[fr 44]

[ +++ ]

[fr 46]

PROBLEMA DA PERCEPÇÃO

Em Berlim, disse-se numa expressão familiar de alguém que se considera insano: é natural de Dalldorf, em Viena: … é natural de Steinhoff, em Paris, falando no mesmo sentido de Charenton. Por toda a parte, portanto, permanece viva a percepção de que a expulsão da comunidade, a desintegração completa do elo entre a comunidade e cada pessoa seria constitutiva da doença mental. Do mesmo modo, talvez não seja por acaso que os sanatórios para os doentes não se encontram, como outros hospitais, no interior das cidades.

Afortunados em contos de fadas vêem jardins encantados onde outras pessoas nada reparam, eles se deparam com tesouros onde outros passam distraídos. Isso não pode ser entendido, que os jardins encantados ou os próprios tesouros sejam invisíveis para outras pessoas, mas tornam-se visíveis para os afortunados, ou que repentinamente diante de tais coisas a percepção de outra criatura esmoreça, porém a dos afortunados se intensifica. Neste ponto, a única intenção possível é senão que os afortunados teriam uma percepção mais aguçada do que a das pessoas comuns, sendo que nenhuma delas é falsa, por conseguinte nenhuma delas é verdadeira. A percepção não é afetada por esta alternativa.

PERCEPÇÃO E CORPO VIVO

Através de nossa corporalidade, mais precisamente através de nosso próprio corpo vivo, nós estamos no mundo da percepção, inseridos assim em uma das mais altas camadas da linguagem. Contudo cegos, geralmente incapazes, aqui como corpo vivo natural, de distinguir com precisão a aparência do ser da forma messiânica. É muito significativo que o próprio corpo vivo nos seja inacessível em tantos aspectos: não podemos ver nosso rosto, nossas costas, nem nossa cabeça por inteiro; portanto, a parte mais nobre do corpo vivo nós não podemos apanhar com as próprias mãos, não podemos abarcar, entre outras coisas. Nós nos destacamos no mundo da percepção com os pés, não com a cabeça. Daí a necessidade de que nosso corpo vivo nos transforme no instante da pura percepção; daí o martírio sublime da excentricidade em seu corpo vivo.

Há uma história da percepção, que é por fim a história do mito. O corpo vivo daquele que percebe nem sempre foi apenas as coordenadas verticais à horizontal da terra. A maneira ereta de andar conquistada gradualmente pelos seres humanos proporciona agora o predomínio de outros modos de percepção. Mas, de resto, isto não só é possível como necessário. Nem sempre o conhecimento das distâncias formais irá dominar a percepção visual (Caso de uma criança que, sem órgãos de apreensão fixados num dado local, forma o seu mundo visual: uma outra hierarquia de distâncias). A história da percepção se deu a partir dos elementos da mudança da natureza e da mudança do corpo vivo, mas somente ela dá a estes elementos o significado espiritual e coroação (realização, síntese) no mito. Nele constroem-se e transformam-se lentamente as grandes disposições da percepção que determinam o modo como se confrontam corpo vivo e natureza: direita, esquerda – acima, abaixo – para frente, para trás.

[ +++ ]

[fr 47]

DOIS CASAIS são elementos, dois amigos, os líderes da comunidade.

A amizade pertence à ordem da solidão do destino. Na anarquia. – Só aí tem ela a sua essência segundo a posição dominante. Amizade e amor não diferem em si mesmos, apenas em sua posição para a comunidade. E, além disso, não há naturalmente nenhum sacramento transferido da amizade à ordem divina. Isto é o inaudito, o que torna a amizade perigosa: uma relação determinada livre de sacramento.

A sociedade moderna de modo algum conhece a amizade, ela é própria do helenismo, no qual o gênio alcançou a forma histórica mais pura. A amizade também desempenha um papel importante na mitologia do gênio. Ela desempenha um papel no judaísmo?

O que hoje é chamado amizade não merece este nome. Ela teria que sucumbir ao parâmetro pseudo-religioso atual (mas também ao religioso?).

Como amizade e amor se confrontam na ordem do gênio?

