indivíduo ou de um local e que, na crença dos romanos, presidiria o destino de cada ser humano/pessoa], concepção melhor encarnada na palavra Genius. Assim, se Geniushaftes diz respeito às características e às qualidades do Genius, à relação essencial do ser humano com arte e, por que não dizer, com a vida, algo que escapa à idéia moderna de Genie, então ‘destino’ talvez traduza melhor o termo que ‘genialidade’ ou um de seus correlatos. Vale notar que apenas neste e no fr 47 ‘destino’ traduz Geniushaft; em todos os outros fragmentos ela corresponde ao usual Schicksal.
O esquema reproduzido em facsímile é um arranjo bem sofisticado das noções elementares de uma teoria filosófico-histórico-metafísica do ser humano. Ele tem a forma de um semicírculo: sobre um raio imaginário mediano, iniciando com a noção dominante de antropologia, estão dispostas as categorias centrais de indivíduo [ Individuum ], subscrito humano [ Menschlich ], persona [ Person ], subscrito inumano [ Unmenschlich ] à esquerda do raio e sobre-humano [ Übermenschlich ] à direita, assim como – para além da periferia – pessoa [ Mensch ], subscrito divino [ Göttlich ]. À esquerda do raio surge primeiro o corpo [ Leib ] seguido do fantasmagórico [ Gespenstisches ], acrescido de baixo-corporal [ Unterleiblich ]; enquanto que à direita surge primeiro a linguagem [ Sprache ], seguida da justiça [ Gerrechtigkeit ] acrescida de extralinguístico [ Übersprachlich ]; ambas as categorias duplas estão conectadas por meio da superação dialética [ Aufhebung ] que caracteriza a área periférica inter-relacionada. Do corpo [ Leib ], conectada à noção de demoníaco [ Dämonisches ] à esquerda do raio, traça-se uma horizontal imaginária até a linguagem [ Sprache ], conectada à noção de direito [ Recht ]; estas, por sua vez, se ligam às suas correspondentes à esquerda por meio de uma linha periférica que é denominada simultâneo [ Simultan ]. Do corpo [ Leib ] à esquerda e da linguagem [ Sprache ] à direita seguem linhas de comunicação cujo ponto médio é o indivíduo [ Individuum ]. Esta categoria central é finalmente caracterizada à esquerda pelo destino [ Geniushaftes ] e à direita pela liberdade [ Freiheit ]; ambas as noções estão associadas por meio da área periférica inscrita nos outros dois círculos, denominada casamento [ Vermählung ].
Período: de 1918
A palavra alemã Mensch designa seja o Homem enquanto espécie, o ser humano, como uma pessoa em particular, um indivíduo qualquer [um homem, uma mulher, uma criança]. Nesta última acepção Mensch seria assim sinônimo tanto de Individuum quanto de Person que, por sua vez, pode também significar a pessoa de direito [física/jurídica] ou a personagem ficcional [romanesca/teatral]. Na tentativa de conservar a distinção substantiva sem romper com a sinonímia das palavras, evitando possíveis confusões conceituais, as três categorias centrais apresentadas no esquema foram assim traduzidas por ‘indivíduo’ [Individuum], ‘persona’ [Person] e ‘pessoa’ [Mensch], opções estas privilegiadas, sempre que permitido pelo contexto, na tradução dos outros fragmentos aqui reunidos. No caso específico deste fragmento o problema é que ao traduzir Mensch por ‘pessoa’ – e não ‘ser humano’, como em outros fragmentos – fica obscurecida a relação formal que o substantivo guarda com seus derivados Menschlich [humano], Unmenschlich [inumano] e Übermenschlich [sobre-humano], respectivamente subscritos às outras duas categorias centrais do esquema, Individuum e Person, enquanto Mensch [pessoa] traz subscrito Göttlich [divino]. Ou seja, no esquema ‘pessoa’ não só se relaciona com as outras duas categorias centrais de ‘indivíduo’ e ‘persona’ pela sua sinonímia como também se liga, por derivação, à ‘humano’, ‘inumano’ e ‘sobre-humano’.
baixo-corporal
[fr 46]
PROBLEMA DA PERCEPÇÃO
Em Berlim, disse-se numa expressão familiar de alguém que se considera insano: é natural de Dalldorf, em Viena: … é natural de Steinhoff, em Paris, falando no mesmo sentido de Charenton. Por toda a parte, portanto, permanece viva a percepção de que a expulsão da comunidade, a desintegração completa do elo entre a comunidade e cada pessoa seria constitutiva da doença mental. Do mesmo modo, talvez não seja por acaso que os sanatórios para os doentes não se encontram, como outros hospitais, no interior das cidades.
