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PSICOLOGIA

Um dogma fundamental da ciência atual é que a verdade, sobre todo e qualquer campo restrito, deveria ser averiguada (especialização). A verdade, finalmente, resultaria de sua própria mecânica, através da restrição máxima do campo, tal como se fosse desencadeada nos centros vitais pela contração do movimento exterior. Todavia certas restrições seriam hostis à verdade, e é numa tal restrição e definição mentirosas do campo que, por exemplo, se fundamenta a psicologia. Reza uma de suas hipóteses, em cada uma de suas formas: o ser humano é reconhecido pela abstração de sua determinação moral. Esta afirmação, que se faz tão aparente, é falsa.

Toda psicologia atual, e todo modo de pesquisa que pode se sentir tentado a adotar o seu nome, conduz seus pressupostos epistemológicos ou filosóficos gerais ao infundado. No fim das contas, ela enfatiza a seguinte questão: como surgem nos seres humanos as atitudes anímicas? Esta questão é duplamente falsa. Em primeiro lugar não há atitude anímica que signifique algo essencialmente diferente do fundamento corporal ou essencialmente diferente apenas em sua aparência. A alegada diferença de que a vida anímica alheia, em contraste com a nossa própria, nos é dada apenas indiretamente, através da interpretação da corporalidade alheia, não se sustenta. A vida anímica alheia bem como a nossa própria nos é dada diretamente, embora dada sempre a cada vez em uma relação determinada ou ao menos sobre um determinado fundamento da corporalidade. A vida anímica alheia, a princípio, não é percebida diferentemente da vida anímica própria, ela não é deduzida, mas vista no corporal, como pertence a ele a vida anímica. Somente os graus de manifestação diferem do corporal. Por conseguinte é objeto da psicologia não o mundo da autopercepção, mas um mundo perceptivo liberado, e não apenas este. Por assim dizer, a psicologia (mesmo quando esta é definitivamente uma categoria epistemológica) é uma ciência descritiva, não explicativa. A percepção que nela é descrita é pura e simplesmente a percepção (apocalíptica) dos seres humanos; daquilo que restou nos seres humanos, depois da catástrofe moral, depois da conversão e da ablução. Isto não é o “interior” <–> interior é apenas a moral (e esta frase é obviamente uma metáfora) <–>, mas algo exterior: sua percepção, que ele entrega aos outros. Mas esta só é pura, exterior, completamente perceptível e, por conseguinte, completamente percepção após a restituição moral dos seres humanos. Sendo assim é a moral o pressuposto da psicologia, a construção da pessoa pura implica necessariamente a doutrina da purificação.

A relação da forma humana com a linguagem, ou seja, como Deus linguisticamente produz nela a sua formação, é o objeto da psicologia. Isto também inclui o corporal, quando Deus age linguisticamente de modo direto – e talvez incompreensível – nela.

“O que percorreu desorientada a alma desperta
Já fora a pura aparência da minha terra.”

Já que a linguagem é o cânon da percepção e o humanamente perceptível o objeto da psicologia, a relação da forma humana com a linguagem é o objeto da psicologia. Enquanto persistir a problemática moral, isto permanecerá oculto. (Quando eu falo com uma pessoa e há em mim uma crescente dúvida sobre ela, sua imagem turva-se, eu ainda posso vê-la, mas já não posso mais percebê-la).

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PROBLEMA DA PERCEPÇÃO

Em Berlim, disse-se numa expressão familiar de alguém que se considera insano: é natural de Dalldorf, em Viena: … é natural de Steinhoff, em Paris, falando no mesmo sentido de Charenton. Por toda a parte, portanto, permanece viva a percepção de que a expulsão da comunidade, a desintegração completa do elo entre a comunidade e cada pessoa seria constitutiva da doença mental. Do mesmo modo, talvez não seja por acaso que os sanatórios para os doentes não se encontram, como outros hospitais, no interior das cidades.

Afortunados em contos de fadas vêem jardins encantados onde outras pessoas nada reparam, eles se deparam com tesouros onde outros passam distraídos. Isso não pode ser entendido, que os jardins encantados ou os próprios tesouros sejam invisíveis para outras pessoas, mas tornam-se visíveis para os afortunados, ou que repentinamente diante de tais coisas a percepção de outra criatura esmoreça, porém a dos afortunados se intensifica. Neste ponto, a única intenção possível é senão que os afortunados teriam uma percepção mais aguçada do que a das pessoas comuns, sendo que nenhuma delas é falsa, por conseguinte nenhuma delas é verdadeira. A percepção não é afetada por esta alternativa.

