Moda: Senhora Morte! Senhora Morte!
Giacomo Leopardi, Diálogo entre a Moda e a Morte.
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Nada morre, tudo se transforma.
Honoré de Balzac, Pensées, Sujets, Fragments, Paris, 1910, P. 46
E o tédio é a treliça diante da qual a cortesã provoca a morte. ■ Ennui ■
Semelhança das passagens com os galpões cobertos onde se aprendia a pedalar. Nesses locais, a mulher assumia sua aparência mais sedutora: a de ciclista. Assim ela aparece nos cartazes da época. Chéret, o pintor dessa beleza feminina. A roupa da ciclista, como protótipo precoce e inconsciente da roupa esportiva, corresponde aos protótipos das formas oníricas, tal qual elas, um pouco antes ou depois, apareceram para as fábricas ou para o automóvel. Assim como as primeiras construções de fábricas apegavam-se à forma tradicional das moradias e as primeiras carrocerias de automóveis imitavam as carroças, também a expressão esportiva na roupa da ciclista luta ainda com a tradicional imagem ideal da elegância e o fruto desta luta é o toque obstinado, sádico, que tornou estes anos tão incomparavelmente provocantes para o mundo masculino. ■ Moradas de sonho ■
“Nestes anos [por volta de 1880], começa não só a moda do Renascimento a fazer traquinagens, mas também se inicia, por outro lado, um prazer novo da mulher pelo esporte, principalmente pela equitação, e ambas as coisas influenciam a moda em direções bastante diferentes. É original, embora nem sempre bonita, a maneira como os anos de 1882 a 1885 procuram conciliar os sentimentos que fazem a alma feminina oscilar de um lado para o outro. Busca-se uma solução ao modelar a cintura da maneira mais justa e simples, tornando, porém, a saia ainda mais rococó.” 70 Jahre deutsche Mode, 1925, pp. 84-87.
Aqui a moda inaugurou o entreposto dialético entre a mulher e a mercadoria — entre o desejo e o cadáver. Seu espigado e atrevido caixeiro, a morte, mede o século em braças e, por economia, ele mesmo faz o papel de manequim e gerencia pessoalmente a liquidação que, em francês, se chama révolution. Pois a moda nunca foi outra coisa senão a paródia do cadáver colorido, provocação da morte pela mulher, amargo diálogo sussurrado com a putrefação entre gargalhadas estridentes e falsas. Isso é a moda. Por isso ela muda tão rapidamente; faz cócegas na morte e já é outra, uma nova, quando a morte a procura com os olhos para bater nela. Durante um século, a moda nada ficou devendo à morte. Agora, finalmente, ela está prestes a abandonar a arena. A morte, porém, doa a armadura das prostitutas como troféu à margem de um novo Letes que rola pelas passagens como um rio de asfalto. ■ Revolução ■ Amor ■
“Nada está inteiramente em seu lugar, mas é a moda que fixa o lugar de tudo.” L’Esprit d’Alphonse Karr, Paris, 1877, p. 129. “Se uma mulher de bom gosto, ao desnudar-se à noite, se encontrasse realmente do jeito que insinuou ser durante o dia todo, creio que seria encontrada, no dia seguinte, submersa e afogada em suas lágrimas.” Alphonse Karr, cit. em E Th. Vischer, Mode und Zinismus, Stuttgart, 1879, pp. 106-107.
Em Karr, encontra-se uma teoria racionalista da moda, que apresenta muita semelhança com a teoria racionalista da origem das religiões. Ele atribui o aparecimento de saias longas ao fato de certas mulheres terem interesse em esconder um <pé> sem graça. Ou ele denuncia como origem de cenas formas de chapéus e penteados o desejo de disfarçar um cabelo ralo.
Quem hoje ainda se lembra onde, na última década do século passado, as mulheres ostentavam aos homens sua aparência mais sedutora, a mais íntima promessa de seu corpo? Nos galpões cobertos e asfaltados nos quais se aprendia a pedalar. Como ciclista, a mulher disputa o primeiro lugar com a cantora dos cartazes e dá à moda sua linha mais ousada.
Para o filósofo, o aspecto mais interessante da moda é sua extraordinária capacidade de antecipação. É consenso que a arte, muitas vezes, geralmente por meio de imagens, antecipa em anos a realidade perceptível. Ruas ou salas puderam ser vistas em suas variadas cores brilhantes bem antes que a técnica, através de anúncios luminosos ou outros dispositivos, as colocasse sob uma luz desse tipo. Da mesma forma, a sensibilidade individual de um artista em relação ao futuro ultrapassa em muito aquela da dama da sociedade. E, entretanto, a moda está em contato muito mais constante, muito mais preciso, com as coisas vindouras graças ao fato incomparável que o coletivo feminino possui para o que nos reserva o futuro. Cada estação da moda traz em suas mais novas criações alguns sinais secretos das coisas vindouras. Quem os soubesse ler, saberia antecipadamente não só quais seriam as novas tendências da arte, mas também a respeito de novas legislações, guerras e revoluções. — Aqui, sem dúvida, reside o maior encanto da moda, mas também a dificuldade de torná-lo frutífero.
“Pode-se traduzir contos populares russos, sagas familiares suecas e histórias de malandros inglesas e encontraremos sempre a França naquilo que dá o tom à massa, não porque isso será sempre a verdade e, sim, porque isso sempre será moda.” Gutzkow, Briefe aus Paris, Paris, vol. II, Leipzig, 1842, pp. 227-228. Mas o que dá o tom é sempre o que é mais novo, mas apenas onde este emerge entre as coisas mais antigas, mais passadas, mais habituais. Este espetáculo — como o que é totalmente novo se forma a partir daquilo que se passou — é o verdadeiro espetáculo dialético da moda. Somente desta maneira, como apresentação grandiosa desta dialética, podem-se compreender os livros singulares de Grandville, que tiveram um tremendo sucesso na metade do século. Quando ele apresenta um novo leque como Leque de Íris, através do desenho de um arco-íris, quando a Via Láctea é apresentada como uma avenida noturna iluminada por candelabros a gás, quando A Lua Pintada por Ela Mesma repousa não sobre nuvens, mas sobre almofadas de pelúcia da última moda, só então se compreende que justamente neste século, o mais árido e menos imaginativo de todos, toda a energia onírica de uma sociedade se refugiou com dupla veemência no reino nebuloso, silencioso e impenetrável da moda, no qual o entendimento não a pode acompanhar. A moda é a precursora, não, é a eterna suplente do Surrealismo.
Duas gravuras lascivas de Charles Vernier representam, como contrapartida, “um casamento em velocípede” — ida e volta. A roda oferecia uma possibilidade inimaginada para a representação da saia levantada.
Uma perspectiva definitiva sobre a moda oferece-se apenas pela observação de como para cada geração aquela que a precedeu imediatamente parece ser o antiafrodisíaco mais radical que se possa conceber. Com este julgamento, ela não está tão errada como se pode imaginar. Há em cada moda algo de sátira amarga do amor, cada moda contém todas as perversidades sexuais da maneira mais impiedosa possível, cada uma comporta em si resistências secretas contra o amor. Vale a pena confrontar-se com a seguinte observação de Grand-Carteret, não importa quão superficial ela seja: “É pelas cenas da vida amorosa que se percebe, na verdade, aparecer todo o ridículo de certas modas. Estes homens, estas mulheres, não são eles grotescos em gestos, em poses, pelo topete extravagante em si mesmo, pelo chapéu de copa alta, pelo redingote ajustado à cintura, pelo xale, pelos chapéus de abas largas, pelos pequenos borzeguins de tecido?” O confronto das gerações passadas com as modas tem então uma importância muito maior do que se imagina habitualmente. E é um dos aspectos mais importantes do costume histórico de empreender isso sobretudo no teatro. A partir do teatro, a questão do costume penetra profundamente na vida da arte e da poesia, nas quais a moda é, ao mesmo tempo, mantida e superada.
Um problema bem semelhante colocou-se para nós em vista das novas formas de velocidade que trouxeram um ritmo diferente à vida. Isto também, de certa forma, foi testado primeiramente de maneira lúdica. Surgiram as “montanhas-russas”, e os parisienses, qual loucos, apoderaram-se deste divertimento. Por volta de 1810, conforme anota um cronista, uma dama teria desperdiçado 75 francos numa só noite no Parc de Montsouris, onde havia estas atrações aéreas. O novo ritmo da vida anuncia-se por vezes de maneira mais inesperada. É o caso dos cartazes. “Essas imagens de um dia ou de uma hora, desbotadas pelas tempestades, rabiscadas a carvão pelos meninos, queimadas pelo sol e alguma vezes cobertas por outras imagens, antes mesmo que tenham secado, simbolizam — num grau ainda mais intenso que a imprensa — a vida rápida, agitada, multiforme que nos arrasta.” Maurice Talmeyr, La Cité du Sang, Paris, 1901, p. 269. Pois, nos primeiros tempos do cartaz ainda não havia uma lei que regulasse sua colocação, sua proteção ou que também garantisse a proteção contra os cartazes e, assim, era possível acordar uma certa manhã e encontrar a própria janela tapada por um cartaz. Esta enigmática necessidade de sensações foi desde sempre satisfeita pela moda. Porém, somente a reflexão teológica a respeito conseguirá atingir o cerne da questão, pois revela-se aí uma atitude profunda, afetiva, do ser humano frente ao curso da história. Somos levados a associar esta necessidade de sensações a um dos sete pecados capitais e não devemos nos surpreender com o fato de um cronista associar a isso profecias apocalípticas e anunciar um tempo em que os seres humanos se tornarão cegos devido ao excesso de luz elétrica e desvairados por conta do ritmo acelerado das notícias. (Em Jacques Fabien, Paris en Songe, Paris, 1863.)
“Em 4 de outubro de 1856, o Teatro Ginásio representou uma peça intitulada Les Toilettes Tapageuses (As Toaletes Escandalosas). Era a época da crinolina e as mulheres-‘balão’ estavam na moda. A atriz que representava o papel principal, tendo compreendido a intenção satírica do autor, trazia um vestido cuja saia propositalmente exagerada tinha uma amplidão cômica e quase ridícula. No dia seguinte, à primeira apresentação, seu vestido foi pedido como modelo por mais de vinte grandes damas, e oito dias depois a crinolina tinha dobrado de dimensão.” Maxime Du Camp, Paris, vol. VI, p. 192.
“A moda é a procura sempre vã, muitas vezes ridícula, às vezes perigosa, de uma beleza superior ideal.” Du Camp, Paris, vol. VI, p. 194.
A epígrafe de Balzac se presta bem para explicar a temporalidade do inferno. A explicar por que esta temporalidade não quer conhecer a morte, por que a moda zomba da morte, e como a rapidez do trânsito e a velocidade da transmissão de notícias — que faz com que as edições dos jornais se sucedam rapidamente — visam a eliminar toda interrupção, todo fim abrupto, e de que maneira a morte como cesura tem a ver com a linha reta do decurso divino do tempo. — Houve modas na Antigüidade? Ou será que o “poder da moldura”‘ as proibiu?
Poder da moda sobre a cidade de Paris num símbolo. “Comprei um mapa de Paris impresso num lenço.” Gutzkow, Briefe aus Paris, vol. I, Leipzig, 1842, p. 82.
Sobre a discussão médica a respeito da crinolina: pensava-se poder “justificá-la, como à saia-balão, pelo frescor agradável e oportuno que os membros desfrutam por baixo dela … portanto, procura-se saber por parte da medicina se esse louvável frescor já teria provocado resfriados que acarretariam um fim funesto e prematuro do estado que a crinolina originalmente teria a finalidade de dissimular”. F. Th. Vischer, Kritische Gänge, Nova Série, 3° caderno, Stuttgart, 1861, p. 100 (“Vernünftige Gedanken über die jetzige Mode”).
“Uma loucura que a moda francesa da época da Revolução e do Primeiro Império imitasse o mundo grego com roupas talhadas e costuradas à maneira moderna.” Vischer, “Vernünftige Gedanken über die jetzige Mode”, p. 99.
Cachecóis de tricô — cache-nez à maneira das dançarinas indianas — usados também por homens, em cores pouco vistosas.
F. Th. Vischer, sobre a moda das mangas largas que caem sobre o pulso nas roupas masculinas: “Não são mais braços, e sim asas rudimentares, asas atrofiadas de pingüins, nadadeiras de peixes, e o movimento desses penduricalhos disformes faz com que o homem, ao andar, pareça estar a agitar os braços de forma amalucada e idiota, a empurrar, a tremelicar, a remar.” Vischer, “Vernünftige Gedanken über die jetzige Mode”, p. 111.
Importante crítica política da moda do ponto de vista burguês: “Quando o autor destes pensamentos racionais viu embarcar no trem o primeiro rapaz vestindo uma camisa com o mais moderno colarinho, acreditou piamente estar vendo um padre; pois esta tira branca situa-se na parte inferior do pescoço à mesma altura do conhecido colarinho do clero católico e, além disso, o longo paletó era preto. Quando reconheceu o exemplo mundano da ultima moda, compreendeu o que este colarinho também significa: Oh, para nós, tudo, tudo é igual, até as concordatas! Por que não? Devemos nos entusiasmar com as Luzes como rapazes nobres? Não é a hierarquia mais distinta do que a planura de uma insípida libertação dos espíritos, que ao fim nada mais faz do que azedar o prazer do homem elegante? — Ademais, este colarinho, ao traçar o pescoço numa linha reta e firme, lembra o belo aspecto de um recém-guilhotinado, o que combina bem com o caráter do esnobe.” Alia-se a isso a reação violenta à cor violeta. Vischer, “Vernünftige Gedanken über die jetzige Mode”, p. 112.
Sobre a reação de 1850-1860: “Declarar o que se pensa é tido como ridículo, ser severo, como infantil; assim sendo, como a roupa não deveria tornar-se também sem graça, frouxa e, ao mesmo tempo, apertada?” Vischer, p. 117. Assim, ele relaciona a crinolina também ao “imperialismo fortalecido que se estende e se infla como ela e que é a última e mais forte expressão do refluxo de todas as tendências do ano de 1848, fazendo recair seu poder como uma campânula acima do bem e do mal, da justiça e da injustiça da revolução”. Vischer, p. 119.
“No fundo, estas coisas são ao mesmo tempo livres e não-livres. Trata-se de um claro-escuro, onde se entremesclam a necessidade e o humor… Quanto mais fantástica uma forma, tanto mais fortemente a consciência clara e irônica acompanha a vontade servil. E esta consciência nos garante que a loucura não durará, quanto mais crescer, mais próximo estará o tempo em que terá efeito; a consciência tornar-se-á ação e libertar-se-á das amarras.” Vischer, pp. 122-123.
Um dos textos mais importantes para o esclarecimento das possibilidades excêntricas, revolucionárias e surrealistas da moda, além disso, um texto que justamente estabelece a relação do Surrealismo com Grandville etc., é o capítulo sobre a moda no Poète Assassiné, de Apollinaire, Paris, p. 74 et seq.
Como a moda tudo imita: surgiram programas para as roupas sociais, como os que acompanham a mais moderna música sinfônica. Em 1901, em Paris, Victor Prouvé expôs um imponente traje de luxo com o título: “Margens fluviais na primavera”.
Marca da moda de então: sugerir um corpo que jamais conhecerá a nudez total.
“Apenas por volta de 1890 considera-se que a seda já não é o material mais nobre para a roupa de passeio; por isso foi-lhe atribuída uma nova função, antes desconhecida: utilizou-se a seda como forro. A roupa de 1870 a 1890 é extremamente dispendiosa e as mudanças da moda limitam-se por isso, muitas vezes, a modificações prudentes cuja intenção implícita é a de, por assim dizer, criar uma roupa nova através da reforma de uma roupa velha.” 70 Jahre deutsche Mode, 1925, p. 71.
“Ano de 1873 … quando as enormes almofadas presas ao traseiro faziam com que as saias se avolumassem, com seus drapeados em dobras, babados plissados, debruns e fitas, parecendo sair da oficina de um tapeceiro e não do ateliê de um costureiro,” J. W. Samson, Die Frauenmode der Gegenwart, Berlim e Colônia, 1927, pp. 8-9.
Nenhum tipo de imortalização é tão perturbador quanto o do efêmero e das formas da moda que nos reservam os museus de cera. E quem um dia as viu, terá se apaixonado, como André Breton, pela figura feminina do Musée Grévin que ajeita sua liga no canto de um camarote. (Nadja, Paris, 1928, p. 199.)
“Os arranjos florais, feitos de grandes lírios brancos ou de nenúfares, com as longas hastes de junco, que parecem tão graciosos em cada penteado, evocam involuntariamente sílfides e náiades delicadas e suavemente esvoaçantes — assim como a morena fogosa não pode enfeitar-se de maneira mais encantadora do que com uma coroa graciosa entremeada de frutos: cerejas, groselhas e até uvas tecidas com hera e ervas; ou ainda, com as longas fúcsias de veludo vermelho flamejante, cujas folhas de veios rubros, como que respingadas de orvalho, formam uma coroa; à sua disposição igualmente o mais belo cactus speciosus, com longos e alvos filetes; aliás, as flores escolhidas para os arranjos de cabelos são muito grandes — vimos um arranjo assim, de rosas brancas ‘centifólias’, lindamente pitoresco, tecido com grandes amores-perfeitos e galhos de hera, ou melhor, hastes, dando aos ramos nodosos e ascendentes a impressão de que a própria natureza aí tivesse se imiscuído — longos ramos de flores em botão e hastes que, ao menor toque, balouçavam de ambos os lados.” Der Bazar, 3º ano, Berlim, 1857, p. 11 (Veronika von G., “A moda”).
A impressão de antiquado somente pode advir onde de certa maneira se toca no que é mais atual. Se os primórdios da mais moderna arquitetura situam-se nas passagens, seu caráter antiquado tem tanto a dizer ao homem de hoje quanto o caráter antiquado do pai a seu filho.
Formulação minha: “O eterno, de qualquer modo, é, antes, um drapeado de vestido do que uma idéia.” ■ Imagem dialética ■
No fetichismo, o sexo suprime as barreiras entre o mundo orgânico e o inorgânico. Vestuário e jóias são seus aliados. Ele se sente em casa tanto no mundo inerte quanto no da carne. Esta lhe indica o caminho de como se instalar no primeiro. Os cabelos são um território situado entre os dois reinos do sexo. Um outro abre-se-lhe na embriaguez da paixão: as paisagens do corpo. Estas nem mesmo estão mais vivas, mas são ainda acessíveis ao olhar que quanto mais distante tanto mais transfere ao tato ou ao olfato a viagem através destes remos da morte. No sonho, porém, não raro intumescem-se os seios que, como a terra, estão totalmente vestidos de florestas e rochedos, e os olhares imergiram sua vida no fundo de espelhos d’água adormecidos em vales. Estas paisagens percorrem caminhos que acompanham o sexo ao mundo do inorgânico. A própria moda é apenas um outro meio que o atrai ainda mais profundamente ao mundo da matéria.
“Este ano, diz Tristouse, a moda é bizarra e familiar, simples e cheia de fantasia. Todos os materiais dos diferentes reinos da natureza podem agora entrar na composição de uma roupa de mulher. Vi um vestido encantador feito de rolhas de cortiça… Um grande costureiro cogita lançar tailleurs feitos com o dorso de livros velhos, costurados com pêlo de bezerro… As espinhas de peixe são muito usadas em chapéus. Vêem-se freqüentemente deliciosas jovens vestidas como peregrinas de Santiago de Compostela, sendo sua roupa, como convém, constelada de conchas de ‘São Tiago’. A porcelana, o grés e a louça surgiram bruscamente na arte da vestimenta… As plumas decoram agora não apenas os chapéus, mas os sapatos e as luvas, e no próximo ano serão colocadas nas sombrinhas. Fazem-se sapatos de vidro de Veneza e chapéus de cristal de Baccarat… Esqueci-me de lhes dizer que, na última quarta- feira, vi nos boulevards uma velha madame vestida com pequenos espelhos aplicados e colados em um tecido. Ao sol, o efeito era suntuoso. Parecia, digamos, uma mina de ouro a passeio. Mais tarde começou a chover e a dama pareceu uma mina de prata… A moda torna-se prática e não despreza mais nada, enobrece tudo. Ela faz com a matéria o que os românticos fizeram com as palavras.” Guillaume Apollinaire, Le Poète Assassiné, nova edição. Paris, 1927, pp. 75-77.
Um caricaturista representa — por volta de 1867 — a armação da crinolina como uma gaiola na qual uma moça mantém galinhas e um papagaio presos. Cf. Louis Sonolet, Parisienne sous le Second Empire, Paris, 1929, p. 245.
“Os banhos de mar deram o primeiro golpe na solene e embaraçosa crinolina.” Louis Sonolet, La Vie Parisienne sous le Second Empire, Paris, 1929, p. 247.
“Considerávamos a crinolina o símbolo do Segundo Império na França, de sua mentira deslavada, de seu atrevimento leviano e ostentoso. Esse império ruiu…, mas o mundo parisiense ainda teve tempo, antes de sua queda, de salientar na moda feminina um outro aspecto de seu estado de espírito, e a república não se furtou de aceitá-lo e conservá-lo.” F. Th. Vischer, Mode und Cynismus, Stuttgart, 1879, p. 6. A nova moda a que Vischer se refere é explicada da seguinte forma: “O vestido é cortado transversalmente sobre o corpo e estende-se … sobre o abdome.” (p. 6) Mais tarde, ele afirma que as mulheres que assim se vestem “estão nuas, embora vestidas” (p. 8).
Friedell explica em relação à mulher “que a história de seu vestuário demonstra surpreendentemente poucas variações, nada mais sendo do que uma seqüência de algumas nuances que mudam muito rapidamente, mas que também retornam com maior freqüência: o comprimento das caudas, a altura dos penteados, o comprimento das mangas, o volume da saia, o tamanho do decote, a altura da cintura. Mesmo revoluções radicais como o atual corte de cabelos à la garçonne são apenas ‘o eterno retorno do mesmo’.” Egon Friedell, Kulturgeschichte der Neuzeit, vol. III, Munique, 1931, p. 88. Desta forma, segundo o autor, a moda feminina se distingue da moda masculina, mais variada e mais determinada.
“De todas as promessas feitas no romance de Cabet, Viagem a Icária, ao menos uma se realizou. De fato, Cabet tentara mostrar no romance, no qual está descrito o seu sistema, que o futuro estado comunista não deveria conter nenhum produto da fantasia nem sofrer qualquer tipo de mudança institucional. Por isso, banira de Icária todas as modas e, em particular, as sacerdotisas da moda, as modistas, assim como os ourives e todas as outras profissões que prestam serviço ao luxo, exigindo que as roupas, os utensílios etc. jamais fossem modificados.” Sigmund Engländer, Geschichte der französischen Arbeiter-Associationen, Hamburgo, 1864, vol. II, pp. 165-166.
Em 1828 deu-se a estréia da Muda de Portici. Trata-se de uma música ondulante, uma ópera de drapeados que se elevam e recaem sobre as palavras. Ela devia fazer sucesso na época, quando o drapeado iniciou seu desfile triunfal (primeiramente na moda, como xale turco). Esta revolta, cuja primeira tarefa era garantir a segurança do rei diante dela, aparece como prelúdio daquela de 1830 — uma revolução que provavelmente era apenas um drapeado ocultando um reviramento nos círculos dominantes.
Será que porventura a moda morre — por exemplo, na Rússia — pelo fato de ela não mais conseguir acompanhar o ritmo — pelo menos em certos domínios?
As obras de Grandville são verdadeiras cosmogonias da moda. Uma parte de sua obra poderia ser intitulada “A luta da moda com a natureza”. Comparação entre Hogarth e Grandville. Grandville e Lautréamont. — O que significa a hipertrofia da epígrafe em Grandville?
“A moda é um testemunho, mas um testemunho da história do grande mundo somente, porque em todos os povos … os pobres não têm modas como não têm história, e nem suas idéias, nem seus gostos, nem sua vida mudam em nada. Talvez … a vida pública comece a penetrar nos pequenos lares, mas isso levará tempo.” Eugène Montrue, Le XIX Siècle Vécu par Deux Français, Paris, p. 241.
A seguinte observação permite reconhecer qual o significado da moda como disfarce de determinados desejos da classe dominante. “Os donos do poder sentem uma imensa aversão a grandes transformações. Desejam que tudo fique como está, por mil anos de preferência. Seria preferível que a lua permanecesse imóvel e que o sol não se movesse! Então ninguém sentiria mais fome e teria vontade de jantar. Quando tivessem usado sua arma, os adversários não deveriam mais atirar, seus tiros deveriam ser os últimos.” Bertolt Brecht, “Fünf Schwierigkeiten beim Schreiben der Wahrheit”, Unsere Zeit, VIII, 2-3, abril de 1935, Paris/Basiléia/Praga, p. 32.
Mac-Orlan, que enfatiza as analogias com o Surrealismo encontradas em Grandville, chama a atenção nesse contexto para a obra de Walt Disney, sobre quem afirma: “Ele não contém nenhum germe de mortificação. Nisso ele se afasta do humor de Grandville, que sempre trouxe consigo a presença da morte.” Mac-Orlan, “Grandville le précurseur”, Arts et Métiers Graphiques, 44, 15 de dezembro de 1934, p. 24.
“De duas a três horas aproximadamente é o tempo que dura a apresentação de uma grande coleção. De acordo com o ritmo ao qual os manequins foram acostumados. Ao final, já é uma tradição, surge uma noiva coberta de véus.” Helen Grund, Vom Wesen der Mode, p. 19, manuscrito particular, Munique, 1935.” Segundo o uso citado, a moda faz uma referência aos costumes, indicando, porém, que não se detém diante deles.
Uma moda atual e seu significado. Na primavera de 1935, aproximadamente, surgiram na moda feminina plaquetas de metal de tamanho médio, perfuradas, usadas sobre a malha ou o casaco, com a inicial do prenome da mulher que os vestia. Assim, a moda tirava proveito da voga dos distintivos usados com maior freqüência pelos homens que se tornaram membros de associações. Por outro lado, entretanto, com isso vem à tona a crescente restrição à esfera particular. O nome, mais precisamente, o prenome das desconhecidas, é trazido a público numa beirada de tecido. 0 fato de que com isso fosse mais fácil “travar conhecimento” com uma desconhecida é de importância secundária.
“Os criadores de moda … freqüentam a sociedade e adquirem desse convívio uma impressão geral; participam da vida artística, assistem a estréias e visitam exposições, lêem os livros de sucesso — em outras palavras, sua inspiração inflama-se com os estímulos oferecidos por uma atualidade movimentada. Todavia, como nenhum presente desliga-se totalmente do passado, também o passado oferece-lhes estímulos… Mas apenas é utilizado aquilo que está em harmonia com o acorde da moda atual. O chapeuzinho caído sobre a testa, que devemos à exposição de Manet, prova simplesmente que possuímos uma nova disposição de entrar em confronto com o fim do século anterior.” Helen Grund, Vom Wesen der Mode, Munique, 1935, p. 13.
Sobre a batalha publicitária entre a casa de alta costura e os jornalistas de moda. “Facilita sua tarefa (dos jornalistas) o fato de nossos desejos coincidirem.” “Dificulta, porém, o fato de que nenhum jornal ou revista queira considerar como novo aquilo que um outro jornal ou revista já tenha publicado. Somente os fotógrafos e desenhistas, ao valorizar diferentes aspectos de uma roupa através da pose e da iluminação, podem livrar-nos deste dilema. As mais importantes revistas … possuem estúdios fotográficos próprios, equipados com todos os refinamentos técnicos e artísticos, comandados por fotógrafos muito talentosos e especializados… A todos, porém, é vedada a publicação destes documentos antes do momento de a cliente fazer sua escolha, portanto, normalmente de quatro a seis semanas antes da estréia. O motivo desta medida? — Também a mulher não quer privar-se do efeito-surpresa ao apresentar-se à sociedade vestindo estas novas roupas.” Helen Grund, Vom Wesen der Mode, pp. 21-22 (manuscrito particular, Munique, 1935).
Segundo o sumário das seis primeiras edições, encontra-se na revista La Dernière Mode, Paris, 1874, editada por Stéphane Mallarmé, “um encantador esboço esportivo, resultado de uma conversa com o maravilhoso naturalista Toussenel”. Reprodução deste resumo em Minotaure, II, 6, inverno de 1935, p. 27.