SOBRE O MATRIMÔNIO

Eros, o amor, possui a única direção para a morte comum dos amantes. Ele se desenrola como o fio num labirinto que tem seu centro na “câmara da morte”. Só aí sobrevém ao amor a realidade do gênero, onde a própria agonia se tornaria a luta do amor. Em contrapartida, o genérico em si mesmo escapa à morte própria e à vida própria, e chama às cegas a morte alheia e a vida alheia nesta evasão. Ele se dirige para o nada nessa desgraça, onde a vida é apenas uma não-morte e a morte é apenas uma não-vida. Assim deve o barco do amor passar entre a Cila da morte e a Caríbdis da desgraça, e isso nunca seria possível se Deus, nesse ponto de seu trajeto, não o torna-se indestrutível. Pois como a sexualidade do amor vindouro é completamente estranha, a do amor presente deve ser completamente singular. Ela jamais é a condição de seu ser e sempre a sua duração mundana. Mas Deus, no sacramento do matrimônio, torna o amor <imune> ao perigo da sexualidade e da morte. O perigo da sexualidade é que ela, nomeadamente, destaca o casal ou, mais precisamente, ela simplesmente o destaca para responsabilizá-lo, uma vez que a pessoa é incapaz de se responsabilizar por seus instintos e, além disso, jamais é responsável pelo que estes determinam. Mas somente o Deus da responsabilidade, no matrimônio, é a favor da sexualidade do casal, e assim o é por toda parte, exceto o próprio perigo desmedido da sexualidade, que faz parte da vida e que, por si só, conduz através da senda da ascese apenas os devotos.

(O que se diferencia nessa transformação misteriosa do amor através do sacramento é o feminino.)

[ +++ ]

[D 4a, 2]

-III- -antiguidade parisiense-

“O Romantismo culmina numa teoria do tédio; o sentimento moderno da vida, numa teoria do poder, ou, pelo menos, da energia… Com efeito, o Romantismo marca a tomada de consciência pelo homem de um feixe de instintos que a sociedade está fortemente interessada em reprimir, mas ele manifesta em grande parte o abandono da luta… O escritor romântico … volta-se para … uma poesia de refúgio e de evasão. A tentativa de Balzac e de Baudelaire é exatamente inversa e tende a integrar na vida os postulados que os Românticos se resignavam em realizar unicamente no plano da arte… Nisso seu empreendimento era muito próximo do mito, que significa sempre um acréscimo do papel da imaginação na vida”. Roger Caillois, “Paris, mythe moderne”, (Nouvelle Revue Française, XXV, 284, 1° de maio de 1937, pp. 695 e 697).

[D 10a, 4]

A essência do acontecimento mítico é o retorno. Nele está inscrita, como figura secreta, a inutilidade gravada na testa de alguns heróis dos infernos (Tântalo, Sísifo ou as Danaides). Retomando o pensamento do eterno retorno no século XIX, Nietzsche assume o papel daquele em quem se consuma de novo a fatalidade mítica. (A eternidade das penas infernais talvez tenha privado a idéia antiga do eterno retorno de sua ponta mais terrível. A eternidade de um ciclo sideral é substituída pela eternidade dos sofrimentos.)

[D 10a, 5]

A crença no progresso, em sua infinita perfectibilidade — uma tarefa infinita da moral —, e a representação do eterno retorno são complementares. São as antinomias indissolúveis a partir das quais deve ser desenvolvido o conceito dialético do tempo histórico. Diante disso, a idéia do eterno retorno aparece como o “racionalismo raso”, que a crença no progresso tem a má fama de representar, sendo que esta crença pertence à maneira de pensar mítica tanto quanto a representação do eterno retorno.

[S 7, 1]

“A elevação da vida urbana à qualidade de mito significa imediatamente para os mais lúcidos uma decidida opção pela modernidade. Sabe-se que lugar este último conceito ocupa em Baudelaire… Como ele mesmo o diz, trata-se da questão ‘principal e essencial’ de saber se seu tempo possui ‘uma beleza particular, inerente às novas paixões’. Conhecemos sua resposta: é a própria conclusão de seu escrito teórico mais considerável, pelo menos quanto á sua extensão: ‘O maravilhoso nos envolve e nos sacia como a atmosfera, mas nós não o vemos… Pois os heróis da Ilíada não chegam aos nossos pés, ó Vautrin, ó Rastignac, ó Birotteau — nem aos teus, ó Fontanarès, que não ousaste contar ao público tuas dores sob o traje fúnebre e convulso que todos assumimos; — e nem aos teus, ó Honoré de Balzac, tu, o mais heróico, o mais singular, o mais romântico e o mais poético entre todos os personagens que tiraste do teu seio.’ (Baudelaire, Salon de 1846, cap. XVIII).” Roger Caillois, “Paris, mythe moderne”, Nouvelle Revue Française, XXV, nº. 284, 1 maio 1937, pp. 690-691.

[K 6, 2]

Jung denomina a consciência — ocasionalmente! — como “nossa conquista prometéica”. C. G. Jung, Seelenprobleme der Gegenwart, Zurique-Leipzig-Stuttgart, 1932, p. 249 (“Die Lebenswende”). E em outro contexto: “O pecado prometéico é o de ser a-histórico. O homem moderno, neste sentido, vive no pecado. Um grau maior de consciência é, portanto, culpa.Op. cit., p. 404 (“Das Seelenproblem des modernen Menschen”).