PERCEPÇÃO E CORPO VIVO

Através de nossa corporalidade, mais precisamente através de nosso próprio corpo vivo, nós estamos no mundo da percepção, inseridos assim em uma das mais altas camadas da linguagem. Contudo cegos, geralmente incapazes, aqui como corpo vivo natural, de distinguir com precisão a aparência do ser da forma messiânica. É muito significativo que o próprio corpo vivo nos seja inacessível em tantos aspectos: não podemos ver nosso rosto, nossas costas, nem nossa cabeça por inteiro; portanto, a parte mais nobre do corpo vivo nós não podemos apanhar com as próprias mãos, não podemos abarcar, entre outras coisas. Nós nos destacamos no mundo da percepção com os pés, não com a cabeça. Daí a necessidade de que nosso corpo vivo nos transforme no instante da pura percepção; daí o martírio sublime da excentricidade em seu corpo vivo.

Há uma história da percepção, que é por fim a história do mito. O corpo vivo daquele que percebe nem sempre foi apenas as coordenadas verticais à horizontal da terra. A maneira ereta de andar conquistada gradualmente pelos seres humanos proporciona agora o predomínio de outros modos de percepção. Mas, de resto, isto não só é possível como necessário. Nem sempre o conhecimento das distâncias formais irá dominar a percepção visual (Caso de uma criança que, sem órgãos de apreensão fixados num dado local, forma o seu mundo visual: uma outra hierarquia de distâncias). A história da percepção se deu a partir dos elementos da mudança da natureza e da mudança do corpo vivo, mas somente ela dá a estes elementos o significado espiritual e coroação (realização, síntese) no mito. Nele constroem-se e transformam-se lentamente as grandes disposições da percepção que determinam o modo como se confrontam corpo vivo e natureza: direita, esquerda – acima, abaixo – para frente, para trás.

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[fr 47]

DOIS CASAIS são elementos, dois amigos, os líderes da comunidade.

A amizade pertence à ordem da solidão do destino. Na anarquia. – Só aí tem ela a sua essência segundo a posição dominante. Amizade e amor não diferem em si mesmos, apenas em sua posição para a comunidade. E, além disso, não há naturalmente nenhum sacramento transferido da amizade à ordem divina. Isto é o inaudito, o que torna a amizade perigosa: uma relação determinada livre de sacramento.

A sociedade moderna de modo algum conhece a amizade, ela é própria do helenismo, no qual o gênio alcançou a forma histórica mais pura. A amizade também desempenha um papel importante na mitologia do gênio. Ela desempenha um papel no judaísmo?

O que hoje é chamado amizade não merece este nome. Ela teria que sucumbir ao parâmetro pseudo-religioso atual (mas também ao religioso?).

Como amizade e amor se confrontam na ordem do gênio?

SOBRE O MATRIMÔNIO

Eros, o amor, possui a única direção para a morte comum dos amantes. Ele se desenrola como o fio num labirinto que tem seu centro na “câmara da morte”. Só aí sobrevém ao amor a realidade do gênero, onde a própria agonia se tornaria a luta do amor. Em contrapartida, o genérico em si mesmo escapa à morte própria e à vida própria, e chama às cegas a morte alheia e a vida alheia nesta evasão. Ele se dirige para o nada nessa desgraça, onde a vida é apenas uma não-morte e a morte é apenas uma não-vida. Assim deve o barco do amor passar entre a Cila da morte e a Caríbdis da desgraça, e isso nunca seria possível se Deus, nesse ponto de seu trajeto, não o torna-se indestrutível. Pois como a sexualidade do amor vindouro é completamente estranha, a do amor presente deve ser completamente singular. Ela jamais é a condição de seu ser e sempre a sua duração mundana. Mas Deus, no sacramento do matrimônio, torna o amor <imune> ao perigo da sexualidade e da morte. O perigo da sexualidade é que ela, nomeadamente, destaca o casal ou, mais precisamente, ela simplesmente o destaca para responsabilizá-lo, uma vez que a pessoa é incapaz de se responsabilizar por seus instintos e, além disso, jamais é responsável pelo que estes determinam. Mas somente o Deus da responsabilidade, no matrimônio, é a favor da sexualidade do casal, e assim o é por toda parte, exceto o próprio perigo desmedido da sexualidade, que faz parte da vida e que, por si só, conduz através da senda da ascese apenas os devotos.

(O que se diferencia nessa transformação misteriosa do amor através do sacramento é o feminino.)

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[fr 48]