Uma teoria biológica da moda, a partir da transformação da zebra em cavalo, descrita na edição popular do Brehm, p. 771, transformação “que se estendeu por milhões de anos… A tendência inerente aos cavalos evoluiu dando ensejo à criação de um animal extraordinário para o trote e a corrida… Os animais mais próximos de sua origem na atualidade exibem um desenho de listras bastante chamativo. Um fato curioso é que as listras exteriores da zebra manifestam uma certa concordância com a disposição das costelas e das vértebras no lado interno. Da mesma forma, pode-se já determinar pelo lado externo a posição das patas superiores dianteiras e traseiras através do desenho singular das listras nestas partes. O que significa este desenho listrado? Certamente não possui uma função protetora… As listras são mantidas, apesar de sua ‘inutilidade funcional’, e — por isso devem ter um significado especial. Não estaríamos aqui diante de estímulos provocados exteriormente em prol de tendências interiores que devem tornar-se particularmente ativas na época do acasalamento? Como é que podemos transferir esta teoria para o nosso tema? — Algo basicamente importante, segundo me parece. — A moda ‘absurda’, desde que a humanidade passou da nudez à roupa, toma emprestado o papel da natureza sábia… Pois ao determinar em sua transformação … uma permanente revisão de todas as partes da silhueta, a moda obriga a mulher a preocupar-se permanentemente com a beleza.” Helen Grund, Vom Wesen der Mode, Munique, 1935, pp. 7-8.
Na exposição universal de Paris de 1900 havia um Palácio do Vestuário, no qual bonecas de cera colocadas em cenários montados exibiam os trajes típicos de diferentes povos e as modas de diferentes épocas.
“Nós observamos ao nosso redor … os efeitos de confusão e dissipação que nos inflige o movimento desordenado do mundo moderno. As artes não assumem compromisso com a pressa. Nossos ideais duram dez anos! A absurda superstição do novo — que infelizmente substituiu a antiga e excelente crença no julgamento da posteridade — atribui ao esforço do trabalho o fim mais ilusório e o utiliza para criar o que há de mais perecível, o que é perecível por essência: a sensação do novo… Ora, tudo o que se vê aqui foi experimentado, seduziu e encantou durante séculos, e toda essa glória nos diz com serenidade: ‘EU NÃO SOU NADA DE NOVO. O Tempo pode mesmo estragar a matéria na qual existo: mas enquanto ele não me destruir, não poderá fazê-lo a indiferença ou o desprezo de algum homem digno desse nome’.” Paul Valéry, “Préambule” (prefácio ao catálogo da exposição “L’art italien de Cimabue à Tiepolo”, Petit Palais, 1935, pp. IV-VII.)
“O triunfo da burguesia modifica a roupa feminina. A roupa e o penteado se desenvolvem em largura … os ombros se alargam com mangas amplas, e … não se tardará a recolocar em uso as antigas armações e a se fazer saias bufantes. Assim vestidas, as mulheres pareciam destinadas à vida sedentária, à vida familiar, porque sua maneira de se vestir não tinha nada que desse a idéia de movimento ou que parecesse favorecê-lo. Aconteceu o contrário com a chegada do Segundo Império; os laços familiares se relaxaram; um luxo sempre crescente corrompeu os costumes a ponto de tornar-se difícil distinguir, unicamente pelo aspecto da roupa, uma mulher honesta de uma cortesã. Então, a toalete feminina se transformou da cabeça aos pés… As armações foram jogadas para trás e se reuniram num traseiro acentuado. Desenvolveu-se tudo o que podia impedir as mulheres de permanecer sentadas; afastou-se tudo o que pudesse dificultar seu caminhar. Elas se pentearam e se vestiram como que para serem vistas de perfil. Ora, o perfil é a silhueta de uma pessoa … que passa, que vai nos escapar. A toalete tornou-se uma imagem do movimento rápido que leva o mundo.” Charles Blanc, Considérations sur le Vêtement des Femmes (Institut de France, 25 de outubro de 1872), pp. 12-13.
“Para entender a essência da moda atual, é preciso recorrer não só a motivos de natureza individual, tais como: o desejo de mudança, o senso de beleza, a paixão por se vestir, o ímpeto de se adaptar aos padrões. Sem dúvida, tais motivações interferiram em diversas épocas … na criação das roupas… Entretanto, a moda, tal como se entende hoje, não tem motivações individuais, mas tão-somente uma motivação social; no momento em que se entende isso, chega-se à compreensão de toda a sua essência. Trata-se do empenho das classes altas de se distinguirem das mais baixas, ou melhor, das classes médias… A moda é a barreira — erigida sem cessar e sempre de novo demolida — através da qual o mundo elegante procura isolar-se das regiões medianas da sociedade. Trata-se da procura desenfreada da vaidade social, na qual se repete sem cessar um mesmo fenômeno: o esforço de um grupo para estabelecer a liderança, ainda que seja mínima a distância que o separe dos perseguidores, e o esforço destes de neutralizar essa vantagem através da adoção imediata da nova moda. Explicam-se assim os traços característicos da moda atual. Primeiramente seu surgimento nas camadas superiores da sociedade e sua imitação nas camadas médias. A moda se move de cima para baixo, não de baixo para cima… Uma tentativa das classes médias de lançar uma moda nova jamais … seria bem-sucedida; embora nada fosse mais desejável para as camadas mais altas do que a adotação de uma moda própria por parte daquelas classes. ([Nota:] Isto não as impede, contudo, de procurar novos padrões na cloaca do meio-mundo parisiense e lançar modas que carregam claramente na testa o carimbo de sua origem licenciosa, como Fr. Vischer demonstrou de maneira convincente em seu ensaio sobre a moda, … muito criticado, porém, na minha opinião, altamente meritório.) Daí vem a mudança contínua da moda. Tão logo as classes médias adorem a moda recém-lançada, esta perde seu valor para as classes superiores… Por isso, a novidade é a condição imprescindível da moda… A sua duração é inversamente proporcional à rapidez de sua difusão; seu caráter efêmero acentuou-se em nossos tempos na mesma medida em que se multiplicaram os meios para sua difusão graças ao aperfeiçoamento dos nossos meios de comunicação… E, finalmente, a referida motivação social explica também o terceiro traço característico de nossa moda atual: sua … tirania. A moda contém o critério exterior segundo o qual uma pessoa … ‘faz parte da sociedade’. Quem não quer abrir mão disso é obrigado a segui-la, mesmo que rejeite totalmente uma nova tendência dela… Com isso é decretada também a sentença da moda… Caso as camadas sociais, que são fracas e tolas o suficiente para imitá-la, conseguissem atingir o sentimento de sua dignidade e auto-estima…, chegar-se-ia ao fim da moda, e a beleza poderia, por sua vez, recuperar o lugar que ocupou em todos os povos que não sentiram a necessidade de acentuar as diferenças de classes através do vestuário, ou, onde isso ocorreu, tenham sido bastante razoáveis para respeitá-las.” Rudolph von Jhering, Der Zweck im Recht, vol. II, Leipzig, 1883, pp. 234-238.
Sobre a época de Napoleão III: “Ganhar dinheiro torna-se objeto de um ardor quase sensual, e o amor, uma questão de dinheiro. À época do Romantismo francês, o ideal erótico gravitava em torno da grisette; agora é a vez da lorette que se vende… Ocorreu na moda uma nuance marota: as senhoras usam colarinhos e gravatas, paletós, saias cortadas à semelhança de fraques … túnicas de zuavo, dólmãs, bengalas, monóculos. Dá-se preferência a cores fortemente contrastantes e berrantes, também para os penteados: cabelos vermelho-fogo são muito apreciados… O tipo mais característico da moda é o da grande dama que faz o papel da cocota.” Egon Frieden, Kulturgeschichte der Neuzeit, vol. III, Munique, 1931, p. 203. O “caráter plebeu” desta moda apresenta-se ao autor como “invasão … vinda de baixo”, por parte dos nouveaux riches.
“Os tecidos de algodão substituem os brocados, os cetins … e logo, graças … ao espírito revolucionário, o vestuário das classes inferiores torna-se mais conveniente e mais agradável aos olhos.” Édouard Foucaud, Paris Inventeur: Physiologie de Industrie Française, Paris, 1844, p. 64 (refere-se à Revolução de 1789).
Um grupo que, observando-se mais atentamente, é composto apenas de peças de vestuário, ao lado de algumas cabeças de bonecas. Legenda: “Bonecas nas cadeiras, manequins carregando falsos colarinhos, falsos cabelos, falsos atrativos … eis o mundo de Longchamp!» Cabinet des Estampes.
“Se, em 1829, entrássemos nas lojas de Delisle, encontraríamos uma profusão de tecidos diversos: japoneses, alhambras, orientais rústicos, stokoline, meótida, silénia, zinzoline, bagazinkoff chinês… Com a revolução de 1830…, o cetro da moda atravessou o Sena, e a Chaussée d’Antin substituiu o nobre faubourg.” Paul D’Ariste, La Vie et le Monde du Boulevard (1830-1870), Paris, 1930, p. 227.
“O burguês abastado, amigo da ordem, paga seus fornecedores ao menos uma vez por ano: mas o homem da moda, o chamado ‘leão’, paga seu alfaiate a cada dez anos, quando paga.” Acht Tage in Paris, Paris, Julho de 1855, p. 125.
“Fui eu que inventei os tiques. Atualmente o lornhão os substituiu… O tique consistia em fechar o olho com um certo movimento de boca e um certo movimento do casaco… A figura de um homem elegante deve ter sempre … alguma coisa de convulsivo e de crispado. Pode-se atribuir essas agitações faciais a um satanismo natural, à febre das paixões, enfim, a qualquer coisa que se queira.” Paris-Viveur, pelos autores das memórias de Bilboquet [Taxile Delord], Paris, 1854, pp. 25-26.
“A moda de se vestir em Londres atingiu apenas os homens; a moda feminina, mesmo para as estrangeiras, sempre foi vestir-se em Paris.” Charles Seignobos, Histoire Sincère de de la Nation Française, Paris, 1932, p. 402.
Marcelin, o fundador do periódico La Vie Parisienne, descreveu “as quatro eras da crinolina”.
A crinolina “é o símbolo inequívoco da reação por parte do imperialismo que se estende e se infla…, fazendo recair seu poder como uma campânula acima do bem e do mal, da justiça e da injustiça da revolução… Ela parecia um capricho do momento e se instalou por todo um período, como o 2 de dezembro.” F. Th. Vischer, cit. em Eduard Fuchs, Die Karikatur der europäischen Völker, Munique, vol. II, p. 156.
No início dos anos quarenta, localiza-se um centro das modistas na Rue Vivienne.
Simmel indica que “a invenção da moda na época atual integra-se cada vez mais à organização objetiva do trabalho da economia”. “Não surge em algum lugar um artigo que se torna moda: ao contrário, criam-se artigos com a finalidade de tornar-se moda.” A oposição enfatizada nesta última frase poderia dizer respeito em certa medida àquela existente entre a era burguesa e a era feudal. Georg Simmel, Philosophische Kultur, Leipzig, 1911, P. 34 (“A moda”).
Simmel explica “porque as mulheres em geral estão fortemente ligadas à moda. Pois através da fraqueza da posição social a que as mulheres foram condenadas na maior parte da história origina-se sua relação estreita com tudo que seja ‘costume’.” Georg Simmel. Philosophische Kultur, Leipzig, 1911, p. 47 (“A moda”).
A seguinte análise da moda esclarece igualmente o significado das viagens que se tornaram moda na burguesia durante a segunda metade do século: “A ênfase dos atrativos desloca-se de maneira crescente de seu centro substancial para seu início e seu fim. Isto começa com os sintomas mais insignificantes, como … a substituição do charuto pelo cigarro, manifesta-se pela mania das viagens que provoca, tanto quanto possível, uma vibração da vida em vários períodos curtos do ano, com forte ênfase sobre a partida e a chegada. O ritmo … da vida moderna traduz não só o desejo pela mudança rápida dos conteúdos qualitativos da vida, mas principalmente a força do atrativo formal da fronteira, do início e do fim.” Georg Simmel, Philosophische Kultur, Leipzig, 1911, p. 41 (“A moda”).
Simmel afirma “porque as modas são sempre modas de classe, que as modas da classe superior distinguem-se daquelas da classe inferior e são abandonadas no momento em que esta última começa a se apropriar delas”. Georg Simmel, Philosophische Kultur, Leipzig, 1911, p. 32 (“A moda”).
A mudança rápida da moda faz com “que as modas não possam mais ser tão dispendiosas … quanto o foram em épocas anteriores… Surge aqui um círculo peculiar: quanto mais rápida é a mudança da moda, tanto mais baratas as coisas precisam tornar-se; quanto mais baratas se tornam, mais incitam os consumidores e obrigam os produtores a mais rápidas mudanças da moda.” Georg Simmel, Philosophische Kultur, Leipzig, 1911, pp. 58-59 (“A moda”).
Fuchs em relação às observações de Jhering sobre a moda: “É necessário … repetir que os interesses da divisão de classes são apenas uma das causas da freqüente mudança da moda e que a segunda — a freqüente mudança da moda como conseqüência do modo de produção capitalista privado, que sempre precisa aumentar suas possibilidades de venda no interesse de sua margem de lucro — deve ser levada em conta da mesma maneira. Esta causa escapou totalmente a Jhering. E também a terceira causa não foi observada por ele: os objetivos de estímulo erótico da moda, que são cumpridos da melhor maneira quando os atrativos eróticos do homem ou da mulher chamam a atenção de modo sempre diferente … Fr. Vischer, que escreveu sobre a … moda vinte anos antes de Jhering, ainda não reconhecera as tendências da divisão de classes na formação da moda…, em vez disso, porém, teve consciência dos problemas eróticos do vestuário.” Eduard Fuchs, Illustrierte Sittengeschichte vom Mittelalter bis zur Gegenwart: Das bürgerliche Zeitalter, volume complementar, Munique, pp. 53-54.
Eduard Fuchs (Illustrierte Sittengeschichte vom Mittelalter bis zur Gegenwart: Das bürgerliche Zeitalter, volume complementar, Munique, pp. 56-57) cita — sem referências uma observação de F. Th. Vischer, que considera a cor cinzenta da roupa masculina simbólica para o caráter “totalmente blasé” do mundo masculino e de sua insipidez e inércia.
“A idéia tola e funesta de opor o conhecimento aprofundado dos meios de execução— trabalho sensatamente mantido … ao ato impulsivo da sensibilidade singular é um dos traços mais certos e mais deploráveis da leviandade e da fraqueza de caráter que marcaram a era romântica. A preocupação com a duração das obras já se enfraquecia e cedia, nos espíritos, ao desejo de surpreender: a arte se viu condenada a um regime de rupturas sucessivas. Nasceu um automatismo da ousadia. Esta tornou-se imperativa como fora a tradição. Enfim, a Moda, que é a mudança em alta freqüência do gosto de uma clientela substituiu sua mobilidade essencial às lentas formações dos estilos, das escolas, das grandes celebridades. Mas dizer que a Moda se encarrega do destino das Belas Artes é o bastante para dizer que o comércio aí se intromete.” Paul Valéry, Pièces sur l’Art, Paris, pp. 18-488 (“Sobre Corot”).
“A grande e capital revolução foi o tecido de algodão fabricado na Índia. Foi preciso o esforço combinado da ciência e da arte para forçar um tecido rebelde e ingrato, o algodão, a sofrer cada dia tantas transformações brilhantes, e depois de assim transformado … chegar ao alcance dos pobres. Toda mulher já teve uma vez um vestido azul ou preto que guardava por dez anos sem lavar, com medo de que ele se desfizesse em trapos. Hoje, seu marido, operário pobre, ao preço de um dia de trabalho, cobre-a com uma roupa estampada de flores. Toda essa multidão de mulheres que apresenta em nossos passeios públicos uma estonteante miríade de cores, estava outrora de luto.” Michelet, Le Peuple, Paris, 1846, pp. 80-81.
“Pode-se calcular, em Harmonia, que as mudanças da moda … e a confecção imperfeita causariam uma perda anual de 500 francos por indivíduo, porque o mais pobre dos harmonianos tem um guarda-roupa preparado para toda estação… A Harmonia … quer no vestuário e no mobiliário a variedade infinita, mas o menor consumo… A excelência dos produtos da indústria societária … eleva cada objeto manufaturado à extrema perfeição, de modo que o mobiliário e o vestuário tornam-se eternos.” Fourier, cit. em Armand Maublanc, Fourier, Paris, 1937, vol. II, pp. 196 e 198.
“Este gosto da modernidade vai tão longe que Baudelaire, como Balzac, o estende aos mais fúteis detalhes da moda e do vestuário. Ambos os estudam em si mesmos e elaboram com eles questões morais e filosóficas, porque eles representam a realidade imediata no aspecto mais agudo, mais agressivo, mais irritante, talvez, mas também mais vivido.” [Nota]: “Além disso, para Baudelaire, essas preocupações se voltam para sua importante teoria do Dandismo da qual, justamente, ele fez uma questão de moral e de modernidade.” Roger Caillois, “Paris, mythe moderne”, Nouvelle Revue Française XXV: 284, 1 de maio de 1937, p. 692.
“Grande acontecimento! As belas damas experimentam um dia a necessidade de inflar o traseiro. Depressa, aos milhares, fábricas de enchimentos! … Mas o que é uma simples guarnição sobre ilustres cóccix? Uma bugiganga, na verdade… ‘Abaixo os traseiros! Viva as crinolinas!’ E, de repente, o universo civilizado se transforma em manufatura de sinos ambulantes. Por que o sexo encantador esqueceu os badalos dos sininhos? … Ocupar um lugar não é tudo, é preciso fazer barulho lá embaixo… O quartier Breda e o faubourg Saint-Germain são rivais em piedade, tanto quanto em engomados e em coques. Que sigam o exemplo da Igreja! Nas vésperas, o órgão e o clero recitam alternadamente um versículo dos salmos. As belas damas e seus sinos poderiam seguir esse exemplo: palavras e tilintes retomando, cada um em sua vez, a seqüência da conversa.” Blanqui, Critique Sociale, Paris, 1885, vol. I, pp. 83-84 (“O luxo”). — “O luxo” é uma polêmica dirigida contra a indústria de luxo.
Cada geração vivencia a moda da geração imediatamente anterior como o mais radical dos antiafrodisíacos que se pode imaginar. Com esse veredicto, ela não comete um erro tão grande como se poderia supor. Em cada moda há um quê de amarga sátira ao amor; em cada uma delas delineiam-se perversões da maneira mais impiedosa. Toda moda está em conflito com o orgânico. Cada uma delas tenta acasalar o corpo vivo com o mundo inorgânico. A moda defende os direitos do cadáver sobre o ser vivo. O fetichismo que subjaz ao sex appeal do inorgânico é seu nervo vital.
Nascimento e morte — o primeiro, pelas circunstâncias naturais; a segunda, por circunstâncias sociais — limitam consideravelmente a margem de liberdade da moda, quando se tornam atuais. Este estado de coisas é realçado por uma dupla circunstância. A primeira refere-se ao nascimento e mostra como a recriação natural da vida é “superada” pela novidade no domínio da moda. A segunda refere-se à morte. No que concerne à morte, ela não aparece menos “superada” na moda, quando esta liberta o sex appeal do inorgânico.
A descrição detalhada da beleza feminina, apreciada pela poesia barroca, que exalta cada um de seus pormenores através da comparação, associa-se secretamente à imagem do cadáver. Tal desmembramento da beleza feminina em suas partes gloriosas assemelha-se a uma dissecação, e as mais apreciadas comparações das partes do corpo com o alabastro, com a neve, com pedras preciosas ou outras matérias, sobretudo inorgânicas, reforçam esse sentimento. (Tais desmembramentos são encontrados também em Baudelaire, “Le beau navire”.
Lipps sobre a cor escura do vestuário masculino: ele afirma “que em nossa timidez geral em relação a cores vivas, sobretudo no vestuário masculino, expressa-se de forma mais evidente uma particularidade freqüentemente observada de nosso caráter. Toda teoria é cinzenta; porém, a áurea árvore da vida é verde — não só verde, mas também vermelha, amarela, azul. Nossa preferência pelos diferentes tons do cinza … ao negro demonstra claramente nossa maneira de ser, social e em geral, que privilegia acima de tudo a teoria da formação do intelecto, que não é mais capaz de simplesmente fruir o belo, e sim … de querer submetê-lo antes de tudo à crítica, razão pela qual … nossa vida espiritual torna-se sempre mais fria e incolor.” Theodor Lipps, “Über die Symbolik unserer Kleidung”, Nord und Süd, XXXIII. Breslau e Berlim, 1885, p. 352.
As modas são um medicamento que deve compensar na escala coletiva os efeitos nefastos do esquecimento. Quanto mais efêmera é uma época, tanto mais ela se orienta na moda Cf. [K 2a, 3].
Focillon sobre a fantasmagoria da moda: “Na maioria das vezes … ela cria … híbridos, impõe ao ser humano o perfil do animal… A moda inventa assim uma humanidade artificial que não é o cenário passivo do meio formal, mas o próprio meio formal. Essa humanidade — às vezes heráldica, outras vezes teatral, ou feérica, ou arquitetural — tem … como regra … a poética do ornamento, e o que ela chama de linha … talvez não seja senão um sutil compromisso entre um certo cânone fisiológico … e a fantasia das figuras.” Henri Focillon, Vie des Formes, Paris, 1934, p. 41.
Dificilmente encontra-se uma peça de vestuário que pode expressar tantas tendências eróticas divergentes e fornecer tantas possibilidades para dissimulá-las quanto o chapéu feminino. Enquanto o significado da cobertura de cabeça masculina seguia estritamente, em sua esfera — a política —, alguns poucos modelos rígidos, as nuances do significado erótico do chapéu feminino são incalculáveis. Não são as diferentes possibilidades de sugerir simbolicamente os órgãos sexuais as que mais podem interessar aqui. Mais surpreendente pode ser a explicação que o chapéu fornece sobre a vestimenta. Helen Grund formulou a hipótese engenhosa de que o tipo de chapéu que é usado junto com a crinolina representa na verdade um modo de manejo desta última para os homens. As largas abas do chapéu são dobradas — indicando, desta maneira, como a crinolina deve ser dobrada para facilitar ao homem o acesso sexual à mulher.
A posição horizontal do corpo proporcionava as maiores vantagens para as fêmeas da espécie homo sapiens, a julgar por suas representantes mais antigas. Ela lhes facilitou a gravidez, como se pode deduzir ao considerar as cintas e bandagens as quais as mulheres grávidas de hoje costumam recorrer. Partindo dessa constatação, poder-se-ia ousar perguntar: o andar na posição ereta em geral não terá surgido antes nos machos do que nas fêmeas? Nesse caso, então, a fêmea teria sido outrora a acompanhante quadrúpede do homem, como hoje o cão ou o gato. A partir desta hipótese é apenas um passo para se chegar à suposição de que o encontro frontal dos parceiros, por ocasião do acasalamento, teria sido originalmente uma espécie de perversão, e talvez tivesse sido precisamente esta “aberração” que fez com que a fêmea aprendesse a andar na posição ereta. (Cf. nota no ensaio “Eduard Fuchs, o colecionador e historiador”.)
“Seria interessante pesquisar quais os efeitos que a disposição à postura ereta pode ter sobre a estrutura e as funções do resto do corpo. Não temos dúvida de que uma correlação estreita abrange todas as partes da estrutura orgânica; porém, no estado atual de nossa ciência, devemos afirmar que as influências extraordinárias que atribuímos com isso à postura ereta não podem ser completamente comprovadas… Em relação à estrutura e à função dos órgãos internos não é possível comprovar nenhum efeito retroativo significativo, e as suposições de Herder, segundo as quais todas as forças agiriam de forma diferente na posição ereta, e o sangue estimularia os nervos de maneira diferente, estão desprovidas de qualquer fundamento, sobretudo quando se trata de explicar diferenças consideráveis e manifestamente importantes para o modo de vida.” Hermann Lotze, Mikrokosmos, vol. II, Leipzig, 1858, p. 90.
Extraído de um prospecto para um cosmético característico da moda do Segundo Império. O fabricante recomenda “um cosmético … por meio do qual as damas podem, se quiserem, dar a sua tez o reflexo do tafetá rosa”. Cit. em Ludwig Börne, Gesammelte Schriften, Hamburgo e Frankfurt a. M., 1862, p. 282 (“A exposição industrial no Louvre”).
Quer o sol matar meus sonhos todos,
os pálidos filhos de meus redutos de prazer?
Os dias tornaram-se tão calmos e ofuscantes.
A satisfação acena com visões nebulosas,
Abate-me o medo de perder a saúde,
Como se meu Deus eu fosse julgar.
Jakob van Hoddis
Criança com sua mãe no panorama. O panorama representa a batalha de Sedan. A criança acha tudo muito bonito: “Pena que o céu esteja encoberto.” — ‘Assim fica o tempo na guerra”, retruca a mãe. ■ Diorama ■
Portanto, os panoramas, no fundo, estão comprometidos com este mundo nebuloso; a luminosidade de suas imagens parece transpassá-los como cortinas de chuva.
“Esta Paris [sc. de Baudelaire] é muito diferente da Paris de Verlaine que, entretanto, também já mudou muito. Uma é sombria e chuvosa, como uma Paris sobre a qual estaria superposta a imagem de Lyon; a outra é esbranquiçada e poeirenta como um pastel de Raffaelli. Uma é asfixiante, a outra arejada, com construções novas, isoladas em terrenos baldios e, não longe, a cerca de caramanchões murchos.” François Porché, La Vie Douloureuse de Charles Baudelaire, Paris, 1926, p. 119.
Como as forças cósmicas têm apenas um efeito narcotizante sobre o homem vazio e frágil é o que revela a relação dele com uma das manifestações superiores e mais suaves dessas forças: o tempo atmosférico. É muito significativo que justamente esta influência, a mais íntima e mais misteriosa exercida pelo tempo sobre os homens, veio a se tornar o tema de suas conversas mais vazias. Nada entedia mais o homem comum do que o cosmos. Daí resulta a íntima ligação, para ele, entre tempo e tédio. Um belo exemplo de superação irônica desta atitude é a história do inglês spleenático, que certa manhã desperta e dá um tiro na cabeça porque lá fora chove. Ou ainda Goethe: como soube radiografar o tempo em seus estudos meteorológicos, de tal modo que somos tentados a dizer que ele foi levado a esse trabalho apenas para assim poder integrar até mesmo o tempo à sua vida desperta, criativa.
Baudelaire como poeta do Spleen de Paris. “Uma das características essenciais dessa poesia, na verdade, é o tédio na bruma, tédio e nevoeiro misturados (nevoeiro das cidades); numa palavra, é o spleen.” François Porché, La Vie Douloureuse de Charles Baudelaire, Paris, 1926. p. 184.
Em 1903, Emile Tardieu publicou em Paris um livro intitulado L’Ennui, no qual procura demonstrar que toda atividade humana é uma tentativa inútil de escapar ao tédio e, ao mesmo tempo, que tudo que é, foi e será, é tão-somente o alimento inesgotável deste mesmo sentimento. Ao se ler isso, poder-se-ia imaginar ter diante de si um grandioso monumento literário: um monumento aere perennius erigido à glória do taedium vitae dos romanos. Contudo, trata-se apenas da ciência auto-suficiente e mesquinha de um novo Homais, que reduz toda grandeza, o heroísmo dos heróis e o ascetismo dos santos a provas de seu descontentamento pequeno-burguês e sem inspiração.
“Quando os franceses foram à Itália defender os direitos da coroa de França sobre o ducado de Milão e sobre o reino de Nápoles, voltaram maravilhados com as soluções que o gênio italiano havia encontrado para o excessivo calor; e, da admiração pelas galerias, passaram à imitação. O clima chuvoso dessa Paris, tão célebre por suas lamas, sugeriu pilares, que foram uma maravilha do tempo antigo. Teve-se, assim, mais tarde, a Place Royale. Coisa estranha! Foi pelos mesmos motivos que, sob Napoleão, construíram-se as ruas Rivoli, Castiglione e a famosa Rue des Colonnes.” Assim, também o turbante foi importado do Egito. Le Diable à Paris, Paris, 1845, vol. II, pp. 11-12 (Balzac, “Ce qui disparait de Paris”). Quantos anos separam a guerra acima citada da expedição napoleônica à Itália? E onde se situa a Rue des Colonnes?
“As pancadas de chuva fizeram surgir muitas aventuras.” Diminuição da força mágica da chuva. Capa de chuva.
Sob forma de poeira, a chuva consegue vingar-se das passagens. — Sob Luís Filipe, a poeira se depositava até mesmo sobre as revoluções. Quando o jovem Duque de Orléans “desposou a princesa de Mecklenburg, celebrou-se uma grande festa naquele famoso salão de baile, em que se manifestaram os primeiros sintomas da revolução [de 1830]. Quando vieram arrumar o salão para a festa dos jovens nubentes, encontraram-no como a revolução o deixara. Notavam-se ainda no chão os vestígios do banquete militar; viam-se tocos de vela, copos quebrados, rolhas de champanhe; viam-se as insígnias pisoteadas dos gardes du corps e as fitas de gala dos oficiais do regimento de Flandres.” Karl Gutzkow, Briefe aus Paris, Leipzig, 1842, vol. II, p. 87. Uma cena histórica torna-se componente de um panóptico. ■ Diorama ■ Poeira e perspectiva sufocada ■
“Ele explica que a Rue Grange-Batelière é particularmente poeirenta, que nos sujamos terrivelmente na Rue Réaumur.” Louis Aragon, Le Paysan de Paris, Paris, 1926, p. 88.