Afortunados em contos de fadas vêem jardins encantados onde outras pessoas nada reparam, eles se deparam com tesouros onde outros passam distraídos. Isso não pode ser entendido, que os jardins encantados ou os próprios tesouros sejam invisíveis para outras pessoas, mas tornam-se visíveis para os afortunados, ou que repentinamente diante de tais coisas a percepção de outra criatura esmoreça, porém a dos afortunados se intensifica. Neste ponto, a única intenção possível é senão que os afortunados teriam uma percepção mais aguçada do que a das pessoas comuns, sendo que nenhuma delas é falsa, por conseguinte nenhuma delas é verdadeira. A percepção não é afetada por esta alternativa.
PERCEPÇÃO E CORPO VIVO
Através de nossa corporalidade, mais precisamente através de nosso próprio corpo vivo, nós estamos no mundo da percepção, inseridos assim em uma das mais altas camadas da linguagem. Contudo cegos, geralmente incapazes, aqui como corpo vivo natural, de distinguir com precisão a aparência do ser da forma messiânica. É muito significativo que o próprio corpo vivo nos seja inacessível em tantos aspectos: não podemos ver nosso rosto, nossas costas, nem nossa cabeça por inteiro; portanto, a parte mais nobre do corpo vivo nós não podemos apanhar com as próprias mãos, não podemos abarcar, entre outras coisas. Nós nos destacamos no mundo da percepção com os pés, não com a cabeça. Daí a necessidade de que nosso corpo vivo nos transforme no instante da pura percepção; daí o martírio sublime da excentricidade em seu corpo vivo.
Há uma história da percepção, que é por fim a história do mito. O corpo vivo daquele que percebe nem sempre foi apenas as coordenadas verticais à horizontal da terra. A maneira ereta de andar conquistada gradualmente pelos seres humanos proporciona agora o predomínio de outros modos de percepção. Mas, de resto, isto não só é possível como necessário. Nem sempre o conhecimento das distâncias formais irá dominar a percepção visual (Caso de uma criança que, sem órgãos de apreensão fixados num dado local, forma o seu mundo visual: uma outra hierarquia de distâncias). A história da percepção se deu a partir dos elementos da mudança da natureza e da mudança do corpo vivo, mas somente ela dá a estes elementos o significado espiritual e coroação (realização, síntese) no mito. Nele constroem-se e transformam-se lentamente as grandes disposições da percepção que determinam o modo como se confrontam corpo vivo e natureza: direita, esquerda – acima, abaixo – para frente, para trás.
[O 11, 1]
“O jogador persegue essencialmente desejos narcisistas e agressivos de onipotência. Estes — quando não são ligados diretamente a desejos eróticos — se caracterizam por um maior raio de extensão temporal. Um desejo direto de coito pode ser satisfeito mais rapidamente através do orgasmo do que o desejo narcisista-agressivo de onipotência. O fato de a sexualidade genital deixar sempre, mesmo no caso mais favorável, um resto de insatisfação, deve-se a três fatores: nem todos os desejos pré-genitais, que mais tarde se tornam tributários da genitalidade, são passíveis de satisfação através do coito; o objeto, do ponto de vista do complexo de Édipo, é sempre um sucedâneo. A estes dois fatores … soma-se … o fato de que a impossibilidade de dar vazão à imensa agressão inconsciente contribui para a insatisfação. A agressão passível de ser liberada através do coito é muito domesticada… Assim, ocorre que a ficção narcisista e agressiva da onipotência se torna uma causa de sofrimento. Por isso, quem alguma vez experimentou o mecanismo do prazer que é possível liberar no jogo de azar — e que possui, por assim dizer, um valor de eternidade — sucumbe a ele tanto mais facilmente quanto mais estiver fixado no ‘prazer neurótico contínuo’ (Pfeifer) e quanto menos integrá-lo na sexualidade normal, em conseqüência de fixações pré-genitais… Deve-se considerar também que, segundo Freud, a sexualidade do ser humano dá a impressão de uma função que se extingue, enquanto não se pode absolutamente afirmar o mesmo a respeito das tendências agressivas e narcisistas.” Edmund Bergler, “Zur Psychologie des Hasardspielers”, Imago, XXII, n° 4, 1936, pp. 438-440.