SOBRE A VERGONHA

Sobre o significado secreto do rubor, que vem com a vergonha dos seres humanos, segue a observação de Goethe: “Nos macacos, quando algumas partes nuas se destacam devido as suas cores elementares, isto indica o quão distante esta criatura se encontra da perfeição: porque, se pode dizer, quanto mais nobre é uma criatura tanto mais todo o material adjetivo é assimilado nela; quanto mais sua superfície se relaciona com seu interior menos podem aparecer as cores elementares mesmas. Como neste caso, onde o todo perfeito integra tudo, não se pode separar aqui e ali algo específico” (Farbenlehre Didaktischer Teil 666). A indeterminação sublime, a discrição com a qual o ser humano se apresenta diante das cores quando comparado ao restante dos seres, na qual a natureza praticamente se retira dele devido à palidez de seu corpo material e onde, por outro lado, a sua graça parece triunfar mais que no esplendor, será destruída no rubor da vergonha. Porém não através do poder inferior. Porque esse rubor da vergonha não macula a pele, nele não aparece o dilema interno, a decomposição interna sobre a superfície. Ele não anuncia absolutamente nada interior. Por outro lado, caso ele assim se apresentasse, realmente seria motivo suficiente para uma nova vergonha do ser humano, revelada em sua alma débil, em vez de – como, na verdade, o é – fazer de seu rubor todo o fundamento da vergonha, extinguindo todo interior. O rubor de vergonha não aflora a partir do interior (e esse crescente rubor da vergonha, a partir do qual às vezes se fala, não é daquele que se envergonha), mas sim do exterior, de cima, de onde ele verte o envergonhado, liquida nele a desonra e igualmente priva o desonrado. Pois o rubor intenso vertido pela vergonha priva-o do olhar das pessoas como se estivesse sob um véu. Quem se envergonha não vê nada, mas também não será visto.

Este prodigioso poder da vergonha mostra-se claramente na cor. O que distingue seu rubor daquela policromia denunciatória das cores da natureza, que Goethe reconheceu no macaco e da qual o corpo material humano é tão privado, capaz de estabelecer uma profunda relação secreta, se encontra na pedante “Analyse der Schönheit” de Hogarth: “Para evitar confusões e como eu já disse o suficiente sobre o retrocesso das sombras, agora vou apenas descrever a natureza e o efeito da primeira tonalidade da cor de carne. A composição desta cor, quando é corretamente entendida, abrange tudo o que se pode dizer da cor de qualquer objeto em geral” (ed. Leitner p 181). O que distingue o rubor de vergonha da vergonha policrômica de um macaco, e o tom da pele humana da de um animal? Goethe observou que as cores nos seres orgânicos são a expressão de seu interior. Isto requer uma extremamente notável, singular e, em certo sentido, transformação turva da essência fundamental das cores no mundo orgânico. Turvação: porque à essência pura da cor não corresponderia a expressão de um colorido, a expressão para o interior de um colorido. Pois a expressão pura, a significação pura, o “efeito ético-sensível” que fala Goethe, prende-se às cores, não à coloração. E mais precisamente: nem à coloração, tão pouco inteiramente às cores, mas sim ao cerne do colorir. Não à coisa azul, nem ao azul morto, mas à luz azul, ao brilho azul, ao raio azul. Estes três retêm e contêm das cores o simples <?> espiritual. Mas eles aparecem como brilho e luz, no mundo orgânico simples das plantas, mais puros do que no mais complexo dos animais. Mas o raio irradia apenas a partir do inorgânico que do orgânico superior: a partir do sol e a partir da face. Como raio, porém, a cor nunca é a expressão de um interior, mas sempre seu efeito. Como luz e brilho ela pode ser expressão e assim revela, quanto mais pura ela é menos visível a partir do interior, como justamente seria no mundo das plantas. Em contrapartida, quanto mais a cor se torna a expressão do interior e menos permanece sendo a luz da superfície, mais turva parece e mais não-espiritual. Assim, com a maioria dos animais. Mas, em parte alguma, nem nos animais nem nas plantas, nem nas cores brilhantes ou turvas, pode aparecer a luz colorida, só na face humana quando cessa completamente de brilhar, reunida ao rubor intenso. A cor da vergonha é pura: seu vermelho não é colorido nem cor, mas colorir. Ele é o encarnado do passado na paleta da fantasia. Devido a esse verdadeiro colorir mais puro, a luz nada mais é que o colorido, o multicolorido da fantasia. A ela se prestam as cores, nas quais aparece um ser, sem ser a expressão de um interior. E apenas esta manifestação colorida é pura e, por isso, atua de modo incomparavelmente poderoso: não sobre a compreensão, que nada revela, mas sobre a alma, que diz tudo. A falta de expressão é a manifestação significativa da cor da fantasia. A falta de expressão, a manifestação significativa do delito, do rubor de vergonha.

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[fr 49]

MORTE

O indivíduo morre, ou seja, ocorre uma dispersão; o indivíduo é uma unidade indivisível, porém inacabada; a morte é, no campo da individualidade, apenas um movimento (movimento ondulatório). A vida histórica perece sempre em algum lugar; mas é imortal no todo. O conjunto aparente não depende do indivíduo (coeso). Com efeito, esta é a intenção verdadeira da reencarnação<.>

A persona será petrificada<.> Velhice.

Lealdade conserva apenas a persona<.>

A pessoa estará livre<.>

O corpo vivo perece, rompido como manômetro, que é explodido no instante de maior tensão e, com o despedaçamento da ligação, torna-se caduco, supérfluo.