A pelúcia como depósito de poeira. Mistério da poeira que brinca ao sol. A poeira e a “sala de visitas”. “Logo após 1840, surgem os móveis franceses totalmente estofados, e com eles o estilo de tapeçarias atinge seu domínio absoluto.” Max von Boehn, Die Mode im XIX Jahrhundert, vol. II, Munique, 1907, p. 131. Outras formas de levantar a poeira: a cauda. “Recentemente retornou também a verdadeira cauda; agora, porém, é erguida e segurada, durante o andar, com o auxílio de um gancho e um cordão, para evitar a inconveniência de varrer a rua.” Friedrich Theodor Vischer, Mode und Zynismus, Stuttgart, 1879, P. 12. ■ Poeira e perspectiva sufocada ■
A Galeria do Termômetro e a Galeria do Barômetro na Passage de l’Opéra.
Um folhetinista dos anos quarenta, ao escrever sobre o tempo atmosférico de Paris, constatou que Corneille só falou das estrelas uma única vez (em Le Cid) e que Racine escreveu apenas uma vez sobre o “sol”. Ele afirma que as estrelas e as flores teriam sido descobertas para a literatura primeiramente na América, por Chateaubriand, e só depois foram transpostas a Paris. (Segundo Victor Méry, “Le climat de Paris”, em Le Diable à Paris, vol. I, Paris, 1845, p. 245.)
A respeito de algumas imagens lascivas: “Não é mais o leque, mas o guarda-chuva, invenção digna da época do rei como guarda nacional. O guarda-chuva propício às fantasias amorosas. O guarda-chuva servindo de abrigo discreto. Cobertura, teto da ilha de Robinson.” John Grand-Carteret, Le Décolleté et le Retroussé. Paris, 1910, vol. II, p. 56.
“Só aqui”, disse Chirico, “é possível pintar. As ruas possuem tantos tons de cinza…”
O tempo de chuva na cidade, com toda sua astuta sedução, capaz de nos fazer voltar em sonhos aos primeiros tempos da infância, só é compreensível à criança de uma cidade grande. A chuva faz tudo parecer mais oculto, torna os dias não só cinzentos, mas também uniformes. De manhã à noite pode-se fazer a mesma coisa — jogar xadrez, ler, discutir —. enquanto o sol, de maneira bem diferente, matiza as horas e não faz bem ao sonhador. Por isso, este precisa evitar com astúcia os dias radiantes e, principalmente, levantar-se muito cedo, como os grandes ociosos, os passeadores do porto e os vagabundos: ele precisa estar a postos mais cedo que o sol. Ferdinand Hardekopf, o único verdadeiro decadente que a Alemanha produziu, indicou ao sonhador — na “Ode vom seligen Morgen” (Ode da manhã bem-aventurada), com a qual presenteou Emmy Hennings há muitos anos — as melhores medidas de precaução para dias ensolarados.
Outras cidades européias acolhem as colunatas em sua fisionomia urbana; Berlim serve de exemplo com o estilo de suas portas monumentais. Característico é especialmente o Hallesches Tor, inesquecível para mim num cartão postal azulado, representando a Praça Belle-Alliance à noite. Era um cartão transparente, e olhando-o contra a luz, iluminavam-se todas as suas janelas exatamente com o mesmo brilho que emanava da lua cheia no alto do céu.
“As construções da nova Paris são derivadas de todos os estilos; o conjunto não deixa de ter uma certa unidade, porque todos esses estilos são do gênero tedioso, e do mais tedioso dos tediosos, que é o enfático e o alinhado. Alinhados! Parados! Parece que o Anfião desta cidade é um caporal … / Ele mobiliza uma quantidade de coisas faustuosas, pomposas, colossais: são entediantes; ele mobiliza também uma quantidade de coisas muito feias: estas são igualmente entediantes. / Estas grandes ruas, estes grandes cais, estes grandes edifícios, estes grandes esgotos, sua fisionomia mal copiada ou mal sonhada guarda um não sei quê que cheira a fortuna repentina e irregular. Exalam o tédio.” Veuillot, Les Odeurs de Paris, Paris, 1914, p. 9. ■ Haussmann ■
Pelletan descreve a visita a um rei da Bolsa de Valores, um multimilionário: “Quando entrei no pátio do hotel, um grupo de palafreneiros vestindo coletes vermelhos ocupava-se em escovar meia dúzia de cavalos ingleses. Subi por uma escadaria de mármore, no alto da qual encontrava-se uma enorme luminária dourada, e encontrei no vestíbulo um camareiro de gravata branca e canelas volumosas que me conduziu a uma grande galeria envidraçada. cujas paredes estavam inteiramente decoradas com camélias e plantas de estufa. Uma espécie de tédio secreto pairava no ar; ao primeiro passo, respirava-se um aroma que lembrava o ópio. Passava-se por uma dupla série de barras, sobre as quais havia papagaios de vários países. Eram vermelhos, azuis, verdes, cinzentos, amarelos e brancos; mas todos pareciam sofrer de saudades de sua terra. Ao fim da galeria encontrava-se uma pequena mesa defronte a uma lareira de estilo renascentista: àquela hora, o patrão tomava o desjejum… Após ter eu esperado um quarto de hora, dignou-se a aparecer… Bocejava, estava sonolento, parecia sempre a ponto de dormitar: andava como um sonâmbulo. Seu torpor tinha contaminado as paredes de seu hotel. Seus pensamentos assemelhavam-se a esses papagaios, como se tivessem se soltado e encarnado e ficados presos a um poleiro…”. ■ Intérieur ■ Rodenberg, Paris bei Sonnenschein und Lampenlicht, Leipzig, 1867, pp. 104-105.
No Théâtre des Variétés, Rougemont e Gentil fazem apresentar as Fêtes françaises ou Paris en miniature. Trata-se do casamento de Napoleão I com Marie-Louise e fala-se a respeito das planejadas festas. “Entretanto”, diz uma das personagens, “o tempo não está muito firme”. — Resposta: “Meu amigo, fique tranqüilo, este dia é da escolha do nosso soberano.” Em seguida, entoa uma estrofe que começa assim:
Sabe-se que a seu olhar agudo
O porvir sempre se desvela,
E quando precisamos de bom tempo
Esperamo-lo de sua estrela.
Cit. em Théodore Muret, L’Histoire par le Théâtre – 1789-1851, Paris, 1865, vol. I, p. 262.
“Esta tristeza eloqüente e sem vida que se chama tédio.” Louis Veuillot, Les Odeurs de Paris, Paris, 1914, p. 177.
“Cada traje serve-se de alguns acessórios com os quais compõe uma bela figura, isto é, que custam muito dinheiro, pois se estragam facilmente, sobretudo porque qualquer gota de chuva os deteriora.” Isto a propósito da cartola. ■ Moda ■ F Th. Vischer, “Vernünftige Gedanken über die jetzige Mode”, em Kritische Gänge, Nova Série, 3º caderno, Stuttgart, 1861, p. 124.
Sentimos tédio quando não sabemos o que estamos esperando. O fato de o sabermos ou imaginar que o sabemos é quase sempre nada mais que a expressão de nossa superficialidade ou distração. O tédio é o limiar para grandes feitos. — Seria importante saber: qual é o oposto dialético do tédio?
O livro muito engraçado de Emile Tardieu, L’Ennui, Paris, 1903, cuja tese principal é que a vida não possui nem fim nem fundamento, perseguindo inutilmente o estado de felicidade e equilíbrio, cita, dentre as múltiplas circunstâncias que seriam a causa do tédio: o tempo atmosférico. — Poderíamos definir este livro como uma espécie de breviário do século XX.
O tédio é um tecido cinzento e quente, forrado por dentro com a seda das cores mais variadas e vibrantes. Nele nós nos enrolamos quando sonhamos. Estamos então em casa nos arabescos de seu forro. Porém, sob essa coberta, o homem que dorme parece cinzento e entediado. E quando então desperta e quer relatar o que sonhou, na maioria das vezes ele nada comunica além desse tédio. Pois quem conseguiria com um só gesto virar o forro do tempo do avesso? E, todavia, relatar sonhos nada mais é do que isso. E não podemos falar das passagens de outro modo. São arquiteturas nas quais revivemos em sonhos a vida de nossos pais, avós, tal qual o embrião dentro do ventre da mãe revive a vida dos animais. A existência nesses espaços decorre sem ênfase, como nos sonhos. O flanar é o ritmo desta sonolência. Em 1839, Paris foi invadida pela moda das tartarugas. É possível imaginar muito bem como as pessoas elegantes imitavam nas passagens, mais facilmente ainda que nos boulevards, o ritmo destas criaturas. ■ Flâneur ■
O tédio é sempre o lado externo dos acontecimentos inconscientes. Por isso o tédio parecia elegante aos grandes dândis. Ornamento e tédio.
Sobre o duplo significado de temps em francês.
O trabalho na fábrica como infra-estrutura econômica do tédio ideológico das classes superiores. “A triste rotina de um infindável sofrimento no trabalho, no qual o mesmo processo mecânico é repetido sempre, assemelha-se ao trabalho de Sísifo; o fardo do trabalho, tal qual a pedra de Sisifo, despenca sempre sobre o operário esgotado.” Friedrich Engels. Die Lage der arbeitenden Klasse in England, 2ª ed., Leipzig, 1848, p. 217 (cit. em Marx. Das Kapital, Hamburgo, 1922, vol. I, p. 388).
O sentimento de uma “imperfeição incurável” (cf. Les Plaisirs et les Jours, cit. na homenagem de Gide) “na própria essência do presente” foi talvez para Proust o motivo principal de procurar conhecer a sociedade mundana até suas últimas dobras, e talvez seja até mesmo um motivo fundamental das reuniões sociais dos homens em geral.
Sobre os salões: “Percebiam-se em todas as fisionomias os traços inconfundíveis do tédio, e as conversas eram em geral raras, pacatas e sérias. A dança era vista pela maioria como um trabalho forçado ao qual era preciso submeter-se, por ser de bom-tom.” Mais adiante, a afirmação de “que talvez nas sociedades de nenhuma cidade da Europa se encontrem rostos menos satisfeitos, alegres e vivazes quanto nos salões parisienses; … além disso, em nenhum outro lugar da sociedade se ouvem mais queixas sobre o tédio insuportável do que aqui, tanto por simples modismo quanto por verdadeira convicção”. “Uma conseqüência natural disso é que impera nas reuniões sociais um silêncio e uma calma que seriam consideradas excepcionais nas grandes reuniões em outras cidades.” Ferdinand von Gall, Paris und seine Salons, Oldenburg, 1844, vol. I, pp. 151-153 e 158.
Deveríamos refletir sobre os pêndulos nos apartamentos a partir das seguintes linhas: “Um certo sentido de leveza, um olhar calmo e despreocupado sobre o tempo que se esvai, um emprego indiferente das horas que passam muito rapidamente — estas são qualidades que favorecem a vida superficial dos salões.” Ferdinand von Gall, Paris und seine Salons, vol. II, Oldenburg, 1845, p. 171.
Tédio nas cenas de cerimônia representadas nos quadros históricos e o dolce far niente dos quadros de batalhas, com tudo o que reside na fumaça de pólvora. Das imagens de Épinal até a Execução do Imperador Maximiliano do México, de Manet, encontra-se a sempre igual e sempre nova miragem, sempre o vapor no qual surge o Mogreby <?> ou o gênio da garrafa diante dos olhos sonhadores e distraídos dos amantes da arte. ■ Morada de sonho, museus ■
Jogadores de xadrez no Café de la Régence: “Era ali que se viam alguns hábeis jogadores fazerem seu jogo de costas para o tabuleiro: bastava que lhes dissessem a cada lance qual a peça que o adversário havia deslocado, para que eles estivessem certos de ganhar.” Histoire des Cafés de Paris, Paris, 1857, p. 87.
“Em resumo, a arte clássica urbana, depois de ter apresentado suas obras-primas, esterilizou- se no tempo dos filósofos e dos fabricantes de sistemas. O século XVIII, que terminava, havia trazido à luz inúmeros projetos; a Comissão dos Artistas os reunira em corpo de doutrina, o Império os aplicava sem originalidade criadora. Ao estilo clássico, flexível e vivo, sucedia o pseudoclássico, sistemático e rígido… O Arco do Triunfo repete a porta Louis XIV, a coluna Vendôme é imitação de Roma, a Madeleine, a Bolsa de Valores e o Palais-Bourbon são templos antigos.” Lucien Dubech e Pierre d’Espezel, Histoire de Paris, Paris, 1926, p. 345. ■ Intérieur ■
“O primeiro Império copiou os arcos de triunfo e os monumentos dos dois séculos clássicos. Depois, procurou-se reinventar, reanimando modelos mais remotos: o Segundo Império imitou o Renascimento, o gótico, o pompeano. Depois, caiu-se na era da vulgaridade sem estilo.” Dubech e D’Espezel, Histoire de Paris, Paris, 1926, p. 464. ■ Intérieur ■
Anúncio de um livro de Benjamin Gastineau, La Vie en Chemin de Fer: “A ‘Vida em estradas de ferro’ é um encantador poema em prosa. É a epopéia da vida moderna, sempre arrebatadora e turbulenta, o panorama de alegria e lágrimas passando como a poeira dos trilhos perto das cortinas do vagão.” Benjamin Gastineau, Paris en Rose, Paris, 1866, p. 4.
Em vez de passar (vertreiben) o tempo, é preciso convidá-lo (einladen) para entrar. Passar o tempo ou matar, expulsar (austreiben) o tempo: o jogador. O tempo jorra-lhe dos poros. — Carregar-se (laden) de tempo como uma bateria armazena (lädt) energia: o flâneur. Finalmente, o terceiro tipo: aquele que espera. Ele carrega-se (lädt) de tempo e o devolve sob uma outra forma — aquela da espera.
“Os estratos calcários de formação recente, sobre os quais se localiza Paris, transformam-se em pó com muita facilidade, e este pó, como todo pó calcário, provoca dor particularmente nos olhos e no peito. Um pouco de chuva não adianta absolutamente nada, porque eles absorvem a água rapidamente e a superfície logo fica seca de novo.” “Junte-se a isso a feia e desbotada cor cinzenta das residências, todas construídas com esta pedra calcária porosa, que é extraída perto de Paris; — os telhados de um amarelo pálido, que vão enegrecendo com o passar dos anos; — as altas e largas chaminés que deformam até mesmo os prédios públicos … e que em certas regiões da cidade velha situam-se tão próximas umas das outras que mal se pode olhar através delas.” J. F. Benzenberg, Briefe geschrieben auf einer Reise nach Paris, Dortmund, 1805, vol. I, pp. 112 e 111.
“Engels contou-me que, em 1848 em Paris, no Café de la Régence, um dos primeiros centros da revolução de 1789, Marx lhe expôs pela primeira vez o determinismo econômico de sua teoria da concepção materialista da história.” Paul Lafargue: “Persönliche Erinnerungen an Friedrich Engels”, Die Neue Zeit, XXIII, 2, Stuttgart, 1905, p. 558.
O tédio — como índice da participação no sono do coletivo. Seria o tédio por isso tão elegante a ponto de ser ostentado pelo dândi?
Em 1757 só havia três cafés em Paris.
Máximas da pintura do Império: “Os artistas novos só admitiam o ‘estilo heróico, o sublime’, e o sublime só podia ser alcançado com ‘o nu e o drapeado’… Os pintores deviam procurar suas inspirações em Plutarco ou Homero, em Tito Lívio ou Virgilio, e escolher, de preferência, segundo a recomendação de David a Gros…, ‘temas conhecidos de todos’… Os temas tirados da vida contemporânea eram, por causa do estilo dos trajes, indignos da grande arte’.” A. Malet e P. Grillet, XIX Siècle, Paris, 1919, p. 158. ■ Moda ■
“Feliz o homem que é um observador! Para ele o tédio é uma palavra vazia de sentido.” Victor Fournel, Ce Qu’on Voit dans les Rues de Paris, Paris, 1858, p. 271.
O tédio começou a ser visto como uma epidemia nos anos quarenta. Lamartine teria sido o primeiro a ter dado expressão a este mal. Ele tem um papel numa pequena história que trata do famoso comediante Deburau. Certa feita, um grande neurologista foi procurado por um paciente que o visitava pela primeira vez. O paciente queixou-se do mal do século — a falta de vontade de viver, as profundas oscilações de humor, o tédio. “Nada de grave”, disse o médico após minucioso exame. “O senhor apenas precisa repousar, fazer algo para se distrair. Uma noite dessas vá assistir a Deburau e o senhor logo verá a vida com outros olhos.” “Ah, caro senhor”, respondeu o paciente, “eu sou Deburau”.
Retorno das Courses de la Marche: “A poeira ultrapassou todas as expectativas. As pessoas elegantes retornam das corridas praticamente recobertas de terra, a exemplo de Pompéia; é preciso desenterrá-las com ajuda de escovas ou mesmo enxadas.” H. de Pène, Paris Intime, Paris, 1859, p. 320.
“A introdução do sistema Mac Adam para a pavimentação dos boulevards deu nascimento a inúmeras caricaturas. Cham mostra os parisienses cegos com a poeira e propõe erigir … uma estátua com a inscrição: ‘A Macadam, dos oculistas e comerciantes de óculos, em reconhecimento!’ Outras representam os transeuntes suspensos em pernas de pau, percorrendo assim os pântanos e as poças d’água.” Paris sous la Republique de 1848: Exposition de la Bibliothèque et des Travaux Historiques de la Ville de Paris, 1909 [Poëte, Beaupaire, Clouzot, Henriot], p. 25.
“Somente a Inglaterra podia ter produzido o dandismo; a França é tão incapaz de produzir seu equivalente quanto sua vizinha o é de oferecer o equivalente de nossos … ‘leões’, tão apressados em agradar quanto os dândis em desprezar … D’Orsay … agradava naturalmente e apaixonadamente a todo o mundo, mesmo aos homens, enquanto que os dândis só agradavam desagradando… Do leão ao pretendente a dândi há um abismo; mas quão maior é o abismo entre o pretendente a dândi e o miserável!” Larousse, Grand Dictionnaire Universel du Dix-neuvième Siècle, vol. VI, Paris, 1870, p. 63 (verbete “art dandy”).
No antepenúltimo capítulo de seu livro: Paris Depuis ses Origines Jusqu’en l’An 3000 (Paris, de suas origens ao ano 3000), Paris, 1886, Léo Claretie fala de um teto de placas de cristal que se estende sobre a cidade quando chove — no ano de 1987. “Em 1987” é o título deste capítulo.
A propósito de Chodruc-Duclos: “Era talvez o resto de algum velho e áspero cidadão de Herculano que, tendo escapado de seu leito subterrâneo, voltava para nós crivado de mil cóleras vulcânicas e vivia na morte.” Mémoires de Chodruc-Duclos, org. por J. Arago e Édouard Gouin Paris, 1843, vol. I, p. 6 (“Préface”). 0 primeiro flâneur entre os desclassificados.
O mundo no qual nos entediamos “Mas se nos entediamos, e daí? Que influência isso pode ter?” — “Que influência! … que influência o tédio tem sobre nós? Ela é enorme! … Considerável! Veja, o francês tem um horror pelo tédio levado até a veneração. Para ele, o tédio é um deus terrível, que tem por culto a duração. Ele não compreende a seriedade senão sob essa forma.” Édouard Pailleron, Le Monde où l’On sEnnuie (1881), Ato I, cena 2 (em É. Pailleron, Théâtre Complet, vol. III, Paris, 1911, p. 279).
Michelet “faz uma descrição muito inteligente e piedosa da condição dos primeiros operários especializados por volta de 1840. Eis ‘o inferno do tédio’ nas tecelagens: ‘Sempre, sempre, sempre é a palavra invariável que retumba em nosso ouvido com a rotação automática, que faz tremer o assoalho. Ninguém jamais se habitua a isso.’ Muitas vezes as observações de Michelet (por exemplo aquelas sobre o devaneio e os ritmos dos ofícios) precedem intuitivamente as análises experimentais dos psicólogos modernos.” Georges Friedmann, La Crise du Progrès, Paris, 1936, p. 244. [A citação é extraída de Michetet, Le Peuple, Paris, 1846, p. 83.]
Faire droguer (“drogar”) no sentido de faire attendre (“fazer esperar”) pertence ao jargão dos exércitos da Revolução e do Império. (Segundo Brunot, Histoire de la Langue Française, vol. IX, La Revolution et l’Empire, Paris, 1937, p. 997.
A Vida Parisiense: “Na carta de recomendação escrita pelo Barão Stanislas de Frascata para seu amigo Gondremarck, dirigida a Metella, Paris assemelha-se a um souvenir em uma redoma de vidro. O missivista, preso à terra natal, queixa-se que em seu ‘frio país’ sente saudades dos banquetes regados a champanhe, do boudoir azul-celeste de Metella, dos jantares, das canções, da embriaguez. Paris esplende clara a seus olhos: um lugar onde as diferenças de classe se anulam, uma cidade repleta de calor meridional e vida fervilhante. Metella lê a carta de Frascata, e, enquanto lê, a música emoldura a pequena e brilhante imagem da memória com uma melancolia, como se Paris fosse o paraíso perdido, e com uma bem-aventurança, como se fosse a terra prometida. À medida que a ação se desenvolve, advém a impressão irrefutável de que esta imagem começa a tornar-se viva.” S. Kracauer, Jacques Offenbach und das Paris seiner Zeit, Amsterdam, 1937, pp. 348-349.
“O Romantismo culmina numa teoria do tédio; o sentimento moderno da vida, numa teoria do poder, ou, pelo menos, da energia… Com efeito, o Romantismo marca a tomada de consciência pelo homem de um feixe de instintos que a sociedade está fortemente interessada em reprimir, mas ele manifesta em grande parte o abandono da luta… O escritor romântico … volta-se para … uma poesia de refúgio e de evasão. A tentativa de Balzac e de Baudelaire é exatamente inversa e tende a integrar na vida os postulados que os Românticos se resignavam em realizar unicamente no plano da arte… Nisso seu empreendimento era muito próximo do mito, que significa sempre um acréscimo do papel da imaginação na vida”. Roger Caillois, “Paris, mythe moderne”, (Nouvelle Revue Française, XXV, 284, 1° de maio de 1937, pp. 695 e 697).
Baudelaire no ensaio sobre Guys: “O dandismo é uma instituição vaga, tão bizarra quanto o duelo; muito antiga, pois dela César, Catilina, Alcibíades nos oferecem exemplos brilhantes: muito geral, pois Chateaubriand encontrou-a nas florestas e às margens dos lagos do Novo Mundo.” Baudelaire, L’Art Romantique, Paris, p. 91.
O capítulo referente a Guys em L’Art Romantique, sobre os dândis: “Todos são representantes … dessa necessidade, hoje muito rara, de combater e destruir a trivialidade… O dandismo é o último brilho de heroísmo na decadência; e o tipo do dândi, encontrado pelo viajante na América do Norte, não enfraquece em nada essa idéia, porque nada nos impede de supor que as tribos que chamamos de selvagens sejam remanescentes de grandes civilizações desaparecidas… Seria preciso dizer que Monsieur G., quando desenha um de seus dândis no papel, confere-lhe sempre seu caráter histórico, até mesmo lendário, ousaria dizer, se não fosse questão do tempo presente e de coisas consideradas geralmente como brincadeira?” Baudelaire, L’Art Romantique (ed. Hachette, tomo III), Paris, pp. 94-95.
A multidão aparece como supremo remédio contra o tédio no ensaio sobre Guys: “‘Todo homem’, disse certa vez Monsieur G., numa dessas conversas que ele ilumina com um olhar intenso e com um gesto evocativo, ‘todo homem … que se entedia no meio da multidão é um tolo! Um tolo! E eu o desprezo!'” Baudelaire, L’Art Romantique, p. 65.
A conhecida anedota sobre o artista Deburau, acometido de tédio, atribuída a um certo “Carlin”, constitui a peça fundamental dos versos do “Eloge de l’ennui” (“Elogio do tédio”), de Charles Boissière, da Sociedade Filotécnica, Paris, 1860. — Carlin é um nome de cachorro, derivado do nome de um ator italiano que representava o papel de Arlequim.
A figura de Blanqui talvez esteja presente nas “Litanias de Satanás” (Baudelaire, Œuvres, ed. Le Dantec, vol. I, Paris, 1931, p. 138): “Tu que diriges aos proscritos esse olhar calmo e altivo.” De fato, existe um desenho feito de memória por Baudelaire, representando a cabeça de Blanqui.
O último texto de Blanqui, escrito em sua última prisão, permaneceu a meu ver totalmente despercebido até hoje. Trata-se de uma especulação cosmológica. É preciso admitir que, ao primeiro olhar, o texto parece banal e de mau gosto. Entretanto, as desajeitadas reflexões de um autodidata são apenas o prelúdio de uma especulação que não se imaginaria de modo algum encontrar neste revolucionário. Na medida em que o inferno é um objeto teológico, esta especulação pode ser denominada de teológica. A visão cósmica que expõe Blanqui, tomando seus dados à ciência natural mecanicista da sociedade burguesa, é uma visão do inferno — e é, ao mesmo tempo, um complemento da sociedade que Blanqui, no fim de sua vida, foi obrigado a reconhecer como vitoriosa. O que causa um choque é a ausência de qualquer traço de ironia nesse esboço. É uma rendição incondicional, porém, ao mesmo tempo, a acusação mais terrível contra uma sociedade que projeta no céu esta imagem do cosmos como imagem de si mesma. O texto, estilisticamente muito marcante, contém as mais notáveis relações tanto com Baudelaire quanto com Nietzsche. (Carta de 6 de janeiro de 1938 a Horkheimer).
Extraído de L’Eternité par les Astres, de Blanqui: “Qual o homem que não se encontra, às vezes, em presença de duas carreiras? Aquela da qual ele se desvia lhe daria uma vida bem diferente, preservando-lhe ao mesmo tempo a mesma individualidade. Uma conduz à miséria, à vergonha, à servidão. A outra leva à glória, à liberdade. Aqui, uma mulher encantadora e a felicidade; lá, cólera e desolação. Falo pelos dois sexos. Quer se a tome ao acaso ou por escolha, não importa: não se escapa da fatalidade. Mas a fatalidade não roca o infinito, que não conhece alternativa e tem lugar para tudo. Existe uma terra em que o homem segue a estrada desdenhada na outra pelo sósia. Sua existência se duplica, um globo para cada uma, depois se bifurca uma segunda, uma terceira vez, milhares de vezes. Ele possui assim sósias completos e inúmeras variantes de sósias que se multiplicam e representam sempre sua pessoa, mas não tomam senão pedaços de seu destino. Tudo o que poderíamos ter sido aqui em baixo, nós o somos em alguma outra parte. Além de nossa existência inteira, do nascimento à morte, que vivemos numa multidão de terras, nós a vivemos em outras terras em mil edições diferentes.” Cit. em Gustave Geffroy, L’Enfermé, Paris, 1897, p. 399.
Extraído do final da Eternité par les Astres: “O que escrevo neste momento, numa cela do Fort du Taureau, eu o escrevi e o escreverei por toda a eternidade, à mesa, com uma pena, vestido como estou agora, em circunstâncias inteiramente semelhantes.” Cit. em Gustave Geffroy, L’Enfermé, Paris, 1897, p. 401. Logo em seguida, Geffroy: “Ele escreve assim seu destino no número sem fim dos astros, e em todos os instantes da duração. Sua cela se multiplica até o incalculável. Ele é, no universo inteiro, o encarcerado que ele é nesta terra, com sua força revoltada, seu pensamento livre.”
Extraído do final de L’Eternité par les Astres: “Na hora presente, a vida inteira de nosso planeta, do nascimento à morte, é vivida em parte aqui e em parte lá, dia a dia, em miríades de astros-irmãos, com todos os seus crimes e suas desgraças. O que chamamos de progresso está enclausurado em cada terra e desaparece com ela. Sempre e em todo lugar, no campo terrestre, o mesmo drama, o mesmo cenário, sobre o mesmo palco estreito, uma humanidade barulhenta, enfatuada de sua grandeza, acreditando ser o universo e vivendo em sua prisão como numa imensidão, para logo desaparecer com o globo que carregou com o mais profundo desprezo o fardo de seu orgulho. Mesma monotonia, mesmo imobilismo nos astros estrangeiros. O universo se repete, sem fim, e patina no mesmo lugar.” Cit. em Gustave Geffroy, L’Enfermé, Paris, 1897, p. 402.