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[fr 50]

INÁCIO DE LOYOLA

A ascese jesuíta, a julgar pelos exercícios de Loyola, não parece ter sua peculiaridade nem na dor da carne nem na da consciência ético-moral, mas na da consciência do eu. De fato esta pode desenvolver um martírio singular como expiação, a partir de si mesma, e tão somente em substituição ao conflito, à ablução e ao esclarecimento morais. Assim procede na meditação e pensamento coercivos, na aritmomania do neurótico. E, tal como nestes, o martírio ascético dos exercícios se encontra não na seriedade ou em seu conteúdo ardente, que será refletido, mas se estende ao imensurável martírio superior da própria intentio. Esse martírio da consciência do eu intelectual, através da sua completa insubstancialidade, é predestinado para a regulamentação autoritária. Ele não tem mais nenhuma relação com a essência dos seres humanos e absolve, conforme se queira encarar, mística ou mecanicamente, como um sacramento. A tensão da expiação trasladada em cada zona puramente intencional deixa simultaneamente a vida moral num certo embotamento, no qual já não reage mais a seus próprios impulsos, mas ao estímulo cuidadoso e equilibrado da autoridade eclesiástica.

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[fr 51]

SOBRE AMOR E PARENTESCO. (UM PROBLEMA EUROPEU)

(Sobre o matrimônio v. em outro caderno <fr 47>) Esta época participa da consumação de uma das revoluções mais poderosas já realizadas nas relações de gênero. Somente o saber proveniente destes acontecimentos nos permite atualmente lidar com o erotismo e a sexualidade; por que, neste caso, é imperativa a compreensão de que as formas seculares, e com isso igualmente o antigo conhecimento da relação de gênero, deixaram de ser válidos. Nada obstrui tão poderosamente esta compreensão como o argumento da imutabilidade dessa relação, em suas camadas mais profundas; o erro de que das transformações, da história, seriam afetadas apenas as formas efêmeras, as modas eróticas, visto que o mais profundo e o pretenso fundamento imutável, entre eles o domínio, seriam as leis eternas da natureza. Mas como só se pressente e não se sabe a amplitude para estas questões, como as revoluções na natureza são o mais poderoso testemunho da história? É provável que em todo o mundo pré-apocalíptico resida um sedimento e fundamento primeiro da vida imutável, porém isto é infinitamente mais profundo do que o pressente a fraseologia banal quando disserta sobre a eterna luta dos sexos. Esta luta pode até pertencer à existência eterna, mas certamente não às suas formas. Mas o que ela provavelmente sempre inflama e inflamará é a mulher determinada pelo erotismo e pela sexualidade, que parece natural devido à ocultação mais triste, onde o homem não é capaz de reconhecê-la, num amor criativo sem igual, como algo sobrenatural. E constantemente se inflama a partir desta sua incapacidade de luta, se as formas históricas de tal criação, como ainda hoje, estiverem mortas. Como então o homem europeu parece incapaz de confrontar essa unidade do ser feminino, que todos os sentinelas e reformadores de seu gênero praticamente compelem ao horror, na medida em que <permanecem> fechados a percepção da origem superior desse ser, onde eles não a vêem como sobrenatural, evidentemente, devem sentir às cegas e fugir. E, precisamente sob esta cegueira do homem, atrofia-se a vida sobrenatural da mulher ao natural e, como tal, igualmente ao não-natural. Pois só esta corresponde à decomposição singular que atualmente é capaz de capturar o feminino, pelos instintos primitivos do homem, apenas sob as imagens simultâneas da prostituta e da amante intocada. Mas essa intocabilidade lhe é estabelecida tão pouco como anímico imediato como quanto baixo desejo, como também é, em essência, instintiva e agressiva, de modo que – se hoje como outrora o maior símbolo válido para a duração terrena do amor, a única noite de amor é anterior a morte – esta, como outrora a noite das posses tornou-se hoje a noite da impotência e da resignação, a vivência clássica e válida do amor da nova geração – quem sabe por quantas gerações mais? Mas as duas coisas, impotência como desejo, um novo e inaudito caminho do homem, para o qual o velho caminho é deslocado por meio da posse da mulher para o conhecimento, e que a nova busca chega por meio deste conhecimento a sua posse. Mas: similia a similibus cognoscentes. Assim o homem procura se assemelhar a mulher, igualando-se a ela. E aqui se instala a desmedida e, num sentido mais profundo, a quase sistemática metamorfose do masculino, uma das maiores, provavelmente a maior delas: a metamorfose da sexualidade masculina em feminina por meio da passagem pelo medium espiritual. Agora é Adão quem viola a maçã, mas ele é igual à Eva. A antiga serpente pode desaparecer e novamente no jardim purificado do Éden nada resta como a questão se ele é o paraíso ou o inferno.

O olhar se perde na escuridão daquela grande metamorfose da corrente da physis humana, num futuro que provavelmente é estabelecido, que nenhum profeta penetrou, mas que será conquistado pelos mais pacientes. Aqui flui a corrente escura que hoje, para o mais nobre, pode ser a sepultura predeterminada. Mas, acima de tudo, conduz o espírito como a única ponte que ele atravessa e onde a vida, em sua carruagem triunfal, será transcendida, em cuja linha de frente só os escravos permanecerão salvos.

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[fr 52]

NO SENTIMENTO DE CULPA SEXUAL, que ao menos é a regra para os homens no trato com as mulheres (não sei se para as mulheres, e se no trato do mesmo gênero com um ou ambos os gêneros), há um indício muito importante das antigas condições do mundo <–> para as próprias condições do mundo, não apenas para a imagem que é feita dele contemporaneamente. Este sentimento de culpa não pode ser esclarecido com base nas relações históricas se, desde o início, não for afastado o equívoco de que o sentimento de culpa pode surgir através do medo; (apenas o oposto é possível). O sentimento de culpa sexual é semelhante ao de uma conjuração: o sentimento da culpa pela entrada numa área, de um poder ruim, imponente, exercido sobre o recém-chegado. Este sentimento não é compreendido a partir da simples natureza psíquica da condição de embriaguez sexual, como não exerce, inteiramente sob estas condições, nenhum poder ilimitado sobre as pessoas. Portanto ele deve basear-se num sentimento formado em tempos remotos, quando da entrada nesta ou em regiões afins. Na conspiração, o sentimento elementar quando da entrada em tais regiões superiores, além do sentimento de culpa, é o horror. Assim este também é preservado como um componente importante no sentimento de culpa sexual, restando apenas as questões se aqueles poderes, aos quais o horror se refere neste ato, se sustentam atualmente e se o sentimento de culpa sexual é indulgente neste modo de horror, na conjuração sexual da origem. A presença destes poderes, mesmo que altamente atenuada, ainda é presumida. A resposta a estas duas questões deve permanecer em aberto.

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[fr 53]

A PROSTITUTA

Na prostituta são expressos dois princípios opostos. O princípio do prazer anárquico e o princípio hierárquico do culto a Deus, agora ou chama este Deus no sentido próprio, ao modo dos hieródulos, ou o chama dinheiro. Ambos os princípios tem nesta forma um ir e vir, uma história de sua expressão. Entre eles, e a coquete moderna é contada no tipo hierático, está a prostituta, a quem particularmente corresponde uma expressão pura de ambos os princípios: libertinagem e obediência (por necessidade). Considerar que esta antinomia dos dois princípios históricos (em suma: o revolucionário e o teocrático) surge na mulher.

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[fr 54]

SOBRE O HORROR I

A meditação na música ou no sono, em sentido profundo, a maneira mais fácil de fazer sentir o horror no despertar, a partir de um estado de contemplação e concentração profundo. Este pode ser desencadeado de modo incomparavelmente mais forte e mais fácil do que todas aquelas outras percepções do rosto. Aqui, por outro lado, mais fortemente pela percepção mais íntima das pessoas do sexo feminino (e, provavelmente, do mesmo modo tanto para os homens como para as mulheres) <.> Assim, portanto, como eidética do caso ideal do horror, o aparecimento da mãe, no sentido mais profundo, seria percebido pela pessoa e, através dele, esta é despertada. A análise seguinte pode esclarecer até que ponto, nesta descrição, as “condições experimentais” ainda são indicadas inexatamente e, portanto, o horror sob tais condições ainda não se apresenta prontamente evidente.

O estado presumido da meditação necessita, particularmente, da determinação pormenorizada. Há estados de meditação, precisamente em sua profundeza, que não obstante tornam as pessoas não distraídas, mas altamente atentas. Mas a pessoa, na presença do espírito, não está sujeita ao horror. O único tipo de presença de espírito que tem estabilidade e que não pode ser minada é o da meditação sagrada, tal como o da oração. Nesta meditação aparece às pessoas não tão facilmente o fantasmagórico – e se ele assim pode aparecer como fantasmas, que é muito questionável, em todo o caso não provocaria qualquer horror. Portanto este tipo de meditação está longe de favorecer o horror, a mais segura proteção contra este.