Blanqui enfatiza explicitamente o caráter científico de suas teses, que nada teriam a ver com as ingênuas fantasias de Fourier. “É preciso admitir que cada combinação particular da matéria e das pessoas deve se repetir milhares de vezes para enfrentar as necessidades do infinito.” Cit. em Geffroy, L’Enfermé, Paris, 1897, p. 400.
Misantropia de Blanqui: “As variações começam com os seres animados que têm vontades, dito de outra forma, caprichos. Desde que os homens fazem intervenções, a fantasia intervém com eles. Não que eles possam afetar muito o planeta… Sua turbulência jamais perturba seriamente o andamento natural dos fenômenos físicos, mas desequilibra a humanidade. É, preciso, pois, prever essa influência subversiva que … dilacera as nações e arruina os impérios. É claro que essas brutalidades acontecem sem sequer arranhar a epiderme terrestre. O desaparecimento dos perturbadores não deixaria vestígios de sua presença, que eles julgam soberana, e seria suficiente para devolver à natureza sua virgindade muito pouco atingida.” Blanqui, L’ Eternité par les Astres, pp. 63-64.
Capítulo final (VIII — “Résume”) de L’Eternité par les Astres, de Blanqui: ‘O universo inteiro é composto de sistemas estelares. Para criá-los, a natureza tem apenas cem corpos simples a sua disposição. Apesar da vantagem prodigiosa que ela sabe tirar desses recursos, e do número incalculável de combinações que eles oferecem à sua fecundidade, o resultado é necessariamente um número finito, como o dos próprios elementos; para preencher sua extensão, a natureza deve repetir ao infinito cada uma de suas combinações originais ou tipos. / Todo astro, qualquer que seja, existe portanto em número infinito no tempo e no espaço, não apenas sob um de seus aspectos, mas tal como se encontra em cada segundo de sua duração, do nascimento à morte. Todos os seres distribuídos em sua superfície, grandes ou pequenos, vivos ou inanimados, partilham o privilégio dessa perenidade. / A terra é um desses astros. Todo ser humano é, pois, eterno em cada um dos segundos de sua existência. O que escrevo neste momento, numa cela do Fort du Taureau, eu o escrevi e o escreverei por toda a eternidade, à mesa, com uma pena, vestido como estou agora, em circunstâncias inteiramente semelhantes. Assim para cada um. / Todas essas terras se abismam, uma após a outra, nas chamas renovadoras, para delas renascer e recair ainda, escoamento monótono de uma ampulheta que se vira e se esvazia eternamente a si mesma. Trata-se do novo sempre velho, e do velho sempre novo. / Os curiosos em relação à vida extraterrestre poderão, entretanto, sorrir diante de uma conclusão matemática que lhes conceda não apenas a imortalidade, mas a eternidade? O número de nossos sósias é infinito no tempo e no espaço. Em sã consciência, não se poderia exigir mais. Esses sósias são de carne e osso, até mesmo de calças e paletó, de crinolina e de coque. Não são fantasmas, são a atualidade eternizada. / Eis, entretanto, uma grande falha: não há progresso. Infelizmente! Não são reedições vulgares, repetições. Assim são os exemplares dos mundos passados, e assim também os dos mundos futuros. Somente o capítulo das bifurcações permanece aberto à esperança. Não nos esqueçamos que tudo o que poderíamos ter sido aqui em baixo, nós o somos em alguma outra parte. O progresso aqui embaixo é apenas para nossos descendentes. Eles têm mais sorte que nós. Todas as coisas belas que o nosso globo verá, nossos futuros descendentes já as viram, vêem-nas neste momento e as verão sempre, é claro, sob a forma de sósias que os precederam e que os sucederão. Filhos de uma humanidade melhor, eles já nos ultrajaram muito e nos vaiaram muito sobre as terras mortas, passando por elas depois de nós. Continuam a nos fustigar sobre as terras vivas de onde nós desaparecemos. e nos perseguirão para sempre com seu desprezo sobre as terras a nascer. / Eles e nós — e todos os hóspedes de nosso planeta — renascemos prisioneiros do momento e do lugar que os destinos nos designam na série de suas metamorfoses. Nossa perenidade é um apêndice da sua. Não somos senão fenômenos parciais de suas ressurreições. Homens do século XIX, a hora de nossas aparições está para sempre fixada e nos reconduz sempre os mesmos, na melhor hipótese com a perspectiva de variantes felizes. Nada aí que satisfaça muito a sede de algo melhor. O que fazer? Não procurei meu prazer, procurei a verdade. Não há aqui revelação nem profeta, mas uma simples dedução da análise espectral e da cosmogonia de Laplace. Essas duas descobertas nos fazem eternos. Seria um ganho? Aproveitemos. Seria uma mistificação? Resignemo-nos / … / No fundo, é melancólica essa eternidade do homem pelos astros, e mais triste ainda é esse seqüestro dos mundos irmãos pela inexorável barreira do espaço. Tantas populações idênticas que passam sem ter suspeitado de sua mútua existência! Pois bem! Nós a descobrimos, enfim, no século XIX. Mas quem desejara acreditar nisso? / E depois, até aqui, o passado para nós representava a barbárie, e o futuro significava progresso, ciência, felicidade, ilusão! Esse passado viu desaparecer, sobre todos os nossos globos-sósias, as mais brilhantes civilizações, sem deixar um rastro, e elas desaparecerão ainda sem deixar outros. O futuro reverá sobre bilhões de terras a ignorância, as tolices, as crueldades de nossas velhas eras! / Na hora presente, a vida inteira de nosso planeta, do nascimento à morte, é vivida em parte aqui e em parte lá, dia a dia, em miríades de astros- irmãos, com todos os seus crimes e suas desgraças. O que chamamos de progresso está enclausurado em cada terra e desaparece com ela. Sempre e em todo lugar, no campo terrestre, o mesmo drama, o mesmo cenário, sobre o mesmo palco estreito uma humanidade barulhenta, enfatuada de sua grandeza, acreditando ser o universo e vivendo em sua prisão como numa imensidão, para logo desaparecer com o globo que carregou com o mais profundo desprezo o fardo de seu orgulho. Mesma monotonia, mesmo imobilismo nos astros estrangeiros. O universo se repete, sem fim, e patina no mesmo lugar. A eternidade perfaz imperturbavelmente ao infinito as mesmas representações.” A. Blanqui, L’Eternité par les Astres: Hypothèse Astronomique, Paris, 1872, pp. 73-76. O trecho que falta detém-se no “consolo” proporcionado pela idéia de que os entes queridos que se foram desta terra fazem companhia, enquanto sósias, nesta mesma hora, ao nosso sósia, num outro planeta.
“Pensemos este pensamento em sua forma mais terrível: a existência, tal como ela é, sem sentido ou objetivo, porém, repetindo-se inevitavelmente, sem um final, no nada: ‘o eterno retorno‘. [p. 45] … Negamos objetivos finais: se a existência tivesse um, este deveria ter sido atingido.” Friedrich Nietzsche, Gesammelte Werke, Munique, 1926, vol. XVIII, Der Wille zur Macht (A vontade de Poder), Livro I, p. 46.
“Contudo, o velho hábito de imaginar um objetivo para cada acontecimento é tão poderoso que o pensador precisa se esforçar para não pensar a falta mesma de objetivo do mundo como intencional. Esta idéia — de que, portanto, o mundo evita intencionalmente um objetivo … — impõe-se a todos aqueles que querem atribuir ao mundo a faculdade da eterna novidade [p. 369] … O mundo, enquanto força, não deve ser pensado como ilimitado, pois ele não pode ser pensado dessa forma… Falta, portanto, ao mundo também a faculdade da eterna novidade.” Nietzsche, Gesammelte Werke, vol. XIX, Munique, 1926, p. 370 (Der Wille zur Macht, Livro IV).
“Se o mundo pode ser pensado como uma grandeza determinada de força e como um número determinado de centros de força — e qualquer outra representação seria … inútil — resulta daí que ele deve passar por um número calculável de combinações no grande jogo de dados de sua existência. Num tempo infinito, qualquer combinação possível seria atingida um dia; além disso, ela seria atingida infinitas vezes. E como entre cada combinação e seu retorno seguinte precisariam ter sido percorridas todas as combinações ainda possíveis … seria provado com isso um círculo de séries absolutamente idênticas… Esta concepção não é simplesmente mecanicista; pois se o fosse, ela não determinaria um retorno infinito de casos idênticos, e sim um estado final. Porque o mundo não o atingiu, o mecanicismo deve nos parecer uma hipótese incompleta e apenas provisória.” Nietzsche, Gesammelte Werke, Munique, 1926, vol. XIX, p. 373 (Der Wille zur Macht, Livro IV).
Na idéia do eterno retorno, o historicismo do século XIX se derruba a si mesmo. Segundo ela, toda tradição, mesmo a mais recente, torna-se a tradição de algo que já se passou na noite imemorial dos tempos. Com isso, a tradição assume o caráter de uma fantasmagoria, na qual a história primeva desenrola-se nos palcos sob a mais moderna ornamentação.
Sobre o problema da Modernidade e Antigüidade: “Esta existência que se tornou inconstante e absurda e este mundo que se tornou inconcebível e abstrato se conjugam na vontade do eterno retorno, do igual como tentativa de repetir, no auge da modernidade, no símbolo, a vida dos gregos no cosmos vivo do mundo visível.” Karl Liwith, Nietzsches Philosophie der ewigen Wiederkunft des Gleichen, Berlim, 1935, p. 83.
L’Eternité par les Astres foi escrito quatro, no máximo, cinco anos após a morte de Baudelaire (no mesmo tempo da Comuna de Paris?). — Mostra-se neste texto o que as estrelas provocam naquele mundo do qual Baudelaire, com justa razão, as excluiu.
A idéia do eterno retorno faz surgir magicamente a fantasmagoria da felicidade a partir da miséria dos anos da modernização alemã. Esta doutrina é uma tentativa de conciliar as tendências contraditórias do prazer: a da repetição e da eternidade. Este heroísmo é uma contrapartida ao heroísmo de Baudelaire, que faz surgir magicamente a fantasmagoria da modernidade a partir da miséria do Segundo Império.
Crítica à doutrina do eterno retorno: “Como estudioso das ciências naturais, … Nietzsche é um diletante que filosofa, e como fundador de religião, um ‘híbrido de doença e vontade de poder’.” [Prefácio a Ecce Homo], (p. 83) “Toda esta doutrina parece ser nada mais que um experimento da vontade humana e uma tentativa de perpetuar o nosso fazer e não fazer, um substituto ateísta da religião. A isto corresponde o estilo da prédica e a composição de Zaratustra, que muitas vezes imita o Novo Testamento nos mínimos detalhes.” (pp. 86- 87) Karl Löwith, Nietzsches Philosophie der ewigen Wiederkunft des Gleichen, Berlim, 1935.
Extraído de “Les étoiles” (As estrelas), de Lamartine:
Então esses globos de ouro, essas ilhas de luz,
Que a sonhadora pálpebra procura por instinto,
Jorram aos milhares da sombra fugidia,
Como um pó de ouro sobre os passos da noite;
E o sopro da tarde que voa sobre seu rastro
Semeia-os em turbilhão no brilhante espaço.
Tudo o que procuramos, o amor, a verdade,
Esses frutos caídos do céu, de que a terra provou,
Em vossos brilhantes climas que o olhar inveja
Nutrem para sempre os filhos da vida;
E o homem, um dia talvez, entregue a seu destino,
Encontrará em vossa casa tudo o que perdeu.
Lamartine, Œuvres Complètes, vol. I, Paris, 1850, pp. 221 e 224 (Méditations). A meditação termina com um sonho, no qual Lamartine se imagina transformado em estrela, entre as estrelas.
Extraído de “L’infini dans les cieux” (O infinito nos céus), de Lamartine:
E o homem, entretanto, este inseto invisível,
Rastejando nos sulcos de um globo imperceptível,
Mede desses fogos as grandezas e os pesos,
Designa-lhes seu lugar, e sua estrada, e suas leis,
Como se, em suas mãos que o compasso fere,
Ele rolasse esses sóis como grãos de areia!
“E Saturno obscurecido por seu anel longínquo!”
Lamartine, Œvres Complètes, Paris, 1850, pp. 81-82 e 82 (Harmonies Poétiques et Religieuses).
Deslocamento do inferno: “E, finalmente, qual é o lugar das penas? Todas as regiões do universo com uma condição análoga á da Terra, e piores ainda.” Jean Reynaud, Terre et Ciel, Paris, 1854, p. 377. O livro, extremamente insensato, quer fazer passar seu sincretismo teológico, sua philosophie religieuse, como a nova teologia. A eternidade dos castigos infernais é uma heresia: “A antiga trilogia Terra, Céu, Inferno encontra-se, pois, finalmente reduzida à dualidade druídica Terra e Céu.” (p. XIII)
A espera é, de certa forma, o lado interior forrado do tédio. (Hebel: O tédio espera pela morte.)
“Eu chegava primeiro; fui feito para esperar.” J.-J. Rousseau, Les Confessions, ed. Hilsum, Paris, 1931, vol. III, p. 115.
Primeira alusão à doutrina do eterno retorno no final do quarto livro de Die fröhliche Wissenschaft (A Gaia Ciência): “E se, um dia ou uma noite qualquer, um demônio viesse sorrateiramente atrás de ti, perseguindo-te na tua mais solitária solidão, e te dissesse: ‘Esta vida que estás vivendo agora e já viveste terá que ser vivida por ti mais uma vez e ainda mais incontáveis vezes; nada nela será novo, ao contrário, cada dor e cada prazer, cada pensamento e cada suspiro e tudo o que existe de indescritivelmente pequeno e grande em tua vida terá de retornar, tudo na mesma sucessão e seqüência — e assim também esta aranha e este luar por entre as árvores, e igualmente este instante e eu mesmo. A eterna ampulheta da existência será sempre virada de novo — e tu com ela, grãozinho de poeira!’ — Não irias tu amaldiçoar o demônio que assim falasse? Ou terias tu vivido um instante formidável em que irias responder-lhe: ‘tu és um deus e nunca ouvi coisas mais divinas!” Cit. em Löwith, Nietzsche Philosophie der ewigen Wiederkunft des Gleichen, Berlim, 1935, pp. 57-58.
O “eterno retorno” é a forma fundamental da consciência histórica primeva, mítica. (É uma consciência mítica porque não reflete.)
Confrontar L’Eternité par les Astres com o espírito de 1848, que anima Terre et Ciel, de Reynaud. A esse respeito, Cassou: “O homem, descobrindo seu destino terrestre, tem uma espécie de vertigem, e não pode, de imediato, conformar-se apenas com esse destino terrestre. Ele precisa associá-lo à mais vasta imensidão possível de tempo e de espaço. Em sua dimensão mais extensa, ele quer se embriagar de ser, de movimento, de progresso. Somente então ele pode, com toda confiança e com todo orgulho, pronunciar esta sublime palavra do mesmo Jean Reynaud: ‘Durante muito tempo pratiquei o universo’.” “Não encontramos nada no universo que não sirva para nos elevar, e não podemos nos elevar realmente senão fazendo uso daquilo que o universo nos oferece. Os próprios astros, em sua sublime hierarquia, não são senão os degraus superpostos, pelos quais subimos progressivamente até o infinito.” Jean Cassou, Quarante-huit, Paris, 1939, pp. 49 e 48.
A vida no círculo encantado do eterno retorno garante uma existência que não sai do aurático.
Quanto mais a vida é submetida a normas administrativas, mais as pessoas precisam aprender a esperar. O jogo de azar tem o grande fascínio de liberar as pessoas da espera.
O boulevardier (folhetinista) (redator dos suplementos literários) espera por aquilo que no fundo ele espera. A frase de Hugo “esperar é a vida” aplica-se em primeiro lugar a ele.
A essência do acontecimento mítico é o retorno. Nele está inscrita, como figura secreta, a inutilidade gravada na testa de alguns heróis dos infernos (Tântalo, Sísifo ou as Danaides). Retomando o pensamento do eterno retorno no século XIX, Nietzsche assume o papel daquele em quem se consuma de novo a fatalidade mítica. (A eternidade das penas infernais talvez tenha privado a idéia antiga do eterno retorno de sua ponta mais terrível. A eternidade de um ciclo sideral é substituída pela eternidade dos sofrimentos.)
A crença no progresso, em sua infinita perfectibilidade — uma tarefa infinita da moral —, e a representação do eterno retorno são complementares. São as antinomias indissolúveis a partir das quais deve ser desenvolvido o conceito dialético do tempo histórico. Diante disso, a idéia do eterno retorno aparece como o “racionalismo raso”, que a crença no progresso tem a má fama de representar, sendo que esta crença pertence à maneira de pensar mítica tanto quanto a representação do eterno retorno.
O amor é um pássaro de passagem.
Nouveaux Tableaux de Paris, ou Observations sur les Moeurs et Usages des Parisiens au Commencement du XIX Siècle, vol. I, Paris, 1828, p. 37.
Não estaria ele acostumado a reinterpretar a imagem da cidade, por toda parte, em razão de suas constantes andanças? Não transformaria ele a passagem em um cassino, em um salão de jogos, onde aposta as fichas vermelhas, azuis, amarelas dos sentimentos em mulheres: em um rosto que surge — responderá este rosto a seu olhar? —, em uma boca silente — dirá ela algo? Aquilo que mira o jogador a partir de cada número sobre o pano verde — a sorte — dirige-lhe uma piscadela vinda de todos os corpos femininos como a quimera da sexualidade: como o seu tipo. Este nada mais é do que o número, a cifra sob a qual a sorte quer ser chamada pelo nome, neste exato instante, para saltar logo depois para um outro número. O tipo é a casa da aposta — que rende trinta e seis vezes o valor apostado — sobre a qual recai sem querer o olhar do libertino, como a bolinha de marfim que cai na casa vermelha ou na preta. Ele sai do Palais-Royal com os bolsos cheios, acena para uma prostituta e celebra mais uma vez em seus braços o ato com o número, graças ao qual o dinheiro e a riqueza, livres de todo peso terrestre, chegaram a ele pelas mãos do destino como um abraço plenamente retribuído. Pois no bordel e no salão de jogos trata-se do mesmo deleite, que é o mais pecaminoso: enfrentar o destino no prazer. Deixemos que os idealistas ingênuos acreditem que o prazer dos sentidos, seja qual for, possa determinar o conceito teológico de pecado. A luxúria autêntica tem como base nada mais do que justamente essa subtração do prazer do curso da vida com Deus, cuja ligação com ele reside no nome. O próprio nome é o grito do prazer desnudo. Este elemento sóbrio, em si mesmo desprovido de destino — o nome — não conhece outro adversário senão o destino, que ocupa o seu lugar na prostituição e monta seu arsenal na superstição. Daí, no jogador e na prostituta, a superstição que dispõe as figuras do destino e preenche todo o entretenimento galante com o atrevimento e a concupiscência do destino, fazendo o próprio prazer ajoelhar-se diante de seu trono.
“Ao evocar minhas lembranças do Salon des Étrangers, tal como era na segunda década de nosso século, vejo diante de mim os traços nobres e a figura cavalheiresca do conde húngaro Hunyady, o maior jogador daquela época, que alvoroçava então toda a sociedade… A sorte de Hunyady foi excepcional durante muito tempo; nenhuma banca pôde resistir a suas investidas, e seus ganhos devem ter atingido aproximadamente dois milhões de francos. Seu comportamento era surpreendentemente calmo e extremamente distinto; ficava sentado, aparentemente impassível, a mão direita pousada sobre o peito da casaca, enquanto milhares de francos dependiam de uma carta de baralho ou de um lance de dados. Seu camareiro, no entanto, confidenciou a um amigo indiscreto que os nervos de seu senhor não eram assim tão fortes quanto ele procurava demonstrar, e que, bem ao contrário, pela manhã o conde trazia no peito as marcas sangrentas de suas unhas, que ele, durante a agitação do jogo, quando este tomava um rumo perigoso, cravava em sua carne.” Captain Gronow, Aus der grossen Welt, Stuttgart, 1908, p. 593.
Sobre o modo como Blücher jogava em Paris, ver o livro de Gronow, Aus der grossen Welt, pp. 54-56. Quando perdeu, obrigou o Banco da França a adiantar-lhe 100.000 francos como capital de jogo, e teve que abandonar Paris quando este escândalo veio à tona. “Blücher não saía da casa de jogo do n. 113 do Palais-Royal, e gastou seis milhões durante sua estada; todas as suas terras estavam empenhadas quando ele deixou Paris.” Paris ganhou mais com as tropas de ocupação do que teve de pagar como indenização de guerra.
É apenas em comparação com o Antigo Regime que se pode dizer que, no século XIX, o burguês passa a jogar.
A seguinte história demonstra de modo bastante convincente como justamente a imoralidade pública, em total oposição à imoralidade privada, carrega seu corretivo em si mesma, num cinismo libertador. A narrativa se encontra em Carl Benedict Hase, que vivia na França como um pobre preceptor, e que enviou para casa cartas escritas de Paris e durante suas andanças: “Quando eu passava pela Pont-Neuf, saltou em minha direção uma rapariga exageradamente maquilada. Ela estava com um vestido leve de musselina, erguido até os joelhos, deixando ver as calçolas de seda vermelha que cobriam as coxas e o ventre. ‘Tome. meu amigo, você é jovem, é estrangeiro, você vai precisar disto…’, disse ela, tomando-me a mão e deixando nela um bilhete, para depois desaparecer na multidão. Pensei ter recebido algum endereço; olho o bilhete, e o que leio? O anúncio de um médico que diz curar todas as doenças imagináveis em pouco tempo. É curioso que essas moças, responsáveis por toda aquela desgraça, coloquem em nossa mão os meios para nos livrarmos dela.” Carl Benedict Hase, Briefe von der Wanderung und aus Paris, Leipzig, 1894, pp. 48-49.
Quanto à virtude das mulheres, só tenho uma resposta para dar àqueles que me perguntam: ela se parece muito com as cortinas dos teatros, porque suas saias se levantam cada noite três vezes, e não uma.” Comte Horace de Viel-Castel, Memoires sur le Règne de Napoléon III, vol. II, Paris, 1883, p. 188.
“Hirondelles — mulheres que ficam à janela”. Levic-Torca, Paris-Noceur, Paris, 1910, p. 142. As janelas do andar superior das passagens são balaustradas nas quais se aninham os anjos a quem chamamos de “andorinhas”.
Sobre o mofo (Veuillot: “Paris cheira a mofo”) da moda: o “glauco clarão” sob as saias, de que fala Aragon. O espartilho como passagem do tronco. O imenso contraste com o mundo ao ar livre de hoje em dia. Aquilo que hoje é comum nas prostitutas baratas — não se despir — pode ter sido outrora a praxe mais distinta. Apreciava-se o retroussée — a saia levantada — na mulher. Hessel supõe ter encontrado aqui a origem do erotismo de Wedekind, cujo páthos do ar livre teria sido um blefe. E que mais? ■ Moda ■
Sobre a função dialética do dinheiro na prostituição. Ele compra o prazer e ao mesmo tempo torna-se expressão da vergonha. “Eu sabia”, diz Casanova a respeito de uma alcoviteira, “que eu não teria a força de partir sem dar-lhe alguma coisa”. Esta expressão singular revela seu conhecimento do mecanismo mais secreto da prostituição. Moça alguma decidiria tornar-se prostituta se contasse apenas com a remuneração tarifária dada por seus clientes. Também a gratidão deles, que talvez represente o acréscimo de alguma porcentagem, mal seria considerada por ela uma base suficiente. Como funciona, então, seu cálculo inconsciente do homem? Não se pode compreender esse mecanismo enquanto se considerar o dinheiro somente como um meio de pagamento ou como um presente. Com certeza, o amor da prostituta é venal. Mas não a vergonha de seu cliente. Esta procura um esconderijo para estes quinze minutos, e o encontra no lugar mais genial: no dinheiro. Há tantas nuanças do pagamento quanto há nuanças do jogo amoroso: indolentes e rápidas, furtivas ou brutais. O que isto quer dizer? A ferida vermelha de vergonha no corpo da sociedade secreta dinheiro e sara. Ela se reveste de uma crosta metálica. Deixemos ao espertalhão o prazer barato de imaginar-se livre de vergonha. Casanova sabia das coisas: o atrevimento lança a primeira moeda sobre a mesa, a vergonha cobre cem vezes a aposta, para ocultá-la.
“A dança na qual a vulgaridade … se expõe com um atrevimento sem igual é a tradicional quadrilha francesa. Quando os dançarinos, com suas pantomimas, conseguem ofender profundamente todo sentimento de delicadeza, não chegando, porém, ao ponto de precisar temer serem expulsos do salão pelos agentes de polícia ali presentes, essa dança se chama cancan. Quando, ao contrário, todo sentimento moral é pisoteado pela maneira de dançar, quando, após uma longa hesitação, os policiais sentem-se finalmente impelidos a chamar a atenção dos dançarinos para a decência, com as palavras habituais: ‘Dancem com mais decência ou serão postos para fora!’, então esta versão de intensidade mais elevada, ou melhor, ‘esta versão mais rebaixada’ chama-se chahut. /… A grosseria bestial … fez surgir um regulamento policial… Os cavalheiros podem comparecer a estes bailes fantasiados, mas não mascarados. Em parte, para não ficarem tentados a cometer maiores vulgaridades por estarem irreconhecíveis, mas também — e sobretudo — para que, caso um dançarino quisesse mostrar durante a dança o non plus ultra da depravação parisiense e fosse por isso posto para fora pelos policiais, ele fosse reconhecido e impedido de adentrar novamente o salão… As mulheres, ao contrário, só podem comparecer se estiverem usando máscaras.” Ferdinand von Gall, Paris und seine Salons, vol. 1, Oldenburg, 1844, pp. 209 e 213-214.
Comparação entre os campos de ação erótica de hoje e aqueles de meados do século passado. O jogo social do erotismo gira hoje em torno da pergunta: até que ponto uma mulher honesta pode chegar sem se perder? Representar as alegrias do adultério sem o fato que efetivamente o constitui é um dos temas preferidos pelos dramaturgos. O terreno sobre o qual se desenrola o duelo do amor com a sociedade é, portanto, o domínio do amor “livre’ num sentido bastante amplo. Nos anos quarenta, cinqüenta e sessenta do século passado, porém, as coisas eram bem diferentes. Nada ilustra mais claramente este fato que um relato sobre as “pensões”, apresentado por Ferdinand von Gall em seu livro Paris und seine Salons (vol. I, Oldenburg, 1844-1845, pp. 225-231). Nele fica-se sabendo que em muitas dessas pensões era a regra, à hora do jantar — do qual também podiam participar estranhos com reserva antecipada —, comparecerem algumas cocottes. Elas se viam na obrigação de assumirem a aparência de moças de boa família e, de fato, não deixavam cair a máscara tão cedo; ao contrário, cercavam-se de uma interminável embalagem de bom comportamento e laços familiares, que era para ser retirada por meio de um complexo jogo de intrigas, o que, afinal, elevava seu preço. Nestas situações, naturalmente, expressa-se menos o recato da época do que seu fanatismo pelas máscaras.
Ainda sobre o fanatismo pelas máscaras: “Pelas estatísticas da prostituição sabe-se que a mulher perdida tem um certo orgulho pelo fato de a natureza considerá-la ainda digna de ser mãe. Este desejo, porém, não a impede de ter aversão aos incômodos e a deformação ligados a esta honraria. Por isso, ela escolhe de bom-grado um caminho intermediário para exibir o seu estado: ela o mantém ‘por dois meses, por três meses’, mas, naturalmente, não por mais tempo.” F. Th. Vischer, Mode und Cynismus, Stuttgart, 1879, p. 7. ■ Moda ■
Na prostituição, expressa-se o lado revolucionário da técnica (o lado criativo, mas também, certamente, o seu lado descobridor: o simbólico). “Como se as leis da natureza, às quais o amor se submete, não fossem mais tirânicas e mais odiosas que as da Sociedade! O sentido metafísico do sadismo consiste na esperança de que a revolta do homem atingirá uma intensidade tal que intimará a natureza a mudar suas leis – que as mulheres, não querendo mais tolerar as provas da gravidez, nem os riscos e as dores do parto e do aborto, obrigarão a natureza a inventar um outro meio para que o homem se perpetue sobre a terra.” Emmanuel Berl, “Premier Pamphlet” (Europe, n° 75, pp. 405-406). De fato: a revolta sexual contra o amor não corresponde apenas a uma vontade fanática e obsessiva de prazer, ela visa também a submeter a natureza e conformá-la a esta vontade. Os traços aqui em questão tornam-se ainda mais nítidos quando se considera a prostituição (sobretudo na forma cínica na qual era praticada nas passagens parisienses por volta do final do século) menos como oposição ao amor do que como decadência do amor. O aspecto revolucionário desta decadência se insere então, quase espontaneamente, na decadência das passagens.