Mas que tipo de meditação se coloca contra o sagrado, que predispõe ao horror? Aquela em que a pessoa não está completamente absorvida em Deus e, com isso, também não o está em si mesma, mas sim no alheio e, por conseguinte, está apenas incompletamente absorvida. Em torno desta incompletude, ainda que profunda, mas sempre absorção distraída, se expressa um esquema figurado: a alma forma um turbilhão no qual, de todos os membros e áreas do corpo vivo, os momentos espirituais estão envolvidos, e então o corpo vivo se despotencializa sob a ausência de espírito, praticamente desencarnado, portanto, e de fato deixa para trás apenas o corpo material. Com esta ausência do espírito volatiliza-se (que é apenas outra palavra para isto) o corpo vivo, e o corpo material é deixado para trás sem a distância dissoluta e distintiva do corporal e do espiritual, que assim expressa que o corpo material humano, em estado de distração espiritual, não possui qualquer limite. O percebido, sobretudo aquele percebido no rosto que agora refrata em seu interior, também a partir do corpo material estranho, arremete o espírito-corpo vivo no turbilhão e se mantém, ao lado do sentimento, na percepção visual do horror: você está à vista dos outros (“você” porque não há nenhum limite) em contrapartida, o sentimento: esse é o seu duplo no “outro”, mas agora relacionado com um corpo material não-limitado e desencarnado. Isto mostra claramente que o fenômeno originário do duplo não necessita de uma igualdade ou similaridade de objetos duplos para se fazer presente, mas, pelo contrário, que a igualdade é muito mais do que aquilo que se ajusta facilmente ao domínio do duplo. Uma pessoa pode, no momento de seu maior espanto, decidir imitar aquilo que a assustara.

O horror é um fenômeno que pode se ajustar apenas cara a cara, ou seja, apenas para um sujeito e apenas diante de outro (neste último caso não numérico, mas essencialmente um). Esta é mais uma vez a função do duplo, cuja relação com esta esfera do fantasmagórico, do corpo vivo despotencializado que, contudo, ainda é pouco clara.

Um esquema figurado, uma representação da modalidade existencial do corpo vivo, no caso da oração, ainda estaria por ser encontrado.

Muito importante: com a despotencialização do corpo vivo no horror fica suprimida também a antítese da linguagem e, na verdade, não apenas o acústico, mas a linguagem em sentido lato, como expressão, possibilidade a partir da qual, como graça incompreensível, parece com o costume de deambular sonâmbulo sobre uma corda.

SOBRE O HORROR II

A mudez no horror, uma vivência primeva. De repente é abandonado na plenitude de todas as outras forças, no meio das pessoas em plena luz do dia da língua, de cada possibilidade de expressão. E a consciência do eu: que essa mudez, impotência de expressão habitando tão profundamente na pessoa, em contrapartida, impõe nela o patrimônio da linguagem, do mesmo modo que esta impotência dos antepassados seria transmitida neles como atavismo.

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[fr 55]

APRENDIZAGEM E PRÁTICA

Essa questão, bem como algumas indicações valiosas para ela, eu agradeço ao senhor Dr. <Karl> Mannheim.

Aprendizagem é a forma da tradição, da vida espiritual da totalidade

Prática é a forma da experiência, da vida espiritual do individual

Aprendizagem possui continuidade (continuidade relativa do progresso)

Prática é inconstante (o progresso se realiza aos trancos, de súbito)

O exercício é encontrado em toda parte onde o indivíduo – mesmo como fundamento da instrução – procura a própria experiência: no erotismo religioso, na ascese mística (indiana-neoplatônica) Na prática, o indivíduo não afirma a sua responsabilidade, mas sim segundo suas próprias capacidades. Essa atitude, entretanto, é inadmissível na camada superior da existência na qual, segundo as suas capacidades, apenas o povo – o “escolhido” – deve se afirmar. Por isso a tendência ilimitada da ascese no supremo pagão. Vauvernagues diz com razão (nas máximas) “Les choses que l’on sait le mieux sont celles qu’on n’a pas apprises” – há todavia uma disponibilidade de conhecimentos que não pertencem mais às pessoas no tempo sobrenatural. O exercício – ou seu desenvolvimento extremo com as mais supremas finalidades, a ascese – não tem como meta, nomeadamente, o conhecimento, mas dispõe da capacidade para tal; ele não pode ser completamente sem conhecimento, mas não quer estar acima de seus bens, mas de seu entendimento. No entanto a pessoa, diante de Deus, deve compreender e nada mais, e se o conhecimento persiste diante disso, conta apenas como a incumbência da comunidade para com o indivíduo. O bem íntimo vem da aprendizagem; o extremo, da prática.

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[fr 56]

ESQUEMAS DO PROBLEMA PSICOFÍSICO

I. Espírito e corpo vivo

Eles são idênticos apenas como abordagens, não como objetos. A zona de sua identidade designa o termo “forma”. Em cada estágio de sua existência, o espírito-corporal é a forma do histórico, portanto a espírito-corporalidade é de alguma maneira a categoria de seu “instante”, sua manifestação momentânea como perecível-imperecível. Corpo vivo e espírito, com o sentido idêntico de corpo vivo, são então as supremas categorias de forma do acontecimento do mundo, mas não a categoria de seu conteúdo eterno, como faz dela a abordagem da escola georgiana. Nosso corpo vivo não é assim um processo histórico implicado em si, mas apenas o estar-nele respectivo, sua modificação de forma em forma não é função do acontecimento histórico em si, mas da respectiva relação abstrata de uma vida sobre este. Assim um corpo vivo pode se tornar real para todos, porém não como o substrato ou a substância de seu ser mais íntimo, como é o corpo material, mas sim como um fenômeno na exposição de seu “instante” histórico. Talvez seja mais conveniente chamar o espírito encarnado de “engenho”.