A fauna feminina das passagens: prostitutas, grisettes, velhas vendedoras com cara de bruxa, luveiras, vendedoras de bugigangas, demoiselles — este era o nome dado aos incendiários disfarçados de mulher por volta de 1830.
Por volta de 1830: “O Palais-Royal está ainda na moda — o bastante para que o aluguel das cadeiras traga 32.000 francos a Luis Filipe; e as concessões de jogos, cinco milhões e meio ao Tesouro… As casas de jogo do Palais-Royal rivalizam-se com o Cercle des Étrangers, na Rue Grange-Batelière, e com Frascati, na Rue Richelieu.” Dubech e D’Espezel, Histoire de Paris, Paris, 1926, p. 365.
Ritos de passagem – assim se denominam no folclore as cerimônias ligadas à morte, ao nascimento, ao casamento, à puberdade, etc. Na vida moderna, estas transições tornaram-se cada vez mais irreconhecíveis e difíceis de vivenciar. Tornamo-nos muito pobres em experiências liminares. O adormecer talvez seja a única delas que nos restou. (E, com isso, também o despertar.) E, finalmente, tal qual as variações das figuras do sonho, oscilam também em torno de limiares os altos e baixos da conversação e as mudanças sexuais do amor. “Como agrada ao homem”, diz Aragon, “manter-se na soleira da imaginação!” (Paysan de Paris, 1926, p. 74). Não é apenas dos limiares destas portas fantásticas, mas dos limiares em geral que os amantes, os amigos, adoram sugar as forças. As prostitutas, porém, amam os limiares das portas do sonho. – O limiar [Schwelle] deve ser rigorosamente diferenciado da fronteira [Grenze]. O limiar é uma zona. Mudança, transição, fluxo estão contidos na palavra schwellen (inchar, intumescer), e a etimologia não deve negligenciar estes significados. Por outro lado, é necessário determinar o contexto tectônico e cerimonial imediato que deu à palavra o seu significado. ■ Morada de sonho ■
Sob o peristilo nordeste do Palais-Royal encontrava-se o Café des Aveugles. “Lá, uma meia dúzia de cegos do asilo dos Quinze-Vingts tocava incessantemente uma música quase ensurdecedora, das seis horas da tarde à uma hora da manhã, pois esses estabelecimentos subterrâneos só ficavam abertos ao público do crepúsculo à aurora. Era o ponto de encontro predileto de conhecidas Laíses e Frinéias, sereias impuras, que tinham pelo menos o mérito de dar movimento e vida a esse imenso bazar de prazeres — hoje triste, sombrio e mudo, como os lupanares de Herculano. Histoire des Cafés de Paris Extraite des Mémoires d’un Viveur, Paris, 1857, p. 7.
“No dia 31 de dezembro de 1836, à meia-noite, todas as casas de jogo foram fechadas por ordem da polícia. Na Frascati houve uma pequena rebelião. Foi o golpe mortal para o Palais-Royal, já destronado desde 1830 pelo boulevard”. Dubech-D’Espezel, Histoire de Paris, Paris, 1926, p. 389.
“Talma, Talleyrand, Rossini, Balzac” citados como jogadores em Édouard Gourdon, Les Faucheurs de Nuit, Paris, 1860, p. 14.
“Afirmo que a paixão pelo jogo é a mais nobre das paixões, porque ela comporta todas as outras. Uma seqüência de jogadas felizes me proporciona mais prazer do que um homem que não joga poderia ter em vários anos. Eu me deleito espiritualmente, isto é, da maneira mais sensível e mais delicada. Você pensa que no ouro que me chega eu só vejo o lucro? Você está enganado. Vejo nele as alegrias que ele proporciona e saboreio-as verdadeiramente. Essas alegrias, vivas e ardentes como relâmpagos, são rápidas demais para me dar desgosto e diversas demais para me entediar. Tenho cem vidas numa só. Se viajo, faço-o como uma faísca elétrica… Se tenho a mão fechada e guardo meu dinheiro, é porque conheço muito bem o preço do tempo para gastá-lo como os outros homens. Um prazer que eu me concedesse me faria perder mil outros prazeres… Tenho os prazeres do espírito e não quero outros.” Édouard Gourdon, Les Faucheurs de Nuit, Paris, 1860, pp. 14-15. A citação foi tomada de empréstimo a La Bruyère! — Cf. “Mesmo que fosse possível, eu já não poderia do modo como eu queria.” Wallenstein.
“As concessões de jogos compreendiam: a casa do Cercle des Étrangers, na Rue Grange-Batelière, n° 6; a casa de Livry, conhecida como Frascati, na Rue Richelieu, n° 103; a casa Dunans, na Rue du Mont-Blanc, n° 40; a casa Marivaux, na Rue Marivaux, n° 13; a casa Paphos, na Rue du Temple, n° 110; a casa Dauphine, na Rue Dauphine, n° 36; e, no Palais-Royal, o n° 9 (até o n° 24), o n° 129 (ate o n° 137); o n° 119 (a partir do n° 102) e o n° 154 (a partir do n° 145). Esses estabelecimentos, apesar de seu grande número, não eram suficientes para os jogadores. A especulação abriu outros, que a polícia nem sempre conseguiu fiscalizar com eficiência. Joga-se aí o carteado, a bouillotte e o bacará. Mulheres velhas, restos vergonhosos e grotescos de todos os vícios … ocupam-se de sua direção. São as chamadas viúvas de generais, protegidas pelos chamados coronéis, que repartem entre si o produto das bancas. Esse estado de coisas prolonga-se até 1837, época da extinção das concessões de jogos.” Édouard Gourdon, Les Faucheurs de Nuit, Paris, 1860, p. 34.
Gourdon informa que, em certos círculos, os jogadores eram quase exclusivamente mulheres. Op. cit., pp. 55 et seq.
“A aventura do guarda municipal a cavalo, colocado como um talismã diante da porta de um jogador maltratado pela sorte, ficou nos anais de nossos círculos. O bravo soldado, que pensava estar ali para fazer as honras aos convidados de alguma festa, já estranhava o silêncio da rua e da casa, quando chegou, por volta de uma hora da manhã, a triste vítima do pano verde. Como nas outras noites, e apesar do poder do talismã, o jogador havia perdido muito. Ele toca a campainha; ninguém atende. Toca novamente; nada se move na guarita do cérbero adormecido, e a porta é inexorável. Impaciente, exasperado, amargurado por causa das perdas que acabara de sofrer, o locatário quebra uma vidraça com sua bengala para acordar o porteiro. Neste momento, o guarda, até então um simples espectador da cena noturna, julga que é seu dever intervir. Ele se abaixa, agarra o perturbador pela gola, iça-o sobre o cavalo e galopa até seu quartel, satisfeito com o pretexto válido para pôr fim a uma vigilância que o entediava… Apesar da explicação, o jogador passou o resto da noite numa cama de quartel.” Édouard Gourdon, Les Faucheurs de Nuit, Paris, 1860, pp. 181-182.
A propósito do Palais-Royal: “O antigo ministro da Justiça, Merlin, apresentou a proposta de transformar em um quartel este palácio do luxo e de todos os prazeres lascivos, e assim vedar o seu lugar de reunião àquela raça de gente infame.” F. J. L. Meyer, Fragmente aus Paris im IV Jahr der französischen Republik, vol. I, Hamburgo, 1797, p. 24.
Delvau sobre as lorettes de Montmartre: “Não são mulheres — são noites.” Alfred Delvau, Les Dessous de Paris, Paris, 1860, p. 142.
Não existe urna determinada estrutura do dinheiro que só se deixa conhecer no destino, e uma determinada estrutura do destino que só se deixa conhecer no dinheiro?
Professeurs de la langue verte.’ “Não possuindo nada além de uma perfeita experiência das combinações vencedoras, das séries e das intermitências, eles se instalavam nas casas de jogo da abertura ao encerramento, e terminavam a noite nos antros de bouillotte, chamados de casas Baural. À espreita de noviços, de iniciantes … esses estranhos professores davam conselhos, discutiam jogadas passadas, prediziam as jogadas futuras e jogavam pelos outros. Em caso de perda, eles não faziam senão maldizer a sorte, suspeitar de um lance fraudulento, responsabilizar o azar, o dia do mês se fosse um 13, o dia da semana se fosse uma sexta-feira. Em caso de ganho, pegavam seu prêmio, independentemente do que escamoteavam durante o manuseio dos fundos, operação que se chamava: ‘garantir o leite das crianças’. Esses operadores se dividiam em várias classes: os aristocratas, todos coronéis ou marqueses do Antigo Regime, os plebeus oriundos da Revolução, enfim, aqueles que ofereciam seus conselhos por cinqüenta centavos.” Alfred Marquiset, Jeux et Joueurs d’Autrefois, 1789-1837, Paris, 1917, P. 209. O livro contém dados preciosos sobre o papel da aristocracia e dos militares na exploração do jogo.
Palais-Royal. “No segundo andar, moram sobretudo as ‘mulheres perdidas’ da classe nobre… No terceiro andar e ‘no paraíso’, nas mansardas, moram as da classe mais baixas; o trabalho obriga-as a morar no centro da cidade, no Palais-Royal, na Rue Traversière e nas cercanias… No Palais-Royal moram talvez de 600 a 800 — mas um número incomparavelmente maior perambula por ali à noite, pois é o lugar onde se encontra a maioria dos ociosos. Na Rue Saint-Honoré e em algumas ruas adjacentes, elas ficam enfileiradas à noite como os cabriolés de aluguel durante o dia, ao redor do Palais. Seu número, no entanto, diminui à medida que nos distanciamos do Palais-Royal.” J. F. Benzenberg, Briefe geschrieben auf einer Reise nach Paris, vol. I, Dortmund, 1805, pp. 261 e 263. O autor calcula o número de “mulheres perdidas” em “cerca de 10.000”; “antes da Revolução, um relatório da polícia indicava o número de 28.000”; op. cit., p. 261.
“O vício cumpriu sua tarefa costumeira, para ela, como para as outras. Refinou e tornou desejável a feiura atrevida de seu rosto. Sem nada perder da graça suburbana de sua origem, a jovem tornou-se, com seus adornos enfáticos e seus encantos audaciosamente trabalhados pelos cremes, um aperitivo e uma tentação para os apetites entediados, para os sentidos amortecidos que só se excitam com as provocações da maquiagem e o frufru dos vestidos espetaculosos.” J.-K. Huysmans, Croquis Parisiens, Paris, 1886, p. 57 (“L’ambulante”).
“É impossível esperar que um burguês algum dia consiga compreender os fenômenos de distribuição das riquezas. Pois, à medida que se desenvolve a produção mecânica, a propriedade se despersonaliza e se reveste com a forma coletiva impessoal da sociedade anônima, cujas cotas terminam por rodopiar no turbilhão da bolsa de valores… Alguns perdem…, outros ganham, de uma maneira que se assemelha tanto ao jogo, que os negócios da bolsa de valores são efetivamente chamados de ‘jogo’. O desenvolvimento econômico moderno como um todo tende a transformar, cada vez mais, a sociedade capitalista em um enorme cassino internacional, onde os burgueses ganham e perdem capitais em conseqüência de acontecimentos que lhes permanecem desconhecidos… O ‘inescrutável’ reina na sociedade burguesa como num antro de jogo… Sucessos e fracassos, cujas causas são inesperadas, geralmente desconhecidas e aparentemente regidas pelo acaso, predispõem o burguês a adquirir uma mentalidade de jogador… O capitalista, cuja fortuna está aplicada em valores mobiliários, submetidos a oscilações de preço e dividendos cujas causas desconhece, é um jogador profissional. O jogador, porém, é um ser altamente supersticioso. Os freqüentadores assíduos dos antros de jogo possuem sempre fórmulas mágicas para exorcizar o destino; um deles murmura uma oração a santo Antônio de Pádua ou a qualquer outro espírito celestial; um segundo aposta apenas quando uma determinada cor ganhou; um terceiro segura com a mão esquerda uma pata de coelho etc. O inescrutável social envolve o burguês, como o inescrutável da natureza envolve o selvagem.” Paul Lafargue, “Die Ursachen des Gottesglaubens”, Die Neue Zeit, XXIV, n° I, Stuttgart, 1906, p. 512.
Adolf Stahr se refere a um certo Chicard, primeiro dançarino de cancã do Bal Mabille, e afirma que ele dançava sob a vigilância de dois sargentos da polícia que não tinham outra função a não ser vigiar a dança deste único homem. A este propósito, cf. a afirmação — citada por Woldemar Seyffarrh, Wahrnehmungen in Paris, 1853 und 1854, Gotha, 1855, p. 136, sem referências precisas — segundo a qual “apenas a superioridade da força policial consegue conter a bestialidade da população parisiense dentro de limites minimamente aceitáveis”.
O tipo original — uma espécie de homem primitivo com uma barba enorme — que podia ser visto no Palais-Royal, chamava-se Chodruc Duclos.
“Tentar a sorte não é uma volúpia medíocre. Experimentar — num segundo — meses, anos, toda uma vida de temor e de esperança não é um prazer sem embriaguez. Eu não tinha nem dez anos quando o Sr. Grépinet, meu professor da nona série, leu-nos em aula a fábula do Homem e do Gênio. No entanto, lembro-me dela melhor do que se a tivesse ouvido ontem. Um gênio dá a um menino um novelo de linha e lhe diz: ‘Este é o fio dos seus dias. Pega-o. Quando quiseres que seu tempo passe, puxa o fio: seus dias passarão rápidos ou lentos conforme você desenrolar o novelo, rápida ou lentamente. Enquanto você não tocar o fio, permanecerá na mesma hora da sua existência.’ O menino pegou o fio; puxou-o primeiro para tornar-se um homem, depois para desposar a noiva que amava, depois para ver crescerem seus filhos, para conseguir os empregos, os salários, as honras, para superar as preocupações, evitar os aborrecimentos, as doenças que vêm com a idade, enfim, ai de mim! para terminar uma velhice insuportável. Ele tinha vivido quatro meses e seis dias desde a visita do gênio. Pois bem! O que é o jogo senão a arte de viver num segundo as mudanças que o destino geralmente só produz ao longo de muitas horas e mesmo de muitos anos; a arte de acumular num só instante as emoções esparsas na lenta existência dos outros homens, o segredo de viver toda uma vida em alguns minutos, enfim, o novelo de linha do gênio? O jogo é um corpo-a-corpo com o destino… Joga-se a dinheiro — dinheiro, quer dizer, a possibilidade imediata, infinita. Talvez a carta que se vira ou a bolinha que corre dê ao jogador parques e jardins, campos e vastos bosques, castelos elevando ao céu suas torres pontiagudas. Sim, esta pequena bola que rola contém em si hectares de boa terra e telhados de ardósia, cujas chaminés esculpidas se refletem no Loire; ela encerra os tesouros da arte, as maravilhas do gosto, jóias prodigiosas, os corpos mais belos do mundo, e mesmo almas — que se pensava que não fossem venais —, todas as decorações, todas as honras, toda a graça e todo o poder da Terra… E você quer que não se jogue? Se pelo menos o jogo desse apenas esperanças infinitas, se mostrasse apenas o sorriso de seus olhos verdes, talvez não o amássemos tão ardorosamente. Mas ele tem unhas de diamante, é terrível; proporciona, quando lhe apraz, a miséria e a vergonha; é por isso que o adoramos. A atração do perigo subjaz a todas as grandes paixões. Não há volúpia sem vertigem. O prazer misturado com o medo embriaga. E o que há de mais terrível que o jogo? Ele dá e tira; suas razões não são absolutamente as nossas razões. Ele é mudo, cego e surdo. Pode tudo. É um deus… Tem seus devotos e seus santos que o amam pelo que ele é, não pelo que promete, e que o adoram quando os atinge. Se os despoja cruelmente, atribuem a falta a si mesmos, não a ele: ‘Joguei mal’, dizem. Eles se acusam e não blasfemam.” Anatole France, Le jardin d’Épicure, Paris, pp. 15-18.
Béraud procura defender em longas argumentações as vantagens do procedimento administrativo contra as prostitutas, em oposição ao procedimento jurídico: “Assim, o santuário da justiça não foi maculado publicamente por uma causa suja, e o crime é punido, mas arbitrariamente, em virtude de uma ordem particular de um prefeito de polícia.” F. F. A. Béraud, Les Filles Publiques de Paris et la Police qui les Régit, vol. II, Paris-Leipzig, 1839, p. 50.
“Um marlou [cafetão] é um belo jovem, forte, robusto, que sabe se defender, que se apresenta muito bem, que dança o chahut e o cancã com elegância, é amável para com as mulheres devotadas ao culto de Vênus, protegendo-as dos perigos iminentes, sabendo fazer respeitá-las e forçando-as a se comportarem com decência… Eis, portanto, uma classe de indivíduos que, desde tempos imemoriais, se faz notar pelo seu belo porte, por uma conduta exemplar, pelos serviços que presta à sociedade, e que agora é reduzida a uma situação extrema.” 50.000 Voleurs de plus à Paris, ou Réclamation des anciens marlous de la capitale, contre l’ordonnance de M. le Préfet de police, concernant les filles publiques; par le beau Théodore Cancan [50.000 Ladrões a mais em Paris, ou Petição dos antigos cafetões da capital contra o Decreto do Sr. Prefeito de Polícia, concernente às mulheres públicas: redigida pelo belo Th. C.], cit. em F. F. A. Béraud, Les Filles Publiques de Paris et la Police qui les Régit, vol. II, Paris-Leipzig, 1839, pp. 109-110, 113-114. [O panfleto surgiu pouco tempo antes da publicação da obra que o cita.]
Extraído do decreto policial de 14 de abril de 1830 sobre o regulamento da prostituição: “Art. 1: …Igualmente fica-lhes proibido aparecer a qualquer hora e sob qualquer pretexto nas passagens, nos jardins públicos e nos boulevards. Art. 2: As mulheres públicas só poderão se dedicar á prostituição nas casas de tolerância. Art. 3: As prostitutas autônomas, ou seja, aquelas que não moram nas casas de tolerância, só poderão se dirigir a essas casas depois de se acenderem os lampiões da rua. Elas deverão se dirigir diretamente a esses locais, vestidas de forma simples e decente… Art. 4: Elas não poderão, em uma mesma noite, deixar uma casa de tolerância para ir a uma outra. Art. 5: As prostitutas autônomas deverão ter deixado as casas de tolerância e voltado para seus domicílios as onze horas da noite… Art. 7: As casas de tolerância poderão ser indicadas por um lampião e, nas primeiras horas, por uma mulher idosa que se manterá à porta… Assinado; Mangin”. F. F. A. Béraud: Les Filles Publiques de Paris et la Police qui les Régit, vol. II, Paris-Leipzig, 1839, pp. 133-135.
Prêmios instituídos para a “brigada da ordem”: 3 francos pela identificação de uma prostituta menor de 21 anos; 15 francos pela identificação de um bordel clandestino: 25 francos pela identificação de um bordel de menores. Beraud, Les Filles Publiques, vol. II. pp. 138-139.
Dos esclarecimentos de Béraud sobre suas propostas para um novo regulamento. 1) No que se refere à mulher idosa no limiar: “O segundo parágrafo proíbe a esta mulher ultrapassar a soleira da porta, porque, muitas vezes, acontece que ela tem a audácia de ir ao encontro dos transeuntes. Vi com meus próprios olhos essas mercadoras pegarem homens pelo braço, pelas roupas, e forçá-los, por assim dizer, a entrar em suas casas.” 2) No que se refere interdição de atividade comercial para prostitutas: “Proíbo também a abertura de lojas e boutiques nas quais as mulheres públicas se instalam como modistas, costureiras de roupa íntima, vendedoras de perfumes etc. As mulheres que ocupam essas lojas ou butiques mantêm as portas ou janelas abertas, para fazer sinais aos transeuntes… Há outras, mais astutas, que fecham suas portas e janelas, mas fazem sinais através das vidraças sem cortinas, ou essas cortinas ficam entreabertas, deixando uma fresta que permite uma comunicação fácil entre o interior e o exterior. Algumas batem na vitrine da boutique, toda vez que um homem passa, o que o faz se voltar para o lado de onde vem o ruído, e então os sinais se sucedem de uma maneira tão escandalosa que ninguém pode deixar de percebê-los. Todas essas boutiques se encontram nas passagens.” F. F. A. Béraud, Les Filles Publiques de Paris et la Police qui les Régit, vol. II, Paris-Leipzig, 1839, pp. 149-150, 152-153.
Béraud declara-se a favor de um número ilimitado de casas de tolerância. “Art. 13: Toda mulher ou moça maior de idade, que tenha um domicílio com um espaço conveniente, pelo menos dois quartos, autorizada por seu marido se for casada, bem como pelo proprietário e pelo principal locatário da casa em que mora…, estará apta a tornar-se dona de casa de tolerância e a obter o registro.” Béraud, Les Filles Publiques de Paris, vol. II, p. 156.
Toda moça, segundo a proposta de Beraud, deve ser registrada como prostituta, se assim o desejar — inclusive se for menor. Extraído da argumentação: “O sentimento do vosso dever vos ordena uma vigilância contínua em favor dessas jovens… Rejeitá-las significa assumir todas as conseqüências de um abandono bárbaro… É preciso, pois, registrá-las, e cercá-las de toda a proteção e de toda a vigilância da autoridade. Em vez de lançá-las numa atmosfera de corrupção, submetei essas adolescentes a uma vida regular numa casa especialmente destinada a recebê-las… Preveni seus pais. Desde que eles saibam que a vida desregrada de suas filhas permanecerá sigilosa, e que é um segredo religiosamente guardado pela administração, eles consentirão em recebê-las de volta.” Beraud, op. cit., vol. II, pp. 170-171.
“Por que a polícia não permitiria … a algumas donas de casas de tolerância particularmente conhecidas promover … saraus, bailes e concertos, com a adição de mesas de carteado? Aqui, pelo menos, os escroques seriam vigiados de perto, enquanto nos outros círculos [a saber: em casas de jogos] isso é impossível, visto que a ação da policia … em tais lugares é … quase nula.” F. F. A. Beraud, Les Filles Publiques de Paris et la Police qui les Régit, vol. II, Paris- Leipzig, 1839, p. 202.
“Há épocas do ano, até periódicas, que são fatais para a virtude de um grande número de moças parisienses. Nas casas de tolerância ou em outros lugares, as investigações da policia encontram, então, muito mais jovens entregando-se à prostituição clandestina que em todo o resto do ano. Perguntei-me muitas vezes sobre as causas desses surtos de devassidão, e ninguém, mesmo na administração, soube responder esta questão. Tive de me valer de minhas próprias observações e empenhei-me com tanta perseverança que consegui, enfim, descobrir o princípio verdadeiro dessa prostituição progressiva … e … circunstancial… Quando se aproximam o Ano Novo, a festa de Reis, as festas da Virgem…, as jovens querem dar lembranças, presentes, oferecer belos buquês; desejam também, para elas mesmas, um vestido novo, o chapéu da moda, e, privadas dos meios pecuniários indispensáveis…, elas os encontram entregando-se durante alguns dias à prostituição… Eis os motivos para o recrudescimento da devassidão em certas épocas e certas festividades.” F. F. A. Béraud, Les Filles Publiques de Paris et la Police qui les Régit, vol. II, Paris-Leipzig, 1839, pp. 252-254.
Contra o exame médico na polícia: “Toda mulher encontrada na Rue de Jérusalem, indo a Prefeitura da Polícia ou saindo dela, é estigmatizada com o nome de mulher pública… É um escândalo periódico. Durante todos os dias de visita, vê-se as proximidades da prefeitura invadidas por um grande número de homens esperando a saída dessas infelizes, sabendo que aquelas que saem livres do dispensário são consideradas sadias.” F. F. A. Béraud, Les Filles Publiques de Paris, vol. I, pp. 189-190.
As lorettes preferiam o bairro em torno da Notre-Dame de Lorette porque era novo, e lá pagavam um aluguel mais baixo por morarem em casas recém-construídas e ainda em processo de secagem.
“Você quer um outro tipo de sedução? Vá às Tulherias, ao Palais-Royal ou ao Boulevard des Italiens. Você encontrará nesses lugares mais de uma sereia sentada numa cadeira, com os pés sobre outra, e com uma terceira cadeira vazia a seu lado. É um ponto de espera para o homem da sorte… Também as lojas de moda … apresentam recursos aos aficionados. Nelas você negocia o chapéu rosa, verde, amarelo, lilás ou escocês; você combina o preço, dá seu endereço e, no dia seguinte, à hora marcada, vê chegar em sua casa aquela que, atrás do chapéu, arrumava, com seus dedos delicados, a gaze, a fita ou algum outro pompom, coisas que tanto agradam a essas damas.” F. F. A. Beraud, Les Filles Publiques de Paris, precedido de uma nota histórica sobre a prostituição em diversos povos da Terra, por M. A. M., vol. I, pp. CII-CIV (Prefácio).
“À primeira vista somos levados a crer que existe um grande número de mulheres públicas, por uma espécie da fantasmagoria que produzem as idas e vindas dessas mulheres, sempre nos mesmos pontos, o que parece multiplicá-las ao infinito… Há uma outra circunstância que contribui para essa ilusão: os vários tipos de roupa com as quais se disfarçam as mulheres públicas numa mesma noite. Mesmo com um olho pouco exercitado, é fácil convencer-se de que uma moça que, às oito horas, está com uma roupa elegante, rica, é a mesma que aparece às nove como costureirinha, e que se mostra às dez como camponesa, e vice-versa. É assim em todos os pontos da capital onde afluem habitualmente as prostitutas. A título de exemplo, siga uma dessas moças no boulevard, entre as portas Saint-Martin e Saint-Denis: ela está agora com um chapéu de plumas e um vestido de seda coberto com um xale; ela entra na Rue Saint-Martin, segue pelo lado direito, passa pelas pequenas ruas que chegam à Rue Saint-Denis, entra em uma das inúmeras casas de devassidão que ali se encontram, e, pouco depois, sai vestida de costureirinha ou de camponesa.” F. F. A. Béraud, Les Filles Publiques de Paris, vol. I, Paris-Leipzig, 1839, pp. 51-52. ■ Moda ■
Les filles de marbre [As jovens de mármore], drama em cinco atos com canto, de Théodore Barrière e Lambert Thiboust; apresentado pela primeira vez em Paris no Théâtre du Vaudeville, em 17 de maio de 1853. O primeiro ato deste drama apresenta os protagonistas como antigos gregos, e o herói, Rafael, que mais tarde perde a vida por amor a uma jovem de mármore (Marco), representa aqui o papel de Fídias, que cria as estátuas de mármore. O efeito final deste ato é o sorriso que as estátuas dirigem a Górgias, que lhes promete dinheiro, depois de terem ficado imóveis diante de Fídias, que lhes prometera glória.
“Veja, … há em Paris dois tipos de mulheres, como há dois tipos de casas … a casa burguesa, onde só se entra com um contrato de aluguel, e o hotel mobiliado, onde se mora por mês… O que os distingue? A tabuleta comercial… Ora, a toalete é a tabuleta da mulher … e há toaletes tão eloqüentes, que é absolutamente como se você lesse no primeiro nível dos babados do vestido: ‘apartamento mobiliado para alugar!” Dumanoir e Th. Barrière, Les Toilettes Tapageuses: Comédie en un Acte, Paris, 1856, p. 28.
Apelidos dos conjuntos de tambores da École Polytechnique, por volta de 1830: Gavotte, Vaudeville, Mélodrame, Zéphir; por volta de 1860: Brin d’Amour [Um nada de amor], Cuisse de Nymphe [Coxa de ninfa]. Pinet, Histoire de l’École Polytechnique, Paris, 1887, p. 212.
Segundo uma proposta de Bourlier, os jogos deveriam ser novamente permitidos sob concessão, e a receita deveria ser utilizada para a construção de uma ópera — “tão magnífica quanto a Bolsa” — e de um hospital. Louis Bourlier, Épître aux Détracteurs du Jeu, Paris, 1831, p. VII.
Contra o fermier des jeux [chefe da concessão de jogos] Benazet — que, entre outras coisas, se envolvera em negócios ilegais, aproveitando para suas transações particulares a cotação mais alta do ouro nas casas de jogo — foi publicado o seguinte libelo: Louis Bourlier, Pétition à M.M. les Députés, Paris, Galeries d’Orléans, 30 de junho de 1839. Bourlier fora um antigo funcionário da ferme des jeux [concessão de jogos].
No átrio da Bolsa, como no de nossa casa,
Joga-se, e afronta-se os golpes da sorte:
Vermelho e negro no Trinta e um, alta e baixa na Bolsa,
São de perda e de ganho igualmente a fonte.
…
Ora, se o jogo da Bolsa é tão semelhante ao nosso,
Por que permitir um? Por que proibir o outro?
Louis Bourlier, Stances à l’Occasion de la Loi qui Supprime la Ferme des Jeux: Adressées à la Chambre [Estanças por ocasião da lei que suprime a concessão de jogos: endereçadas Câmara], Paris, 1837, p. 5.
Uma grande gravura (litografia) de 1852, Maison de jeu [Casa de jogo], mostra ao centro a figura emblemática de uma pantera ou de um tigre, cuja pele, como se fosse um tapete, traz a representação, pela metade, de uma roleta. Cabinet des Estampes.
“As lorettes eram cotadas diferentemente, segundo os bairros em que habitavam.” Na ordem ascendente dos preços: Rue de Grammont, Rue du Helder, Rue Saint-Lazare, Rue de la Chaussée-d’Antin, Rue du Faubourg du Roule. Paul D’Ariste, La Vie et le Monde du Boulevard (1830-1870), Paris, 1930, pp. 255-256.
‘As mulheres não são admitidas durante o horário de funcionamento da Bolsa de Valores. mas são vistas do lado de fora em grupos, à espera do grande oráculo do dia.” Acht Tage in Paris, Paris, julho de 1855, p. 20.
A época da Restauração. “Não era nenhuma vergonha jogar… As guerras napoleônicas haviam difundido amplamente o prazer do jogo com as idas e vindas dos soldados, quase todos adeptos dos jogos de azar.” Egon Caesar Conte Corti, Der Zauberer von Homburg und Monte Carlo, Leipzig, 1932, p. 30.
1º de janeiro de 1838. “Em conseqüência da proibição, Benazet e Chabert, dentre os banqueiros franceses do Palais-Royal, se mudaram para Baden-Baden e Wiesbaden, e muitos funcionários foram para Pyrmont, Aachen, Spa etc.” Egon Caesar Conte Corri, Der Zauberer von Homburg und Monte Carlo, Leipzig, pp. 30-31.
Extraído de M. J. Ducos (de Gondrin): Comment on se Ruine à la Bourse [Como se arruinar na Bolsa], Paris, 1858: “Não querendo de forma alguma atacar direitos legítimos, não tenho nada a dizer contra as operações sérias da Bolsa, para as quais os agentes de câmbio foram exclusivamente criados. Minha crítica visa particularmente as corretagens de mercados fictícios … e os reportes usurários.” (p. 7) “Não há sorte no jogo da Bolsa, por mais feliz que seja, que possa resistir às comissões exorbitantes dos agentes de câmbio… Às margens do Reno, há dois estabelecimentos de jogo (Homburg e Wiesbaden) onde se joga o trinta e quarenta, adiantando uma pequena … comissão de 62 1/2 cêntimos por 100 francos. É … a trigésima segunda parte da comissão dos agentes de câmbio e da taxa dos reportes reunidas. No trinta e quarenta aposta-se no vermelho ou no negro, como na Bolsa se aposta na alta ou na baixa, com a diferença de que, no jogo, as duas opções são sempre perfeitamente iguais e que não é possível qualquer espécie de fraude, os fracos não ficando de maneira alguma à mercê dos poderosos.” (p. 16).
O jogo da Bolsa na província dependia de Paris para receber “as informações sobre a cotação dos títulos mais importantes… Para isso, utilizavam-se mensageiros especiais, pombos-correio, e um dos meios preferidos na época, quando havia na França uma profusão de moinhos de vento, era a transmissão de sinais de um moinho a outro: se a janela de um deles estivesse aberta, isto significava Bolsa em alta, e o sinal era captado pelo moinho seguinte e passado adiante; se a janela permanecesse fechada, isto significava baixa, e a notícia seguia o mesmo percurso de moinho a moinho, da capital até a província.” Os irmãos Blanc, no entanto, preferiam servir-se do telégrafo óptico, cuja utilização estava legalmente reservada ao governo. “Um belo dia, no ano de 1834, a pedido de um agente dos Blanc, um telegrafista parisiense transmitiu para Bordeaux, em um telegrama oficial, um ‘H’ que deveria indicar a alta [hausse] na cotação dos títulos. Para marcar a letra, e também para se precaver contra qualquer descoberta, acrescentou após o ‘H’ um sinal de engano.” No entanto, surgiram dificuldades com este método, e os Blanc o combinaram então com um outro. “Quando, por exemplo, os títulos do Estado francês com rendimento de três por cento registravam uma alta de pelo menos 25 cêntimos, o encarregado dos Blanc em Paris, um certo Gosmand, enviava um pacotinho com luvas ao funcionário dos telégrafos em Tours, de nome Guibout, que prudentemente era indicado no endereço como fabricante de luvas e meias. Caso ocorresse uma baixa da mesma importância, Gosmand lhe enviaria meias ou gravatas. No endereço do pacote era escrita uma letra ou uma cifra que Guibout acrescentava imediatamente, com sinal de engano, a um telegrama oficial para Bordeaux.” Este procedimento funcionou por quase dois anos. Relato segundo Gazette des Tribunaux de 1837. Egon Caesar Conte Corti, Der Zauberer von Homburg und Monte Carlo, Leipzig, 1932, pp. 17-19.
Conversas Galantes ao Pé do Fogo entre Duas Moças do Século XIX, Roma-Paris, Ed. Grangazzo, Vache & Cie. Algumas formulações curiosas: “Ah, cu e boceta, palavras tão simples e, no entanto, tão ricas de conteúdo; olhe para mim, o que você acha de meu cu e de minha boceta, Elisinha?” (p. 12). “No templo, o sacerdote; no cu, o dedo indicador como sacristão; no clitóris, dois dedos como diáconos — é assim que eu aguardava as coisas que estavam por vir. ‘Quando meu cu estiver em boa posição, então, meu amigo, pode começar!'” Os nomes das duas moças: Elise e Lindamine.
Lecomte sobre a cronista de moda Constance Aubert, que ocupava uma posição influente no Le Temps, e que recebia entregas das casas de moda como forma de retribuição pelos seus artigos: “A pena tornou-se um verdadeiro capital, que pode estipular, a cada dia, os rendimentos que se pretende obter. Paris inteira tornou-se um bazar onde nada escapa à mão que quer tomar, porque essa mão já está estendida há muito tempo.” Jules Lecomte, Les Lettres de Van Engelgom, ed. Henri d’Almeras, Paris, 1925, p. 190. As cartas de Lecomte foram publicadas em 1837 no Indépendant de Bruxelas.
“É pela faculdade de seu espírito, chamada reminiscência, que os desejos do homem condenado ao brilhante cativeiro das cidades se voltam … para uma estadia no campo, seu domicílio primitivo ou, pelo menos, para a posse de um simples e tranqüilo jardim. Seus olhos aspiram se repousar sobre o verde, descansando das fadigas do escritório, ou da claridade ardente das lâmpadas do salão. Seu olfato, ferido incessantemente por emanações pestilentas, procura o perfume que exalam as flores. Um canteiro de violetas humildes e suaves o arrebataria em êxtase… Essa felicidade … sendo-lhe negada, ele vai querer ainda alimentar a ilusão, até transformar o parapeito de sua janela em jardim suspenso, e a lareira de sua modesta habitação em um canteiro ornado de folhagens e de flores. Assim é o homem da cidade, e essa é a fonte de sua paixão pelas flores e pelos campos… Tais as reflexões que me levaram ao estabelecimento de numerosos teares onde mandei executar desenhos imitando as flores da natureza… A demanda por esse tipo de xales foi prodigiosa… Os xales eram vendidos antes de serem fabricados. Os pedidos para entrega se sucediam sem interrupção… Esse brilhante período dos xales, essa idade de ouro da fábrica … durou pouco tempo e, entretanto, fez correr pela França um rio de riqueza, cuja corrente era tanto mais volumosa quanto suas principais fontes se situavam nos países estrangeiros. Depois de ter falado dessa notável demanda, pode ser interessante … saber de que forma ela se propagou. Como eu já esperava, em Paris consumiam-se poucos xales com flores naturais. As províncias faziam seus pedidos na proporção de sua distância da capital, e os países estrangeiros, na proporção de sua distância da França. Seu reinado ainda não acabou. Continuo abastecendo países distantes entre si, espalhados por toda a Europa, e onde não se pensaria enviar um só xale com desenhos, imitando a caxemira… Pelo fato de Paris não ter dado importância aos xales com desenhos de flores naturais … não se poderia dizer — reconhecendo Paris como o centro do bom gosto — que quanto mais nos distanciamos desta cidade, mais nos aproximamos dos gostos e dos sentimentos naturais? Ou, em outras palavras, que o gosto e o natural, neste caso, não têm nada em comum, e até se excluem reciprocamente?” J. Rey, fabricante de caxemiras, Études pour Servir à l’Histoire des Châles, Paris, 1823, pp. 201-202, 204-206. O exemplar da Bibliothèque Nationale apresenta no verso da página de rosto uma observação em escrita antiga: “Este tratado sobre um assunto aparentemente fútil é notável pela pureza e elegância do estilo, assim como por uma erudição comparável aquela da viagem d’Anarcharsis.”
Haveria uma relação da moda floral do Biedermeier e da Restauração com o mal-estar inconsciente diante do crescimento das cidades grandes?
“No começo do reinado de Luís Filipe, a opinião pública se pronunciou também [tal como hoje em dia, no que diz respeito à Bolsa] … contra os jogos de azar… A Câmara dos Deputados … votou pela sua supressão, embora o Estado tirasse deles rendimentos anuais de vinte milhões… No momento atual, em Paris, o jogo da Bolsa não proporciona ao governo sequer vinte milhões por ano; mas, em contrapartida, rende pelo menos cem milhões aos agentes de câmbio, aos corretores da coulisse e aos agiotas … que fazem reportes … elevando às vezes a taxa de juros acima de 20%. — Esses cem milhões são tomados de quatro a cinco mil jogadores pouco esclarecidos que, na tentativa de se explorarem mutuamente sem se conhecerem, se deixam despojar completamente.” (Pelos agentes de câmbio). M. J. Ducos (de Gondrin), Comment on se Ruine à la Bourse, Paris, 1858, pp. V- VI.
A Bolsa de Valores funcionou durante a Revolução de Julho como hospital e fábrica de munição. Para a fabricação dos cartuchos empregaram-se prisioneiros. Cf. Tricotel, Esquisse de Quelques Scènes de l’Intérieur de la Bourse, Paris, 1830. Ela também serviu como casa- forte. Ali foi depositada a prataria roubada nas Tulherias.
Havia xales que demandavam 25 ou mesmo 30 dias de trabalho.
Rey argumenta a favor das caxemiras francesas. Elas têm, entre outras vantagens, a de serem novas. Não é o caso dos xales indianos. “Preciso falar de todas as festas galantes de que elas foram testemunhas, de todas as cenas voluptuosas, para não dizer mais, em que serviram de véu? Nossas sensatas e modestas francesas ficariam um pouco mais que confusas se viessem a conhecer os antecedentes do xale que lhes traz a felicidade!” De qualquer modo, o autor não quer endossar a opinião de que todos os xales já teriam sido usados na Índia, uma afirmação que seria tão falsa como a “que pretende que o chá já tenha servido para infusão antes de sair da China.” J. Rey, Études pour Servir à l’Histoire des Châles, Paris, 1823, pp. 226-227.
Os primeiros xales aparecem na França em conseqüência da campanha do Egito.
Vamos, minhas irmãs, marchemos noite e dia;
A qualquer hora, a qualquer preço, é preciso fazer amor,
É preciso, aqui embaixo o destino nos colocou
Para proteger o lar e as mulheres honestas.
Barbier, Satires et Poèmes: Lazare, Paris, 1837, p. 271 (cit. em Liefde, Le Saint-Simonisme dans la Poésie Française (entre 1825 et 1865), Haarlem, 1927, p. 125).
Na seção XVI do Spleen de Paris, “L’horloge”, encontra-se o conceito de tempo com o qual deve ser confrontado o do jogador.
A respeito da influência da moda sobre o erotismo, uma boa observação de Eduard Fuchs (Die Karikatur der europäischen Völker, vol. II, Munique, 1921, p. 152): “Uma dama do Segundo Império não diz: ‘eu o amo’, mas sim: j’ai un caprice pour lui [tenho um capricho por ele].”
J. Pellcoq apresenta as pernas jogadas para o alto no cancã com a legenda: “Apresentar armas!” Eduard Fuchs, Die Karikatur der europäischen Völker, vol. II, p. 171.
“Inúmeras litografias galantes, publicadas nos anos trinta do século passado, apareciam simultaneamente em variações obscenas para os amantes de imagens diretamente eróticas… Ao fim dos anos trinta, estes gracejos saíram aos poucos de moda.” Eduard Fuchs, Illustrierte Sittengeschichte vom Mittelalter bis zur Gegenwart: Das bürgerliche Zeitalter, volume suplementar, Munique, p. 309.
Eduard Fuchs descreve “o início de um catálogo de prostitutas, com ilustrações eróticas, que deve ter sido publicado entre os anos de 1835 e 1840. O catálogo em questão compõe- se de vinte litografias eróticas coloridas, e sob cada uma delas está impresso o endereço de uma prostituta.” Entre os sete primeiros endereços do catálogo constam cinco passagens. todas elas diferentes. Eduard Fuchs, Illustrierte Sittengeschichte vom Mittelalter bis zur Gegenwart: Das bürgerliche Zeitalter, volume suplementar, Munique, p. 157.
Quando Engels era seguido por agentes secretos da polícia — devido a denúncias feitas por artesãos-aprendizes alemães (entre os quais sua atuação como agitador teve pouco sucesso, exceto o enfraquecimento da posição de Grün), ele escreve a Marx: “Se os indivíduos suspeitos que me seguem há quinze dias são realmente agentes espiões…, a Prefeitura de Polícia deve ter gasto nos últimos tempos muito dinheiro com a compra de entradas para os bailes Montesquieu, Valentino, Prado etc. Devo ao Sr. Delessert o conhecimento de algumas adoráveis grisettes e muito plaisir.” Cit. em Gustav Mayer, Friedrich Engels, vol. I, Friedrich Engels in seiner Frühzeit, 2e ed., Berlim, 1933, p. 252.
Engels descobre em 1848, durante uma viagem pelas regiões vinícolas da França, “que cada um destes vinhos provoca uma embriaguez diferente: com poucas garrafas pode-se percorrer todos os degraus intermediários entre a quadrilha de Musard e a Marselhesa, entre o prazer frenético do cancã e o ardor selvagem da febre revolucionária!” Cit. em Gustav Mayer, Friedrich Engels, vol. I, Friedrich Engels in seiner Frühzeit, Berlim, p. 319. [Cf. a 4, 1]
“Após o fechamento do Café de Paris, ocorrido em 1856, o Café Anglais atingiu, na época do Segundo Império, a mesma importância que teve aquele restaurante no tempo de Luís Filipe. Um alto prédio branco, com um labirinto de corredores, numerosos salões e chambres séparées, distribuídos pelos diversos andares.” S. Kracauer, Jacques Offenbach und das Paris seiner Zeit, Amsterdam, 1937, p. 332.
“Os operários das fábricas na França chamam a prostituição de suas mulheres e filhas de enésima hora de trabalho, o que é literalmente verdadeiro.” Karl Marx, Der historische Materialismus, ed. org. por Landshut e Mayer, Leipzig, 1932, p. 318.
“O imagier [vendedor de imagens] … fornecerá, se for solicitado, o endereço do modelo que posou para suas fotografias obscenas.” Gabriel Pélin, Les Laideurs du Beau Paris, Paris, 1861, p. 153. Nas lojas destes imagiers, as fotos obscenas individuais eram expostas nas vitrines, enquanto as imagens de grupo se encontravam no interior.
Salões de baile, segundo Le Caricaturiste, de 26 de agosto de 1849: Salon du Sauvage, Salon d’Apollon, Château des Brouillards. Paris sous la Republique de 1848, Exposição da cidade de Paris, Paris, 1909, p. 40.
“A regulamentação da jornada de trabalho … o primeiro freio racional imposto aos assassinos e frívolos caprichos da moda, incompatíveis com o sistema da grande indústria.” Nota a este respeito: “John Bellers censurava já em 1699 estes efeitos da ‘incerteza da moda’ (Essays about the Poor, Manufactures, Trade, Plantations, and Immorality, p. 9). Karl Marx, Das Kapital, ed. org. por K. Korsch, Berlim, 1932, p. 454.
Extraído da Pétition des filles publiques de Paris à MM le Préfet de police etc., redigéee par Mlle. Pauline et apostillée par MM. les épiciers, cabaretiers, limonadiers et marchands de comestibles de la capitale...: [Petição das mulheres públicas de Paris ao Sr. Prefeito de Policia etc., redigida pela Srta. Pauline e recomendada pelos Srs. merceeiros, donos de cabaré, limonadeiros e comerciantes de comestíveis da capital]: “Nosso ofício infelizmente já é em si miserável, mas, com a concorrência de outras mulheres e senhoras distintas que não pagam impostos, deixou de produzir rendimento satisfatório. Ou será que somos muito piores porque recebemos dinheiro vivo, enquanto aquelas recebem xales de caxemira? A Carta garante a liberdade pessoal a cada um; se nossa petição não der resultado junto ao Sr. Prefeito de Polícia, nós nos dirigiremos às Câmaras. Aliás, seria melhor viver no reino de Golconda, onde as moças como nós formavam uma das quarenta e quatro divisões do povo, tendo por única obrigação dançar para o rei, serviço este que estaríamos dispostas a prestar ao Sr. Prefeito de Polícia, caso o desejasse.” Friedrich von Raumer, Briefe aus Paris und Frankreich im Jahre 1830, vol. I, Leipzig, 1831, pp. 206-207.
O prefaciador das Poésies de Journet fala de “oficinas para os mais diversos tipos de trabalho de agulha, onde … por 40 cêntimos por dia, — as mulheres e as jovens sem trabalho vão gastar … sua saúde. Quase todas essas infelizes são obrigadas a recorrerem ao quinto quarto da jornada de trabalho.” Jean Journet, Poésies et Chants Harmoniens, Paris (na Librairie Universelle de Joubert, Passage du Saumon, 2, e na casa do autor), junho de 1857, p. LXXI (Prefácio do editor).
“A Calçada da Rue des Martyrs” cita muitas legendas de Gavarni, mas em lugar algum menciona Guys, que poderia muito bem ter sido o modelo da seguinte descrição: “É um prazer vê-las andar no betume, com o vestido levemente repuxado de um lado até o joelho, de modo a deixar brilhar ao sol uma perna esbelta e vigorosa, como a de um cavalo cheia de frêmitos e impaciências adoráveis, e que termina num borzeguim de uma elegância irrepreensível! Ninguém se preocupa com a moralidade dessas pernas! … O que se quer é ir aonde elas vão.” Alfred Delvau, Les Dessous de Paris, Paris, 1860, pp. 143-144 (“Les trottoirs parisiens” — “As calçadas parisienses”).
Uma proposta de Ganilh: utilizar uma parte do capital da loteria estatal para aposentadorias de jogadores que atingiram uma certa idade.
Agentes de loteria: “Suas lojas têm sempre duas ou três saídas e diversos compartimentos para facilitar os negócios do jogo e da agiotagem, que se entrelaçam, e para o conforto de clientes tímidos. Não é raro marido e mulher, sem o saber, se sentarem lado a lado nas misteriosas saletas, que cada um acredita ser o único a utilizar de maneira tão astuta.” Carl Gustav Jochmann, Reliquien, ed. org. por Heinrich Zschokke, vol. II, Hechingen, 1837, p. 44 (“Die Glücksspiele” — “Os jogos de azar”).
“Se é a fé no mistério que faz o crente, então há provavelmente mais jogadores crentes no mundo do que homens de fé.” Carl Gustav Jochmann, Reliquien, ed. por Heinrich Zschokke, vol. II, Hechingen, 1837, P. 46 (“Die Glücksspiele”).
Segundo Poisson em “Mémoire sur les chances que les jeux de hasard, admis dans les maisons de jeu de Paris, présentent à la banque” [Relatório sobre as oportunidades que os jogos de azar, admitidos nas casas de jogo de Paris, apresentam para o banco], texto lido na Academia de Ciências, em 1820, o movimento anual de negócios no trinta-e-um é de 230 milhões de francos (lucro do banco: 2.760.000), e na roleta, de 100 milhões de francos (lucro do banco: 5 milhões). Cf. Carl Gustav Jochmann, Reliquien, ed. org. por Heinrich Zschokke, vol. II, Hechingen, 1837, p. 51 (“Die Glücksspiele”).
O jogo é o contraponto infernal da música dos exércitos celestiais.
Sobre Froufrou, de Halévy: “Se a comédia Les filles de marbre inaugurou o império das cortesãs Froufrou indicou o fim desta época… Froufrou sucumbe sob o peso da consciência de ter disperdiçado a sua vida e, no fim, à beira da morte, se refugia junto à sua família.” S. Kracauer, Jacques Offenbach und das Paris seiner Zeit, Amsterdam, 1937, pp. 385-386. A comédia Les filles de marbre foi uma réplica à Dama das Camélias do ano precedente.
“O jogador persegue essencialmente desejos narcisistas e agressivos de onipotência. Estes — quando não são ligados diretamente a desejos eróticos — se caracterizam por um maior raio de extensão temporal. Um desejo direto de coito pode ser satisfeito mais rapidamente através do orgasmo do que o desejo narcisista-agressivo de onipotência. O fato de a sexualidade genital deixar sempre, mesmo no caso mais favorável, um resto de insatisfação, deve-se a três fatores: nem todos os desejos pré-genitais, que mais tarde se tornam tributários da genitalidade, são passíveis de satisfação através do coito; o objeto, do ponto de vista do complexo de Édipo, é sempre um sucedâneo. A estes dois fatores … soma-se … o fato de que a impossibilidade de dar vazão à imensa agressão inconsciente contribui para a insatisfação. A agressão passível de ser liberada através do coito é muito domesticada… Assim, ocorre que a ficção narcisista e agressiva da onipotência se torna uma causa de sofrimento. Por isso, quem alguma vez experimentou o mecanismo do prazer que é possível liberar no jogo de azar — e que possui, por assim dizer, um valor de eternidade — sucumbe a ele tanto mais facilmente quanto mais estiver fixado no ‘prazer neurótico contínuo’ (Pfeifer) e quanto menos integrá-lo na sexualidade normal, em conseqüência de fixações pré-genitais… Deve-se considerar também que, segundo Freud, a sexualidade do ser humano dá a impressão de uma função que se extingue, enquanto não se pode absolutamente afirmar o mesmo a respeito das tendências agressivas e narcisistas.” Edmund Bergler, “Zur Psychologie des Hasardspielers”, Imago, XXII, n° 4, 1936, pp. 438-440.
“O jogo de azar oferece a única ocasião em que não é preciso renunciar ao princípio do prazer e à onipotência de seus pensamentos e desejos, e em que o princípio de realidade não oferece qualquer vantagem sobre o princípio do prazer. Nesta persistência na ficção infantil de onipotência reside uma agressão póstuma contra … a autoridade que ‘inculcou’ na criança o principio de realidade. Esta agressão inconsciente forma, juntamente com o exercício da onipotência dos pensamentos e a vivência socialmente aceita da exibição reprimida, uma tríade de prazer no jogo. A esta tríade de prazer opõe-se uma tríade punitiva, constituída pelo desejo inconsciente de perder, pelo desejo inconsciente de dominação homossexual e pela difamação social… No fundo, todo jogo de azar é um desejo de forçar a obtenção do amor com uma inconsciente segunda intenção masoquista. Por isso, a longo prazo, o jogador perde sempre.” Edmund Bergler, “Zur Psychologie des Hasardspielers”, Imago, XXII, n° 4, 1936, p. 440.
Observações sobre idéias de Ernst Simmel a respeito da psicologia do jogador: “A avidez insaciável que jamais se aplaca no infinito círculo vicioso, até que a perda se torne ganho e o ganho se torne novamente perda, teria sua origem na compulsão narcisista contida na fantasia anal relativa ao nascimento, de fecundar e dar à luz a si mesmo, substituindo e sobrepujando pai e mãe em um crescendo sem limite. ‘A paixão do jogo satisfaz, portanto, em última instância, a tendência ao ideal bissexual que o narcisista encontra em si mesmo; trata-se da formação de um compromisso entre o masculino e o feminino, o ativo e o passivo, o sadismo e o masoquismo e, finalmente, da opção ainda pendente entre a libido genital e a libido anal, na qual o jogador se debate com as conhecidas cores simbólicas — vermelho e negro. A paixão pelo jogo presta-se assim à satisfação auto-erótica, na qual o jogo é o prazer preliminar, o ganho representa o orgasmo e a perda, a ejaculação, a defecação e a castração’.” Edmund Bergler, “Zur Psychologie des Hasardspielers”, Imago, XXII, n° 4, 1936, pp. 409-410, com referência a Ernst Simmel, “Zur Psychoanalyse des Spielers”, Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse, VI, 1920, p. 397.
A propósito da conjetura de Freud sobre a sexualidade como uma função em extinção “do” ser humano, Brecht observou o quanto a burguesia decadente difere da classe feudal à época de seu declínio: ela se considera em tudo a quintessência do ser humano em geral, equiparando assim a sua decadência à extinção da humanidade. (Esta equiparação, aliás, pode ter seu papel na crise absolutamente evidente da sexualidade na burguesia.) A classe feudal sentia-se como uma classe à parte por seus privilégios, o que correspondia à realidade. Isto lhe permitiu mostrar em seu declínio uma certa elegância e desenvoltura.
O amor pela prostituta é a apoteose da empatia com a mercadoria.
Magistrado de Paris! Segue dentro do sistema,
Prossiga a boa obra de Mangin e Belleyme;
Às sórdidas Frinéias designe como morada
Bairros negros, solitários, pestilentos.
Barthélemy, Paris: Revue Satirique à M G. Delessert, Paris, 1838, p. 22.
Uma descrição do baixo meretrício que se instalou nas zonas próximas à barrière. É da autoria de Du Camp e serviria de excelente legenda para muitas aquarelas de Guys: “Se empurramos a barreira e a porta que fecham a entrada, encontramo-nos num botequim guarnecido de mesas de mármore ou de madeira, e iluminado a gás; através das nuvens da fumaça espalhada pelos cachimbos, distinguimos removedores de entulho, operários de aterro, carroceiros, na maioria embriagados, sentados diante de um frasco de absinto, conversando com criaturas de aspecto tão grotesco quanto lamentável. Todas elas, e quase uniformemente, estão vestidas com aquele algodão vermelho tão apreciado pelas negras da África, e com o qual se fazem cortinas nos pequenos albergues de província. O que as cobre não pode ser chamado de vestido, é um blusão sem cintura e que se estufa sobre a crinolina. Exibindo os ombros ultrajosamente decotados e chegando apenas à altura dos joelhos, esta roupa lhes dá a aparência de grandes crianças velhas, inchadas, reluzindo de gordura, enrugadas, embrutecidas, e cujo crânio pontudo anuncia a imbecilidade. Elas têm a graça de um cão adestrado quando os inspetores, verificando o livro de registros, as chamam e elas se levantam para responder.” Maxime Du Camp, Paris: Ses Organes, ses Fonctions et sa Vie dans la Seconde Moitié du XIX Siècle, vol. III, Paris, 1872, p. 447 (“La prostitution”).
“A noção … do jogo … consiste nisto: … que a partida seguinte não depende da precedente… O jogo nega energicamente toda situação adquirida, todo antecedente … que faz lembrar ações passadas e é nisto que ele se distingue do trabalho. O jogo rejeita … esse peso do passado, que é o apoio do trabalho e que constitui a seriedade, a preocupação, o planejamento do futuro, o direito, o poder… Essa idéia de recomeçar, … e de fazer melhor … acontece muitas vezes no trabalho infeliz; mas ela é … vã … e é preciso continuar às voltas com as obras mal-sucedidas.” Alain, Les Idées et les Âges, Paris, 1927, vol. I, pp. 183-184 (“Le jeu”).
A falta de conseqüências, que constitui o caráter da vivência, encontrou uma expressão drástica no jogo. O jogo, na época feudal, era essencialmente um privilégio da classe feudal, que não participava diretamente do processo de produção. O novo é que, no século XIX, o burguês passa a jogar. Os exércitos de Napoleão, em suas campanhas, tornaram-se os principais agentes dos jogos de azar junto à burguesia.