Em geral, podemos dizer: todo real é forma contanto que ele seja considerado no modo de seu processo histórico, que é significativo para o todo tal como para seu “instante”, alojado no âmago de seu presente temporal. Toda forma desse tipo pode se manifestar em dois modos idênticos, que talvez estejam em uma relação polar: como engenho e como corpo vivo.

II. Espírito e corpo material

Enquanto corpo vivo e engenho podem se tornar real para todos a partir de sua relação presente com o processo histórico (e não apenas com Deus), o corpo material, e o espírito que lhe pertence, são fundados pura e simplesmente na existência, não na relação. O corpo material é uma entre as realidades que estão no próprio processo histórico. Como ele se difere do corpo vivo poderá ser ilustrado, por ora, pelo exemplo do ser humano. Tudo que a pessoa tem de si mesma como algo da percepção formal, que aparece na sua totalidade bem como em membros e órgãos, contanto que lhe seja plasmado, pertence ao seu corpo vivo. Todas as limitações que ela percebe em si mesma, sensualmente, pertencem igualmente a esta forma. Disso resulta que a existência única da pessoa percebida sensualmente é a percepção de uma relação na qual ela se encontra, mas não a percepção de um substrato, de uma substância própria, tal como o corpo material representa sensualmente. Pelo contrário, isto se manifesta numa dupla polaridade peculiar: como prazer e como dor. Em ambos não é percebida nenhuma forma, nenhuma limitação. Portanto, se nós tomamos conhecimento sobre nosso corpo material, apenas ou principalmente, através do prazer e da dor, então não conhecemos nenhuma limitação dele. Neste ponto é necessário tê-los em mente, sob as modificações da consciência do eu, já que tal limitação é tão estranha quanto os estados de prazer e dor que, em seu mais alto desenvolvimento, constituem a embriaguez. Esses estados são inicialmente os da percepção. Embora com diferenças de graus. A percepção visual, em contraste com a percepção gustativa, mais centripetamente dirigida, e especialmente com a percepção tátil, que poderíamos chamar formalmente centrífuga, é provavelmente aquela criada de forma mais ilimitada. A percepção visual mostra o corpo material, quando não ilimitado, ainda no limite amorfo e vacilante.

De maneira geral, pode-se então dizer: pelo que sabemos da percepção, sabemos do nosso corpo material que, em contraste com nosso corpo vivo, se estende sem limite formal determinado. Então, na verdade, este corpo material não é o substrato último de nosso ser, mas, todavia, a substância para a distinção do corpo vivo, do qual é apenas função. No sentido mais profundo, o corpo material é objetivo e por isso deve ser localizado, mais ainda do que no esclarecimento do engenho idêntico ao corpo vivo, na clarificação da “natureza” espiritual do ser vivente, que está ligada ao corpo material e presa a ele. Aqui a dificuldade está no fato de que a natureza é afirmada como pertencente ao corpo material, porém novamente indicando enfaticamente a limitação e o pormenor dos seres viventes. Essa realidade limitada, que é constituída através da fundação de uma natureza espiritual em um corpo material, chama-se a persona. De fato a persona está agora limitada, mas não formada. Portanto ela tem sua singularidade que, decerto, pode se atribuir um sentido seguro, mas não proveniente de si própria, porém da amplitude de sua extensão máxima. Assim é ao mesmo tempo com sua natureza e seu corpo material: eles não estão limitados de modo estruturado, mas ainda limitados através de um máximo de interpretação <sic>, o povo.

III. Corpo vivo e corpo material

A pessoa pertence ao corpo vivo e ao corpo material em conexões universais. Com um e outro, no entanto, de maneiras muito diversas: com o corpo vivo da humanidade, com o corpo material de Deus. Ambos os limites para com a natureza são precários, ambos os incrementos determinaram aqui o acontecimento do mundo a partir de seus fundamentos mais profundos. O corpo vivo, a função do presente histórico nos seres humanos, cresce para o corpo vivo da humanidade. A “individualidade” como princípio do corpo vivo é maior do que as individualidades corporais singulares. A humanidade como individualidade é a conclusão e simultaneamente o declínio da vida corporal. Declínio: porque com ele se alcança aquela vida histórica, cuja função do corpo vivo é o seu fim. Nesta vida do corpo vivo da humanidade e, portanto, neste declínio e nesta realização, pode a humanidade, excetuada a totalidade dos vivos, ainda que parcialmente, abranger a natureza através da técnica: objetos inanimados, plantas e animais, na qual se forma a unidade de suas vidas. Por fim pertence a sua vida, aos seus membros, tudo o que serve a sua felicidade.