O significado do elemento temporal para a embriaguez do jogador já havia sido interpretado por Gourdon, e de um modo semelhante por Anatole France. Ambos, porém, vêem o significado do tempo para o prazer do jogador apenas em seu ganho; rapidamente conquistado ou rapidamente perdido, esse ganho se centuplica na imaginação através das inúmeras possibilidades de emprego que se abrem e, sobretudo, através da única possibilidade real: a aposta ou mise en jeu. Ora, o significado que tem o fator tempo para o próprio processo do jogo é algo que não foi discutido nem por Gourdon, nem por France. O passatempo do jogo é, de fato, algo muito singular. Um jogo é um passatempo tanto mais divertido quanto mais bruscamente surge nele o azar, quanto menor for o número ou quanto mais breve a seqüência de combinações a serem realizadas no decorrer da partida (do coup). Em outras palavras: quanto maior o elemento aleatório em um jogo, mais rápido ele transcorre. Esta circunstância torna-se decisiva quando se trata de definir o que constitui a autêntica “embriaguez” do jogador. Ela se funda na peculiaridade do jogo de azar de desafiar a presença de espirito ao fazer surgir, numa seqüência rápida, constelações que — cada uma delas independente da outra — apelam cada uma para uma reação totalmente nova e original do jogador. Este fato se manifesta no hábito dos jogadores de fazerem suas apostas, se possível, só no último instante — quando resta espaço apenas para um comportamento de puro reflexo. Tal comportamento reflexo exclui a “interpretação” do acaso. Na verdade, o jogador reage ao acaso, assim como o joelho reage ao martelo no reflexo patelar.
O supersticioso prestará atenção a sinais, o jogador reagirá a eles antes mesmo de poder percebê-los. Ter previsto um lance de sorte, mas não tê-lo aproveitado, é um fato do qual o novato concluirá que “está em boa forma”, e que da próxima vez apenas terá que agir com maior coragem e maior rapidez. Na realidade, porém, este acontecimento é um sinal de que o reflexo motor que o acaso provoca no jogador afortunado não chegou a ser ativado. Somente quando este reflexo não é ativado, é que entra nitidamente na consciência “aquilo que está por vir”.
O jogador só apara aquele futuro que não penetrou como tal em sua consciência.
A proscrição do jogo tem provavelmente sua razão mais profunda no fato de que um dom natural do ser humano que o eleva acima de si mesmo, quando voltado para objetos mais elevados, é voltado para um dos objetos mais vis, o dinheiro, rebaixando assim o homem. O dom de que se trata é a presença de espírito. Sua manifestação suprema é a leitura, que, em ambos os casos, é divinatória.
O sentimento particular de felicidade do ganhador é caracterizado pelo fato de que dinheiro e bens, que costumam ser as coisas mais maciças e mais pesadas do mundo, chegam-lhe através do destino como um abraço feliz plenamente retribuído. Elas podem ser comparadas ao testemunho de amor de uma mulher plenamente satisfeita pelo homem. Jogadores são tipos aos quais não é dado satisfazer a mulher. Não seria Don Juan um jogador?
“No tempo do otimismo fácil que se expandia pela pena de um Alfred Capus, era costume no boulevard atribuir tudo à sorte.” Gaston Rageot, “Qu’est-ce qu’un événement?” [O que é um acontecimento] (Le Temps, 16 abr. 1939). — A aposta é uma forma de atribuir aos acontecimentos um caráter de choque, de destacá-los dos contextos da experiência. Não por acaso que se aposta nos resultados de eleições, na eclosão da guerra etc. Para a burguesia, em particular, os acontecimentos políticos assumem facilmente a forma de partidas realizadas na mesa de jogo. Esse não é bem o caso para o proletário. Ele está mais predisposto a reconhecer as constantes no acontecimento político.
O cemitério Des Innocents como zona de meretrício: “Este lugar foi … para os parisienses do século XV uma espécie de melancólico Palais-Royal de 1789. Em meio aos contínuos sepultamentos e exumações, existia ali um passeio público que era ponto de encontro. Havia pequenas lojas junto aos ossários, e mulheres fáceis sob as arcadas.” J. Huizinga. Herbst des Mittelalters, Munique, 1928, p. 210.
Seriam os baralhos das cartomantes anteriores àqueles com os quais se joga? Representaria o jogo de cartas uma deterioração da técnica divinatória? Afinal, saber o futuro é decisivo também no jogo de cartas.
O dinheiro é aquilo que torna vivo o número, o dinheiro é aquilo que torna viva a jovem de mármore. (Cf. O 7, 1).
A máxima de Gracián — “Saiba, em todas as coisas, ter o tempo a seu lado” — não será compreendida melhor e com maior gratidão por ninguém do que por aquele que teve satisfeito um desejo acalentado por longo tempo. Compara-se a isto a magnífica definição dada a este tempo por Joubert. Ela determina o tempo do jogador per contrarium: “Há tempo até mesmo na eternidade, mas não é um tempo terrestre e mundano… Ele não destrói nada, ele completa.” J. Joubert, Pensées, vol. II, Paris, 1883, p. 162.
Sobre o elemento heróico no jogo, algo como um corolário para “Le jeu”, de Baudelaire: “Uma consideração que costumo fazer nas mesas de jogo…: Se acumulássemos toda a força e a paixão, desperdiçadas a cada ano nas mesas de jogo da Europa – seria isto suficiente para formar um povo romano e uma história romana? Mas é justamente isto! Como todo homem nasce como um romano, a sociedade burguesa procura desromanizá-lo, e por isso foram introduzidos os jogos de azar e de salão, os romances, as óperas italianas e os jornais elegantes, os cassinos, as rodas de chá e as loterias, os anos de aprendizagem e de andanças, os desfiles de guarnições e as trocas de guarda, as cerimônias e as recepções, e as quinze ou vinte bem ajustadas peças de vestuário que temos que vestir e despir diariamente com salutar perda de tempo – tudo isto para que a força supérflua possa se esvair imperceptivelmente!” Ludwig Börne, Gesammelte Schriften, vol. III, Hamburgo-Frankfurt a. M., 1862, pp. 38-39 (“Das Gastmahl der Spieler” – “O banquete dos jogadores”).
“Mas você compreende tudo o que haverá de delírio e vigor na alma de um homem que espera com impaciência a abertura de um antro de jogo? Entre o jogador da manhã e o jogador da noite existe a diferença que distingue o marido relaxado do amante arrebatado sob a janela de sua adorada. É somente pela manhã que chegam a paixão palpitante e a necessidade no seu franco horror. Nesse momento, você pode admirar um verdadeiro jogador, um jogador que não comeu, não dormiu, não viveu, nem pensou, tão brutalmente flagelado que foi pelo chicote de seu palpite… Nessa hora maldita, você encontrará olhos cuja calma assusta, rostos que fascinam, olhares que levantam as cartas e as devoram. Assim, as casas de jogo são sublimes somente na hora em que se abrem.” Balzac, La Peau de Chagrin, Paris, rd. Flammarion, p. 7.
A prostituição abre um mercado de tipos femininos.
Sobre o jogo: quanto menos um homem é preso nas malhas do destino, tanto menos ele é determinado por aquilo que é mais próximo.
O ideal da vivência sob a forma de choque é a catástrofe. Isto aparece muito claramente no jogo: através de apostas cada vez maiores, destinadas a salvar o que se perdeu, o jogador vai ao encontro da ruína absoluta.
Criar a história com os próprios detritos da história.
Rémy de Gourmont, Le II Livre des Masques, Paris, 1924, P. 259.
Os acontecimentos ganham em não ser comentados.
Alfred Delvau, prefácio de Murailles Révolutionnaires, vol. I, Paris, p. 4.
Livre-nos Deus! A procriação, como era antes, hoje qual vão folguedo valha.
Fausto II (Wagner na cena do homúnculo).
“A história é como Janus, tem duas faces: quer olhe o passado, quer olhe o presente, ela vê as mesmas coisas.” Du Camp, Paris, vol. VI, p. 315. ■ Moda ■
“Aconteceu-me várias vezes apreender certos fatos menores que se passavam diante de meus olhos e perceber neles uma fisionomia original, na qual eu me comprazia em discernir o espirito da época. ‘Isto’, eu dizia a mim mesmo, ‘só poderia se dar hoje, não poderia ser em outro momento. Isto é um sinal do tempo.’ Ora, reencontrei nove vezes em dez o mesmo fato em circunstâncias análogas em velhos relatos ou em velhas histórias.” Anatole France, Le Jardin d’Épicure, Paris, p. 113. ■ Moda ■
A alternância da moda, o eternamente atual [das Ewig-Heutige], escapa à reflexão “histórica”; ele só é verdadeiramente superado pela reflexão política (teológica). A política reconhece em cada constelação atual o genuinamente único, o que jamais retorna. Para uma reflexão sujeita à moda e que procede da má atualidade, é típica a seguinte informação, contida em La Trahison des Clercs, de Benda. Um alemão descreve sua surpresa quando, duas semanas após a tomada da Bastilha, sentado à mesa de hóspedes em Paris, não ouviu ninguém falar sobre política. É a mesma situação descrita por Anatole France que põe as seguintes palavras na boca do velho Pilatos, que conversa em Roma sobre os tempos de seu governo e evoca a revolta do rei dos judeus: “Como era mesmo o nome dele?”
Definição do “moderno” como o novo no contexto do que sempre existiu. A paisagem da charneca em Kafka (O Processo), sempre nova e sempre igual, não é um mau exemplo deste estado de coisas. “‘O senhor não gostaria de ver mais um quadro que eu poderia lhe vender?’… O pintor tirou de baixo da cama um monte de quadros sem moldura, tão cobertos de poeira que, quando o pintor tentou soprá-la da superfície do primeiro quadro, formou-se uma nuvem que ficou por um longo tempo diante dos olhos de K., sufocando-o. ‘Uma paisagem da charneca’, disse o pintor, oferecendo o quadro a K. Ele representava duas árvores mirradas, distantes uma da outra, sobre a grama escura. Ao fundo, um crepúsculo multicolorido. ‘Bom’, disse K., ‘eu o compro’. K. se expressara de modo tão conciso inadvertidamente, por isso ficou aliviado quando o pintor, em vez de levá-lo a mal, apanhou um segundo quadro do chão. ‘Aqui está o quadro complementar’, disse o pintor. Talvez ele pretendesse que assim o fosse, mas não se percebia diferença alguma em relação ao primeiro, estavam ali as árvores, aqui a grama e lá o crepúsculo. Mas K. não se incomodou. ‘São belas paisagens’, disse, ‘vou comprar ambos e pendurá-los em meu escritório’. ‘O tema parece lhe agradar’, disse o pintor, e pegou um terceiro quadro, ‘é uma sorte que eu tenha ainda um quadro parecido aqui’. Não era parecido, era exatamente a mesma paisagem da charneca, absolutamente igual. O pintor aproveitou bem esta oportunidade para vender quadros velhos. ‘Vou levar este também’, disse K. ‘Quanto custam os três quadros?’ Falaremos sobre isso em seguida, disse o pintor… ‘Aliás, fico contente que os quadros lhe agradem, eu lhe darei todos os quadros que tenho aqui embaixo. Todos eles representam paisagens da charneca, já pintei muitas delas. Algumas pessoas os rejeitam porque são sombrios demais; outras, porém, e o senhor é uma delas, apreciam justamente coisas sombrias’.” Franz Kafka, Der Prozeß, Berlim, 1925, pp. 284-286. ■ Haxixe ■
O “moderno”, o tempo do inferno. Os castigos do inferno são sempre o que há de mais novo neste domínio. Não se trata do fato de que acontece “sempre o mesmo”, e nem se deve falar aqui do eterno retorno. Antes, trata-se do fato de que o rosto do mundo nunca muda justamente naquilo que é o mais novo, de forma que este “mais novo” permanece sempre o mesmo em todas as suas partes. — É isto que constitui a eternidade do inferno. Determinar a totalidade dos traços em que se manifesta o “moderno” significaria representar o inferno.
Interesse vital em reconhecer um determinado ponto da evolução como encruzilhada. Nesse ponto localiza-se atualmente o novo pensamento histórico, que é caracterizado por uma maior concretude, pela salvação dos períodos de decadência e pela revisão da periodicidade, de maneira geral e em particular, e cuja utilização em um sentido reacionário ou revolucionário está sendo decidida agora. Neste sentido, o que se anuncia nos escritos dos surrealistas e no novo livro de Heidegger é a mesma crise, com suas duas possibilidades de solução.
Rémy de Gourmont sobre a Histoire de la Société Française Pendant la Révolution et sous le Directoire: “Esta foi a primeira originalidade dos Goncourt: criar a história com os próprios detritos da história.” Rémy de Gourmont, Le II Livre des Masques, Paris, 1924, p. 259.
“Se guardamos da história apenas os fatos mais gerais, os que se prestam aos paralelos e às teorias, basta — como dizia Schopenhauer — conferir com Heródoto o jornal da manhã: tudo o que ocorre no intervalo, repetição evidente e fatal dos fatos mais longínquos e dos fatos mais recentes, torna-se inútil e fastidioso.” Rémyv de Gourmont, Le II Livre des Masques, Paris, 1924, p. 259. A passagem não é muito clara. Ao pé da letra, dever-se-ia supor que a repetição no decurso histórico refere-se tanto aos grandes fatos quanto aos pequenos. Porém, o autor provavelmente se refere apenas aos primeiros. É preciso mostrar, em vez disso, que é justamente nos detalhes do que ocorre no intervalo que se manifesta o eternamente igual.
As construções da história são comparáveis a ordens militares que cerceiam a verdadeira vida e a confinam em quartéis. Por outro lado, temos a anedota como uma insurreição nas ruas. A anedota aproxima as coisas espacialmente de nós, faz com que entrem em nossa vida. Ela representa a rigorosa oposição à história que exige a “empatia”, que torna tudo abstrato. A mesma técnica da proximidade deve ser usada em relação às épocas, à maneira dos calendários. Imaginemos que um homem morra exatamente ao completar cinqüenta anos, no dia do nascimento de seu filho, a quem ocorrerá o mesmo etc. Se iniciarmos esta corrente na época do nascimento de Cristo, resulta daí o seguinte: desde o início de nossa era, não viveram mais do que umas quarenta pessoas. Desta forma, quando se aplica ao decurso histórico um critério adequado, uma escala que lhe seja adequada, comensurável à vida humana, a sua imagem se transforma inteiramente. Este páthos da proximidade, o ódio contra a configuração abstrata da história em “épocas”, animou os grandes céticos, como Anatole France.
Nunca houve uma época que não se sentisse “moderna” no sentido excêntrico, e que não tivesse o sentimento de se encontrar à beira de um abismo. A consciência desesperadamente lúcida de estar em meio a uma crise decisiva é crônica na história da humanidade. Cada época se sente irremediavelmente nova. O “moderno”, porém, é tão variado como os variados aspectos de um mesmo caleidoscópio.
Correlação entre a intenção da colportagem e a intenção teológica mais profunda. Ela a reflete de maneira turva, desloca para o espaço da contemplação aquilo que é válido apenas no espaço da vida justa. Ou seja: que o mundo é sempre o mesmo (que todos os acontecimentos poderiam ter ocorrido no mesmo espaço). No plano teórico, apesar de tudo (apesar da aguda intuição que ela encerra), esta é uma verdade esgotada e murcha. Mas ela encontra sua confirmação suprema na existência do homem religioso, para quem todas as coisas estão a serviço do bem supremo — como aqui o espaço está a serviço de tudo o que passou. Assim, o elemento teológico penetrou de maneira profunda no domínio da colportagem. Pode-se até mesmo dizer que as verdades mais profundas, longe de serem provenientes do lado obtuso e animal do homem, possuem a força poderosa de adaptar-se ainda à obtusidade e à vulgaridade, de refletir-se à sua maneira em sonhos irresponsáveis.
Não há um declínio das passagens, mas uma súbita reviravolta. De uma hora para outra elas se transformaram na forma que moldou a imagem da “modernidade”. Aqui o século refletiu com satisfação o seu passado mais recente.
Cada data do século XVI carrega atrás de si uma púrpura. Somente agora as datas do século XIX devem receber sua fisionomia. Sobretudo graças aos dados da arquitetura e do socialismo.
Cada época acredita ser irremediavelmente moderna — mas também cada uma delas tem direito de ser assim considerada. Contudo, o que se deve compreender por irremediavelmente moderno depreende-se muito claramente da seguinte frase: “Talvez nossos descendentes delimitem como o segundo grande período de toda a história depois de Cristo o que se inicia com a Revolução Francesa e a passagem do século XVIII ao XIX, e reúnam no primeiro período o desenvolvimento de todo o mundo cristão, inclusive a Reforma.” Em outro trecho, fala-se de “um grande período que marca um corte profundo na história do mundo, como qualquer outro, sem nenhum fundador de religião, sem reformadores e sem legisladores”. (Julius Meyer, Geschichte der modernen französischen Malerei, Leipzig, 186—. pp. 22 e 21). Segundo o autor, a história se expande sem cessar. Na realidade, isto é conseqüência do fato de que a indústria confere à história um caráter verdadeiramente epocal. O sentimento de uma transformação epocal surgida com o século XIX não foi privilégio de Hegel e de Marx.
O coletivo que sonha ignora a história. Para ele, os acontecimentos se desenrolam segundo um curso sempre idêntico e sempre novo. Com efeito, a sensação do mais novo, do mais moderno, é tanto uma forma onírica dos acontecimentos quanto o eterno retorno do sempre igual. A percepção do espaço que corresponde a esta percepção do tempo é a transparência da interpenetração e superposição do mundo do flâneur. Estas sensações de espaço e de tempo foram o berço para a escrita folhetinesca moderna. ■ Coletivo onírico ■
“O que nos incita ao estudo do passado é a semelhança do ocorrido com nossa vida, o que é uma forma de ser-de-alguma-maneira-um-só [ein Irgendwie-eins-Sein]. Através da compreensão desta identidade, podemos nos deslocar mesmo para a região mais a morte.” Hugo von Hofmannsthal, Buch der Freunde, Leipzig, 1929, p. 111.
É muito significativo que Hofmannsthal denomine esta “forma de ser-de-alguma-maneira-um-só” uma existência na esfera da morte. Daí a imortalidade de seu “noviço”, o personagem de novela sobre o qual conversou comigo em nosso último encontro, e que deveria atravessar as diferentes religiões ao longo dos séculos como se atravessasse a seqüência de cômodos de uma única moradia. Como, no espaço restrito de uma única vida, esta “forma de ser-de-alguma-maneira-um-só” com o ocorrido conduz à esfera da morte — isto ficou evidente para mim, em 1930, durante uma conversa sobre Proust. Ele certamente não elevou o homem, apenas o analisou. A grandeza moral de Proust, entretanto, reside em um campo bastante diferente. Com uma paixão desconhecida aos escritores que o antecederam, ele escolheu como sua causa a fidelidade às coisas que atravessaram a nossa existência. Fidelidade a uma tarde, a uma árvore, a uma mancha de sol sobre o tapete, fidelidade a roupas, móveis, a perfumes ou paisagens. (A descoberta que faz finalmente a caminho de Méséglise é o mais elevado ensinamento moral que Proust deixou: uma espécie de transposição espacial do semper idem.) Reconheço que Proust, no sentido mais profundo, peut-être se range du côté de la mort [talvez se coloque do lado da morte]. Seu cosmos talvez tenha como sol a morte, ao redor da qual gravitam os momentos vividos, as coisas recolhidas. Além do principio do prazer é provavelmente o melhor comentário que existe a respeito das obras de Proust. É preciso, para entender Proust, partir talvez da idéia de que seu objeto é o reverso, le revers — moins du monde que de la vie même — [menos do mundo que da própria vida].
“Talvez nenhum simulacro tenha criado um conjunto de objetos aos quais se aplique com maior propriedade o conceito de ideal que o grande simulacro constituído pela perturbadora arquitetura ornamental do Modern Style. Nenhum esforço coletivo chegou a criar um mundo de sonho tão puro e tão inquietante quanto esses edifícios modern style, os quais, à margem da arquitetura, constituem por si mesmos verdadeiras realizações de desejos solidificados, nos quais o mais violento e cruel automatismo revela dolorosamente o ódio da realidade e a necessidade de refúgio num mundo ideal, à maneira do que se passa numa neurose infantil.” Salvador Dalí, “L’âne pourri”, in: Le Surréalisme au Service de la Révolution, ano I, n° 1, Paris, 1930, p. 12. ■ Indústria ■ Reclame ■
“Eis o que podemos ainda amar: o bloco imponente desses edifícios delirantes e frios espalhados em toda a Europa, desprezados e negligenciados pelas antologias e pelos estudos.” Salvador Dalí, “L’âne pourri”, in: Le Surréalisme au Service de la Révolution, ano I, n° 1, Paris, 1930, p. 12. Talvez cidade alguma contenha exemplos mais perfeitos deste Jugendstil do que Barcelona, nos edifícios do arquiteto que projetou a igreja da Sagrada Família.
>Wiesengrund cita e comenta uma passagem de A Repetição, de Kierkegaard: “Sobe-se ao primeiro andar de uma casa iluminada a gás, abre-se uma pequena porta e eis a entrada. À esquerda, tem-se uma porta de vidro que conduz a um gabinete. Segue-se em frente e chega-se a uma ante-sala. Depois dela, dois quartos de igual tamanho, de mobília como se um dos quartos estivesse sendo refletido no espelho.” A propósito desta passagem — Kierkegaard, Gesammelte Werke, vol. III <Furcht und Zittern, Wiederholung [Temor e tremor, A repetição]>, Iena, 1909, p. 138 — que continua a citar, Wiesengrund comenta: “A duplicação do quarto que aparece refletido, sem de fato estar refletido, tem algo de insondável: assim como estes quartos, talvez toda aparência na história seja igual a si mesma, enquanto ela própria, escrava da natureza, persistir na aparência.” Wiesengrund-Adorno. Kierkegaard, Tübingen, 1933, p. 50. ■ Espelho ■ Intérieur ■
Sobre o tema dos quadros representando a charneca em O Processo, de Kafka: no tempo do inferno, o novo (o correspondente) é sempre o eternamente igual.
Após a Comuna: “A Inglaterra acolheu os proscritos e fez de tudo para retê-los: por ocasião da Exposição de 1878, foi possível perceber que ela acabava de tirar da França e de Paris o primeiro lugar nas indústrias da arte. Se o Modern Style voltou à França em 1900, isso talvez tenha sido uma conseqüência longínqua da maneira bárbara pela qual foi reprimida a Comuna.” Dubech e D’Espezel, Histoire de Paris, Paris, 1926, p. 437.
“Quis-se criar um estilo eclético. As influências estrangeiras favoreceram o Modern Style, quase exclusivamente inspirado na decoração floral. Seguia-se o modelo dos pré-rafaelistas ingleses e dos urbanistas de Munique. À construção em ferro sucedeu o cimento armado. Para a arquitetura, esse foi o ponto mais baixo da curva, que coincidiu com a mais profunda depressão política. Foi nesse momento que Paris recebeu suas casas e seus monumentos mais bizarros, os que menos harmonizavam com a cidade antiga: a casa de estilo compósito construída pelo Sr. Bouwens no n° 27 do Quai d’Orsay, os abrigos do metrô, a loja de departamentos La Samaritaine, erguida pelo Sr. Frantz Jourdain no meio da paisagem histórica do bairro Saint-Germain l’Auxerrois.” Dubech e D’Espezel, op. cit., p. 465.
“O que o Sr. Arsène Alexandre então chama de ‘o encanto profundo das serpentinas agitadas pelo vento’ é o estilo polvo, a cerâmica verde e mal cozida, as linhas forçadas e esticadas em ligamentos tentaculares, a matéria torturada em vão… A moranga, a abóbora, a raiz de malva, a voluta de fumaça inspiram um mobiliário ilógico sobre o qual vêm pousar a hortênsia, o morcego, a angélica, a pena de pavão, invenções de artistas presos à má paixão pelo símbolo e pelo poema… Numa época de luz e de eletricidade, o que triunfa é o aquário, o esverdeado, o submarino, o híbrido, o venenoso.” Paul Morand, 1900, Paris, 1931, pp. 101-103.
“Este estilo 1900 infecta, aliás, toda a literatura. Nunca se escreveu tão pretensiosamente mal. Nos romances, o distintivo de nobreza é obrigatório: é sempre Senhora de Scrimeuse, Senhora de Girionne, Senhora de Charmaille, Senhor de Phocas; nomes difíceis de pronunciar: Yanis, Damosa, lorde Eginard… As Légendes du Moyen Âge, de Gaston Pâris, que acabam de ser publicadas, mantêm o culto ardente do neogótico: são sempre Graals, Ysoldas, Damas do Unicórnio. Pierre Louys escreve trono com ‘h’; e por toda parte encontram-se abysmos, ymagens e ’emmy’ [no meio] das flores etc. … Triunfo do ‘y’.” Paul Morand, 1900, Paris, 1931, pp. 179-181.
“Pareceu-me interessante que um número de revista [Nota: Minotaure, n° 3-4] onde foram apresentados alguns admiráveis exemplos da arte Modern Style, reunisse também um certo número de desenhos medianímicos… Na verdade, é inevitável que fiquemos chocados com as afinidades entre as tendências desses dois modos de expressão: o que é o modern style, eu me pergunto, senão uma tentativa de generalização e adaptação do desenho, da pintura e da escultura medianímicos à arte imobiliária e mobiliária? Encontra-se aí a mesma disparidade nos detalhes, a mesma impossibilidade de se repetir, que leva justamente à verdadeira, à cativante estereotipia; encontra-se o mesmo deleite colocado na curva que nunca acaba, como a da samambaia nascente, a do caracol ou a do enrodilhado embrionário, cuja observação, aliás excitante, desvia do prazer do conjunto… Pode-se afirmar, então, que os dois empreendimentos são concebidos sob o mesmo signo, que poderia bem ser o do polvo, ‘do polvo’, como disse Lautréamont, ‘de olhar de seda’. De uma parte a outra é, plasticamente, até no traço, o triunfo do equívoco; do ponto de vista da interpretação é, até no insignificante, o triunfo do complexo. Mesmo o empréstimo, contínuo até o fastio, de temas — acessórios ou não — ao mundo vegetal, é comum a esses dois modos de expressão, que em princípio respondem a necessidades de exteriorização tão distintas. E eles compartilham também uma certa propriedade que eles têm de evocar superficialmente … certas produções da antiga arte asiática ou americana.” André Breton, Point du Jour, Paris, 1934, pp. 234-236.
A folhagem pintada na abóbada da Bibliothèque Nationale. Quando se folheia um livro embaixo, ouve-se o farfalhar lá em cima.
“Assim como os móveis atraem-se uns aos outros — o entorno do sofá e a chapeleira são o resultado de tais uniões! — igualmente as paredes, o assoalho e o teto parecem ser possuídos por uma singular capacidade de atração. Os móveis tornam-se cada vez mais intransportáveis, aninham-se nas paredes e nos cantos, prendem-se ao assoalho e fincam raízes… Obras de arte ‘livres’, quadros pendurados e esculturas expostas são eliminados na medida do possível; desta tendência origina-se o desenvolvimento da pintura mural, do afresco, da tapeçaria decorativa e da pintura em vidro… Todo o conteúdo permanente da casa é subtraído desta maneira do mercado de troca; o próprio morador é privado de sua liberdade de circular e fica preso ao solo e à propriedade.” Dolf Sternberger, “Jugendstil”, Die Neue Rundschau, XLV, 9 set. 1934, pp. 264-266.
“Por intermédio do contorno voluptuoso e poderoso … a figura da alma se torna ornamento… Maeterlinck, em Le Trésor des Humbles [O tesouro dos humildes], celebra o silêncio, o silêncio que não se origina do arbítrio de dois indivíduos, mas flui e cresce como um terceiro ser, um ser particular, que enlaça os amantes, selando desta maneira sua união: assim tal invólucro de silêncio manifesta-se claramente como uma forma de contorno ou como uma forma verdadeiramente animada do ornamento.” Dolf Sternberger, “Jugendstil”, Die Neue Rundschau, XLV, 9 set. 1934, p. 270.
“Assim, cada casa parece … ser um organismo que expressa seu interior no exterior, e Van de Velde revela … claramente o modelo de sua concepção visionária da cidade dos caracteres… ‘Quem, ao contrário, objetar que isto seria um selvagem carnaval…, deve lembrar-se da impressão harmoniosa e prazerosa provocada por um jardim com plantas terrestres e aquáticas desenvolvendo-se livremente.’ Se a cidade é um jardim cheio de organismos habitacionais crescendo livremente, falta completamente nesta visão o lugar que o homem deve ocupar nela, a menos que ele ficasse preso no interior dessas plantas, ele próprio enraizado e preso ao solo — à terra ou à água —, como se estivesse incapacitado por um feitiço (metamorfose) de mover-se de maneira diferente do que a planta que o envolve e emoldura… Como um corpo astral, tal como o viu e vivenciou Rudolf Steiner…, cuja escola deu a muitas de suas produções uma consagração ornamental, com signos curvilíneos que nada mais são do que vestígios dos ornamentos do Jugendstil.” Cf. a epígrafe do ensaio, Ovídio, Metamorfoses, livro III, versos 509-510: “O corpo desaparecera. Mas em vez do corpo, uma flor / Amarela como o açafrão adornado de folhas brancas.” Sternberger. “Jugendstil”, loc. cit., pp. 268-269 e 254.
O seguinte olhar sobre o Jugendstil é muito problemático, pois nenhuma manifestação histórica pode ser concebida somente sob a categoria da fuga; esta carrega sempre, de forma concreta, a marca daquilo de que se foge. “O que permanece fora … é o burburinho das cidades, a fúria monstruosa, não dos elementos, e sim das indústrias, o poder onipresente da moderna economia de mercado, o mundo das empresas, do trabalho tecnológico e das massas, que parecia aos exponentes do Jugendstil como um alarido geral, sufocante e caótico.- Dolf Sternberger, “Jugendstil”, Die Neue Rundschau, XLV, 9 set. 1934, p. 260.
Delvau fala em certa ocasião dos “futuros beneditinos que deverão escrever a história da Paris do século XIX.” Alfred Delvau, Les Dessous de Paris, Paris, 1860, p. 32 (‘Alexandre Privat D’Anglemont”).
O Jugendstil e a política social de habitação. “A arte que virá será mais pessoal do que qualquer uma que a precedeu. Em época alguma o desejo do homem por autoconhecimento foi tão forte, e o lugar por excelência onde ele pode viver e transfigurar sua própria individualidade é a casa, que cada um de nós construirá segundo seu desejo… Em cada um de nós dormita uma capacidade de invenção ornamental suficientemente grande, de modo que não precisamos lançar mão de nenhum intermediário para construir nossa casa.” Após esta citação extraída de Renaissance im modernen Kunstgewerbe, de Van de Velde, Karski prossegue: “Para qualquer um que leia este texto deve ficar absolutamente claro que este ideal não pode ser alcançado na nossa sociedade atual e que sua realização fica reservada ao socialismo.” J. Karski, “Moderne Kunstströmungen und Sozialismus”, Die Neue Zeit, XX, n° 1, Stuttgart, pp. 146-147.
Assim como Ibsen, em Solness, o Construtor, faz o julgamento da arquitetura do Jugendstil, assim o faz a respeito de seu tipo de mulher em Hedda Gabler. Ela é a irmã dramática das diseuses e dançarinas que aparecem nuas nos cartazes do Jugendstil, sem pano de fundo real, com uma devassidão ou inocência floral.
“A rua de Paris”, na Exposição universal de 1900, em Paris, realiza de maneira extrema a idéia de casa própria característica do Jugendstil: “Aqui foi construída uma longa fileira de edifícios de formas muito diversas… O jornal satírico Le Rire construiu um teatro de marionetes… Loie Fuller, que inventou a dança serpentina, possui uma casa neste conjunto. Não muito longe dali, há uma casa que parece estar de ponta-cabeça, com o telhado fincando raízes na terra e as portas com suas soleiras apontando para o céu; chama-se ‘A Torre dos Milagres’… A idéia, em todo o caso, é original.” Th. Heine, “Die Straße von Paris”, in: Die Pariser Weltausstellung in Wort und Bild, ed. org. por Georg Malkowsky, Berlim, 1900, p. 78.
Sobre a casa de cabeça para baixo: “Esta casinha, construída em estilo gótico, está literalmente de cabeça para baixo, isto é: seu telhado, com as chaminés e pequenas torres, estende-se pelo chão, enquanto os alicerces se elevam para o céu. Naturalmente, todas as janelas, portas, terraços, galerias, esquadrias, ornamentos e inscrições estão invertidos; até os ponteiros do grande relógio obedecem a esta tendência ao inverso… Embora esta idéia maluca seja divertida…, ela se torna monótona no interior. Lá ficamos nós mesmos de ponta-cabeça, como as curiosidades expostas. Lá estão uma mesa posta, um salão ricamente mobiliado e também um banheiro… O gabinete adjacente … e alguns outros cômodos estão forrados de espelhos côncavos e convexos. Os organizadores chamam-nos simplesmente de gabinetes do riso.” “Le manoir à l’envers”, in: Die Pariser Weltausstellung in Wort und Bild, ed. org. por Georg Malkowsky, Berlim, 1900, pp. 474-475.
Sobre a Exposição universal de Londres de 1851. “Esta exposição obteve sucesso não só no domínio da técnica e das máquinas, mas também no desenvolvimento artístico, e seus efeitos são sentidos por nós até hoje… Perguntamo-nos agora se o movimento que levou à construção de um edificio monumental de vidro e ferro … não se manifestou igualmente no desenho de móveis e utensílios. Em 1851 essas questões não se colocavam. E no entanto havia muito a observar. Durante as primeiras décadas do século XIX, a indústria de maquinaria da Inglaterra levou a eliminar a decoração supérflua de móveis e utensílios para que as máquinas pudessem fabricá-los mais facilmente. Com isso surgiu, principalmente para os móveis, uma série de formas bastante simples, mas construtivas e extraordinariamente inteligentes, que despertam novamente o nosso interesse hoje em dia. Os móveis ultramodernos de 1900, que dispensam qualquer ornamento e enfatizam as linhas puras, retomam imediatamente aqueles móveis de mogno maciços e ligeiramente torneados de 1830-1850. Ocorre que em 1850 não se apreciava o que, de fato, já havia sido conquistado na busca por novas formas básicas. (Ao contrário, houve uma tendência ao historicismo, que conduziu principalmente à moda renascença.) Julius Lessing, Das halbe Jahrhundert der Weltausstellungen, Berlim, pp. 11-12.
A propósito de Titorelli, em Kafka, fazer uma comparação com o programa dos pintores naturalistas por volta de 1860: “Segundo eles, a posição do artista frente á natureza deve ser … impessoal — a ponto de ele ser capaz de pintar o mesmo quadro dez vezes seguidas, sem hesitar e sem que as cópias posteriores se diferenciem em nada da cópia precedente.» Gisela Freund, La Photographie au Point de Vue Sociologique (manuscrito, p. 128).
Ao tentar acompanhar o Jugendstil [estilo de juventude] até seus efeitos sobre o Jugendbewegung [movimento de juventude] talvez devêssemos conduzir este estudo até o limiar da guerra.
Influência dos procedimentos de reprodução técnica sobre a teoria da pintura dos realistas: “Segundo eles, a posição do artista frente à natureza deve ser inteiramente impessoal, impessoal a ponto de ele ser capaz de pintar o mesmo quadro dez vezes seguidas, sem hesitar e sem que as cópias posteriores se diferenciem em nada da cópia precedente.” Gisèle Freund, La Photographie en France au XIX Siècle, Paris, 1936, p. 106.
É necessário prestar atenção à relação entre Simbolismo e Jugendstil, o que aponta para o lado esotérico deste último. Thérive escreve na resenha sobre o livro de Édouard Dujardin, Mallarmé par un des Siens, Paris, 1936: “No prefácio astucioso que escreveu para o livro de Édouard Dujardin, o Sr. Jean Cassou explica que o Simbolismo era um empreendimento místico e mágico, e que colocava o eterno problema do jargão, ‘gíria sofisticada, onde se expressa a vontade de ausência e de evasão da casta artística’… O Simbolismo se prestava sobretudo aos jogos meio paródicos do sonho, às formas ambíguas, e o comentarista chega a dizer que a mistura de esteticismo e mau gosto no estilo do Chat Noir (caf’ conc’ [para café concert], mangas tufadas, orquídeas e penteados com tiaras) foi uma combinação refinada, necessária.” André Thérive, “Les livres”, Le Temps, 25 jun. 1936.
Denner trabalhou quatro anos em um retrato que está exposto no Louvre, sem hesitar em usar a lupa para conseguir uma fidelidade absoluta na reprodução da natureza. E isto em uma época em que já tinha sido inventada a fotografia. (?) Isto demonstra como é difícil para o homem ceder o seu posto e deixar a máquina comandar em seu lugar. (Cf. Gisèle Freund, La Photographie en France au XIX Siècle, Paris, 1936, p. 112.)
Em uma prefiguração do Jugendstil, Baudelaire concebe “um quarto que se pareça com um devaneio, um quarto verdadeiramente espiritual… Os móveis têm formas alongadas, prostradas, lânguidas. Os móveis parecem sonhar; dir-se-ia que são dotados de uma vida sonâmbula, como o vegetal e o mineral.” Com isso, ele invoca um ídolo que talvez leve a pensar nas “mães malvadas” de Segantini ou em Hedda Gabler, de Ibsen: “o Ídolo. Eis o que são esses olhos … esses sutis e terríveis mirantes, que reconheço por sua assustadora malícia!” Charles Baudelaire, Le Spleen de Paris, Paris, Ed. R. Simon, p. 5 (“La chambre double”).
No livro The Nightside of Paris, de Edmund B. d’Auvergne (Londres, s. d., por volta de 1910), encontra-se à página 56 uma nota dizendo que havia sobre a porta do antigo Chat Noir (na Rue Victor-Massé) a seguinte inscrição: “Transeunte, seja moderno!” (Segundo carta de Wiesengrund) — Rollinat no Char Noir.
“O que é mais distante de nós que a ambição desconcertante de um Leonardo, que, considerando a Pintura como um fim supremo ou uma suprema demonstração do conhecimento, pensava que ela exigisse a aquisição da onisciência, e que não recuava diante de uma análise geral cuja profundidade e precisão nos confundem? A passagem da antiga grandeza da Pintura a seu estado atual é bem perceptível na obra e nos escritos de Eugène Delacroix. A inquietude, o sentimento de impotência dilaceram esse moderno cheio de idéias, que encontra a cada instante os limites de seus meios em seu esforço de igualar-se aos mestres do passado. Nada revela melhor a diminuição de não sei que força de outrora, de que plenitude, que o exemplo desse tão nobre artista, dividido em si mesmo, e enfrentando vigorosamente o último combate do grande estilo na arte.” Paul Valéry, Pièces sur l’Art, Paris, pp. 191-192 (“Autour de Corot”).
“As vitórias da arte parecem ser conquistadas às custas de uma perda de caráter.” Karl Marx, “Die Revolutionen von 1848 und das Proletariat”, discurso por ocasião do quarto aniversário do People’s Paper, publicado em The People’ s Paper, em 19 de abril de 1856 [in: Karl Marx als Denker, Mensch und Revolutionär, ed. org. por D. Rjazanov, Viena-Berlim, 1928, p. 42].
O ensaio de Dolf Sternberger, “Hohe See und Schiffbruch” [Alto mar e naufrágio], Die Neue Rundschau, XLVI, 8 ago. 1935, trata das “metamorfoses de uma alegoria”. “A alegoria tornou-se um gênero. O naufrágio como alegoria significava … a transitoriedade do mundo em geral — o naufrágio como gênero é uma fresta que dá visão sobre um mundo situado além do nosso, uma fresta voltada para uma vida cheia de perigos, que não é a própria, mas que é necessária… Este gênero heróico permanece sendo o signo sob o qual começa a reorganização e a reconciliação da sociedade”, é o que se lê em uma outra passagem, com especial referência à obra de Spielhagen, Sturmflut [Mar revolto] (1877) (pp. 196 e 199).
“O conforto privado era quase desconhecido entre os gregos; esses cidadãos de pequenas cidades, que erguiam em torno de si tantos admiráveis monumentos públicos, moravam em casas mais que modestas, nas quais alguns vasos — na verdade, obras-primas da elegância — constituíam todo o mobiliário.” Ernest Renan, Essais de Morale et de Critique, Paris, 1859, p. 359 (“La poésie ä l’Exposition”). Fazer uma comparação com o caráter dos cômodos na casa de Goethe. — Cf., ao contrário, o amor pelo conforto na produção de Baudelaire.
“Embora os progressos da arte estejam longe de ser comparáveis àqueles que uma nação alcança no gosto do confortável (sou obrigado a me servir dessa palavra bárbara para exprimir uma idéia pouco francesa), pode-se dizer, sem paradoxo, que os tempos e os países nos quais o conforto se tornou o principal atrativo do público foram os menos dotados do ponto de vista da arte… A comodidade exclui o estilo; um jarro de fabricação inglesa é mais adaptado à sua função que todos os vasos gregos de Vulci ou de Nola; estes são obras de arte, enquanto o jarro inglês não será nunca senão um utensílio doméstico… Resultado incontestável: o progresso da indústria na história não é absolutamente paralelo ao da arte.” Ernest Renan, Essais de Morale et de Critique, Paris, 1859, pp. 359, 361, 363 (“La poésie ä l’Exposition”).
“O rápido superpovoamento das capitais teve como efeito … a redução da superficie dos locais. Já em seu Salon de 1828, Stendhal escrevia: ‘Há oito dias fui à Rue Godot-de-Mauroy para procurar um apartamento. Fiquei chocado com a exigüidade dos cômodos: o século da pintura passou, disse a mim mesmo, suspirando; só a gravura pode prosperar agora.'”— Amédée Ozenfant, “La peinture murale”, in: Encyclopedie Française, vol. XVI, Arts et Littératures dans la Société Contemporaine, tomo 1, pp. 70-72.
No capitulo XXIV — “Beaux-Arts”, do Argument du Livre sur la Belgique: “Especialistas. — Um pintor para o sol, um para a neve, um para o clarão da lua, um para os móveis, um para os tecidos, um para as flores — e subdivisão de especialistas ao infinito. — A colaboração necessária, como na indústria.” Baudelaire, Œuvres, vol. II, ed. org. por Y-G. Le Dantec, Paris, 1932, p. 718.
“A elevação da vida urbana à qualidade de mito significa imediatamente para os mais lúcidos uma decidida opção pela modernidade. Sabe-se que lugar este último conceito ocupa em Baudelaire… Como ele mesmo o diz, trata-se da questão ‘principal e essencial’ de saber se seu tempo possui ‘uma beleza particular, inerente às novas paixões’. Conhecemos sua resposta: é a própria conclusão de seu escrito teórico mais considerável, pelo menos quanto á sua extensão: ‘O maravilhoso nos envolve e nos sacia como a atmosfera, mas nós não o vemos… Pois os heróis da Ilíada não chegam aos nossos pés, ó Vautrin, ó Rastignac, ó Birotteau — nem aos teus, ó Fontanarès, que não ousaste contar ao público tuas dores sob o traje fúnebre e convulso que todos assumimos; — e nem aos teus, ó Honoré de Balzac, tu, o mais heróico, o mais singular, o mais romântico e o mais poético entre todos os personagens que tiraste do teu seio.’ (Baudelaire, Salon de 1846, cap. XVIII).” Roger Caillois, “Paris, mythe moderne”, Nouvelle Revue Française, XXV, nº. 284, 1 maio 1937, pp. 690-691.
No capítulo XXIV — “Beaux-Arts” do Argument du Livre sur la Belgique: “Algumas páginas sobre este infame puffiste [charlatão] que se chama Wiertz, paixão dos turistas ingleses.” Baudelaire, Œuvres, vol. II, ed. org. por Y-G. Le Dantec, Paris, 1932, p. 718. E na p. 720: “Pinturas independentes. — Wiertz. Charlatão. Idiota. Ladrão… / Wiertz, o pintor filósofo literato. Tagarelices modernas. O Cristo dos humanitários… / Tolice análoga à de Victor Hugo, no final das Contemplations. / Abolição da pena de morte. / Poder infinito do homem… / As inscrições nos muros. Graves ofensas contra os críticos franceses e a França. Sentenças de Wiertz por todo lado… Bruxelas, capital do mundo. Paris província… / Os livros de Wiertz. Plágios. Ele não sabe desenhar, e sua estupidez é tão grande quanto seus colossos. / Em suma, esse charlatão soube fazer seus negócios. Mas o que Bruxelas fará de tudo isso, depois de sua morte? / Os trompe-l’oeil. / A Bofetada. / Napoleão no Inferno. / O Leão de Waterloo. / Wiertz e Victor Hugo querem salvar a humanidade.”
Ingres, Réponse au Rapport sur l’École des Beaux-Arts, Paris, 1863, defende as instituições da Escola diante do ministro das Belas-Artes, a quem é dirigida a resposta, da forma mais áspera. Ele não se posiciona contra o Romantismo. Desde o começo (p. 4), refere-se à indústria: “Agora querem misturar a indústria à arte. A indústria! Nós não queremos isso! Que ela fique onde está e não venha se instalar nos degraus de nossa escola…!” Ingres insiste na importância do desenho como fundamento exclusivo do ensino da pintura. Lidar com cores é algo que se aprenderia em uma semana.
Daniel Halévy relata que, em sua infância, modelos italianas — mulheres em trajes típicos de Sorrento, com um tamborim na mão — ficavam tagarelando em torno da fonte da Place Pigalle. (Cf. Halévy, Pays Parisiens, Paris, 1932, p. 60).
As “mães malvadas” de Segantini, enquanto tema do Jugendstil, são parentes próximas das lesbiennes. A mulher depravada mantém-se longe da fertilidade, assim como mantém-se longe dela o sacerdote. De fato, o Jugendstil descreve duas linhas distintas. A da perversão conduz de Baudelaire a Wilde e Beardsley; a linha hierática vai de Mallarmé a George. Finalmente, delineia-se mais fortemente uma terceira linha, a única que extrapolou o domínio da arte. Trata-se da linha da emancipação que, partindo das Fleurs du Mal, liga os subterrâneos de onde surgiu o Tagebuch einer Verlorenen [Diário de uma Garota Perdida] aos pontos culminantes de Zaratustra (Este é o sentido que se pode atribuir à observação de Capus).
Fórmulas da emancipação em Ibsen: a exigência ideal; morrer de forma bela; residências para seres humanos [cf. I 4, 4]; responsabilidade própria (da Dama do Mar).
A idéia do eterno retorno em Zaratustra é, segundo sua verdadeira natureza, uma estilização da concepção do mundo que Blanqui apresenta ainda em seus traços infernais. É uma estilização da existência até os mínimos fragmentos de seu decurso temporal. Não obstante, o estilo de Zaratustra é desmentido pela doutrina exposta nesta obra.
Os três “temas” nos quais se manifesta o Jugendstil: o tema hierático, o tema da perversão, o tema da emancipação. Todos eles têm seu lugar nas Fleurs du Mal; a cada um deles pode-se atribuir um poema representativo do livro. Para o primeiro, “Bénédiction”, para o segundo, “Delphine et Hippolyte”, para o terceiro, “Les litanies de Satan”.
Zaratustra apropriou-se em primeiro lugar dos elementos tectônicos do Jugendstil, em contraste com seus temas orgânicos. Particularmente as pausas, que são características de seu ritmo, são um contraponto exato ao fenômeno tectônico básico desse estilo, que é a predominância da forma vazia sobre a forma cheia.
O Jugendstil força o aurático. Nunca o sol sentiu-se melhor em sua auréola radiante; nunca o olho humano foi mais brilhante do que em Fidus. Maeterlinck leva o desenvolvimento do aurático até o absurdo. O silêncio dos personagens dramáticos é uma de suas formas de expressão. A “Perte d’auréole”, de Baudelaire, opõe-se a este tema do Jugendstil da maneira mais categórica.
O Jugendstil é a segunda tentativa da arte de confrontar-se com a técnica. A primeira foi o Realismo. Neste, o problema se situava mais ou menos na consciência dos artistas. Eles ficaram inquietos com os novos procedimentos da técnica de reprodução. (A teoria do Realismo comprova isto; cf. S 5, 5.) No Jugendstil, o problema como tal já havia sido recalcado. Ele não se considerava mais ameaçado pela concorrência da técnica. Assim o confronto com a técnica que está oculto no Jugendstil se tornou tão mais agressivo. Sua recorrência a temas técnicos advém da tentativa de esterilizá-los através da ornamentação. (Alias, isto conferiu excepcional significado político ao combate que Adolf Loos empreendeu contra o ornamento.)
O luto que o outono desperta em Baudelaire. E, a época da colheita, a época em que as flores se desfazem. O outono é invocado por Baudelaire com particular solenidade. Ao outono dedica os versos que talvez sejam os mais melancólicos de seus poemas. A respeito do sol diz o seguinte:
Ele “manda as colheitas crescerem e amadurecerem
No coração imortal que sempre quer florir!”
Com a figura do coração que não quer dar frutos, Baudelaire deu seu veredito sobre o Jugendstil muito antes de seu surgimento.
“Esta procura pela minha casa … foi o meu castigo… Onde está — minha casa? Eis o que pergunto e procuro, e procurava, e não encontrei. Ó eterno todo lugar, ó eterno nenhures.” Cit. de Zarathustra, em Löwith, Nietzsches Philosophie der ewigen Wiederkunft, Berlim, 1935, p. 35 (cf. epígrafe de Rilke, S 4a, 2), ed. Kröner, p. 398.
Pode-se supor que na linha típica do Jugendstil não raro se encontram — reunidos em uma montagem da imaginação — o nervo e o fio elétrico (e que o sistema nervoso vegetativo em particular, como forma limítrofe, serve de intermediário entre o mundo do organismo e a técnica). “O culto aos nervos do fin-de-siècle preservou esta imagem telegráfica, e a respeito de Strindberg, sua segunda mulher, Frida…, escreveu que seus nervos eram tão sensíveis à eletricidade da atmosfera que uma tempestade se transmitia a eles como que por fios telegráficos.” Dolf Sternberger, Panorama, Hamburgo, 1938, p. 33.
No Jugendstil, a burguesia começa a confrontar-se com as condições não ainda de seu domínio social, mas de seu domínio sobre a natureza. A percepção destas condições começa a exercer uma pressão sobre o limiar de sua consciência. Daí o misticismo (Maeterlinck) que procura atenuar essa pressão; mas daí também a recepção de formas técnicas no Jugendstil, p. e., o espaço vazio.
O capítulo de Zaratustra intitulado “Unter Töchtern der Wüste” [“Entre filhas do deserto”] é revelador, não apenas porque aparecem em Nietzsche as meninas florais — um tema importante do Jugendstil mas também pela afinidade entre Nietzsche e Guys. A passagem “profundas, mas sem pensamentos” descreve exatamente a expressão das prostitutas neste último.
O ponto culminante da organização técnica do mundo consiste na liquidação da fertilidade. O ideal de beleza do Jugendstil é constituído pela mulher frígida. (O Jugendstil vê em cada mulher não Helena, e sim Olímpia.
O indivíduo, o grupo, a massa — o grupo é o princípio do gênero; o isolamento do indivíduo é típico do Jugendstil (cf. Ibsen).
O Jugendstil é um progresso na medida em que a burguesia se aproxima dos fundamentos técnicos de seu domínio sobre a natureza; um retrocesso, na medida em que lhe falta a força para ainda olhar o cotidiano de frente. (Isto só é possível sob a proteção da mentira da vida. ) – A burguesia sente que não tem muita vida pela frente, uma razão a mais para ela querer ser jovem. Assim, ela imagina para si uma vida mais longa, ou pelo menos uma bela morte.
Segantini e Munch; Margarete Böhme e Przybyszewski.
A filosofia do “Como Se” de Vaihinger é o toque de agonia do Jugendstil.
“Com as primeiras obras de Hennebique e dos irmãos Perret, um novo capítulo se abriu na história da arquitetura. O desejo de evasão, de renovação, exprimia-se, aliás, nas tentativas de escola do Modern Style, que fracassou deploravelmente. Parece que esses autores torturaram a pedra até seu esgotamento e prepararam com isso uma reação feroz em favor da simplicidade. A arte da arquitetura devia renascer em formas serenas pela exploração de materiais novos.” Marcel Zahar, “Les tendances actuelles de l’architecture”, in: Encyclopédie Française, XVII, p. 17. 10-3/4.
Em seus Salões, Baudelaire revelou-se um inimigo intransigente do gênero. Baudelaire situa-se no início do Jugendstil, que representa uma tentativa de liquidar o gênero. Nas Fleurs du Mal, o Jugendstil se manifesta pela primeira vez com seu tema floral característico.
A seguinte passagem de Valéry (Œuvres Complètes, J, cit. em Thérive, Le Temps, 20 abr. 1939) pode ser lida como uma réplica a Baudelaire: “O homem moderno é escravo da modernidade… Em breve será necessário construir celas rigorosamente isoladas… Aí serão desprezados a velocidade, o número, os efeitos de massa, de surpresa, de contraste, de repetição, de novidade e de credulidade.”
Sobre a sensação: este arranjo — a novidade e a depreciação que a atinge como um choque — encontrou desde meados do século XIX uma expressão particularmente drástica. A moeda usada nada perde de seu valor; o selo carimbado é depreciado. É sem dúvida o primeiro valor cuja validade é indissociável de seu caráter de novidade. (O reconhecimento do valor coincide aqui com a desvalorização.)
Sobre o tema da infertilidade no Jugendstil: considerava-se a concepção como a maneira mais indigna de subscrever o lado animal da criação.
Conceber o “não” como a antítese do “planejado”. A propósito do piano, comparar Lesabéndio, de Scheerbart: estamos todos tão cansados porque não temos nenhum plano.
“Novidade. Vontade de novidade. O novo é um daqueles venenos excitantes que acabam sendo mais necessários que qualquer alimento, e cuja dose é preciso aumentar sempre, uma vez que são nossos senhores, e torná-la mortal porque sem ela morreríamos. É estranho prender-se assim à parte perecível das coisas, que é exatamente sua qualidade de serem novas.” Paul Valéry, Choses Tues, Paris, 1930, pp. 14-15.
Passagem decisiva sobre a aura em Proust. Ele fala de sua viagem a Balbec e comenta que ela provavelmente poderia ser feita hoje em dia de automóvel, e que isto até teria algumas vantagens: “Mas, enfim, o prazer específico da viagem não é poder descer durante o percurso…, mas tornar a diferença entre a partida e a chegada não tão imperceptível, mas tão profunda quanto possível, de forma que se possa senti-la intacta, tal como era em nosso pensamento quando nossa imaginação nos levou do lugar em que vivíamos até o coração de um lugar desejado, num salto que nos parecia menos miraculoso por vencer uma distância do que por unir duas individualidades distintas da terra, por nos levar de um nome a outro nome; e esquematizar (melhor que um passeio em que, como se desembarca onde se quer, não há mais chegada) a operação misteriosa que se cumpria nesses lugares especiais, as estações ferroviárias, que não fazem parte, por assim dizer, da cidade, mas contém a essência de sua personalidade, assim como em uma placa de sinalização trazem seu nome… Infelizmente esses lugares maravilhosos que são as estações, de onde se parte para um destino longínquo, são também lugares trágicos, porque … é preciso deixar para trás qualquer esperança de voltar e deitar-se em casa, uma vez que se decidiu penetrar no antro empesteado por onde se chega ao mistério, numa dessas grandes oficinas envidraçadas, como a de Saint-Lazare, onde eu ia pegar o trem de Balbec, e que desenrolava por cima da cidade dilacerada um desses imensos céus, nus e pesados com ameaças carregadas de drama, como alguns céus pintados com uma modernidade quase parisiense, de Mantegna ou de Veronesi, e sob o qual não podia se cumprir senão algum ato terrível e solene como a partida em uma estrada de ferro ou a elevação da Cruz.” Marcel Proust, À l’Ombre des Jeunes Filles en Fleurs, vol. II, Paris, pp. 62-63.
Proust sobre o museu: “Em todo gênero, nosso tempo tem a mania de querer sempre mostrar as coisas com aquilo que as envolve na realidade, e de assim suprimir o essencial: o ato de espírito que as isolou da realidade. ‘Apresenta-se’ um quadro no meio de móveis, de bibelôs, de tapeçarias da mesma época, insípida decoração … no meio da qual a obra-prima, que se observa enquanto se janta, não nos proporciona a mesma embriagante alegria que só se pode esperar numa sala de museu, a qual simboliza bem melhor, por sua nudez e seu despojamento de todas as particularidades, os espaços interiores onde o artista se retirou para criar.” Marcel Proust, A l’Ombre des Jeunes Filles en Fleur, vol. II, Paris, pp. 62-63.
Como a modernidade se torna Jugendstil?
Campo de batalha ou feira? “Lembramo-nos que outrora havia, nas letras, um movimento de atividade generosa e desinteressada. Dizem que havia escolas e chefes de escola, partidos e chefes de partido, sistemas em luta, correntes e contracorrentes de idéias…, uma vida literária ardente, militante… Ah! sei que por volta de 1830 todas as pessoas de letras se vangloriavam de serem os soldados de uma expedição, e que não pediam como publicidade, à sombra de uma bandeira, senão os sonoros apelos do campo de batalha… O que nos resta hoje desse espetáculo de bravura? Nossos predecessores combatiam, e nós, nós fabricamos e vendemos. O que vejo de mais claro, na desordem em que estamos, é que no lugar do campo de batalha há uma miríade de boutiques e ateliês onde se vendem e se fabricam, a cada dia, as novas modas e tudo o que em geral se chama o artigo-Paris.” “Sim, MODISTA é a palavra que convém à nossa geração de pensadores e de sonhadores.” Hippolyte Babou. Les Payens Innocents, Paris, 1858, pp. VII-VIII (“Lettre à Charles Asselineau”).