A natureza corporal vai contra a sua dissolução, em comparação com a ressurreição de sua corporeidade. Do mesmo modo, sobre esta se encontra o momento decisivo na pessoa. O corpo material é para a pessoa a chancela de sua solidão e ela não vai se partir – nem mesmo na morte – visto que esta solidão não é nada mais que a consciência de sua dependência direta de Deus. O que, para cada pessoa, no âmbito de sua percepção, de suas dores e de seu prazer máximo, é salvo com ela na ressurreição. (Este prazer máximo não tem, obviamente, nada a ver com a felicidade) Dor é regida, prazer é avaliado <?> princípio do corpo material.

Portanto há na história natural os dois grandes decursos: dissolução e ressurreição.

IV. Espírito e sexualidade/Natureza e corpo material

Espírito e sexualidade são as forças potenciais polares da “natureza” dos seres humanos. A natureza não é algo que pertence especialmente a cada corpo material singular. De fato, na sua relação com a singularidade do corpo material, ela é comparável com a relação das correntes do oceano com as gotas d’água individuais. Um sem número destas gotas é tomado da mesma corrente. Assim é também a natureza, embora não em todas, mas respectivamente em muitíssimas pessoas, a mesma. E no verdadeiro sentido de mesma e idêntica, não apenas igual. Ela não é constante, mas sua corrente muda com os séculos e, ao mesmo tempo, sempre será encontrado um número maior ou menor de tais correntes. Sexualidade e espírito são os dois pólos vitais dessa vida natural que flui para o corpo material e nele se diferencia. Assim é o espírito, bem como a sexualidade na origem, algo de natural e aparecerá no transcurso como um corpóreo. O conteúdo de uma vida depende do quanto o vivente consegue manifestar corporeamente sua natureza. A decadência completa do ideal da corporeidade, como experimenta o mundo ocidental atual, permanece como o último instrumento para sua renovação, o tormento da natureza, que na vida já não mais se deixa apreender e corre irrefreavelmente, em correntes selvagens, sobre o corpo material. A própria natureza é totalidade e o movimento descendente no insondável da vitalidade total é destino. O movimento ascendente a partir deste insondável é arte. Mas porque a vitalidade total na arte tem o seu efeito redentor singular, qualquer outra forma de expressão conduz ao aniquilamento. A representação da vitalidade total na vida deixa o destino desembocar na loucura. Porque toda reatividade vital está ligada a diferenciação, seu instrumento mais nobre é o corpo material. Esta sua determinação é reconhecida como essencial. O corpo material como instrumento de diferenciação das reações vitais, e apenas ele, é simultaneamente a sua vitalidade psíquica a ser apreendida. Toda vivacidade psíquica localiza-se nele de maneira diferenciada, mais ou menos como a antiga antroposofia empreendia na analogia do corpo material com o macrocosmo. O corpo material tem, na percepção, uma das determinações mais importantes da diferenciação; a zona das percepções também mostra mais claramente a variabilidade que ele está sujeito como função da natureza. Altera-se a natureza, então se altera as percepções do corpo material.

O corpo material é um instrumento moral. Ele é criado para o cumprimento do mandamento. Logo, ele foi instituído pela criação. Mesmo as suas percepções denotam o quanto subtrai ou traslada nelas seu dever.

V. Prazer e dor

Na diferença física entre prazer e dor está contida sua leitura metafísica. Sob esta diferença física resta, por fim, duas como elementares e irredutíveis. Do ponto de vista do prazer, seu caráter fulminante e uniforme o diferencia da dor; do ponto de vista desta, seu caráter crônico e diverso a diferencia do prazer. Somente a dor, mas nunca o prazer, pode se tornar o sentimento concomitante crônico dos processos orgânicos constantes. Só ela, nunca o prazer, é capaz da diferenciação extrema conforme a natureza dos órgãos, da qual ela provém. Isto está implícito na língua que, no alemão, para o máximo de prazer só são conhecidos os superlativos de Süßen [doçura] ou de Wonne [delícia], dos quais, na verdade, apenas o primeiro é acertada e inequivocamente sensual. Por conseguinte, o sentido mais baixo, o paladar, empresta a designação de sua sensação orgânica positiva para a expressão de todo o prazer sensual. Completamente diferente das designações da dor. Nas palavras: Schmerz [dor], Weh [mágoa], Qual [martírio], Leiden [sofrimento] está por toda a parte mais claramente pronunciado que – o que para o prazer, no campo da designação linguística, apenas aproximadamente está implícito na palavra “Wonne” [delícia] –, na dor, a ausência de toda e qualquer metáfora é diretamente afetada pelo simbólico, o anímico. Talvez seja justamente relacionado a isto que os sentimentos de dor são em grande medida incomparáveis como os sentimentos de prazer genuínos, portanto não são capazes apenas de uma variabilidade moderada de grau. Mas certamente existe uma ligação entre este valor inquebrantável do sentimento de dor para a essência integral da humanidade e sua capacidade de permanência. E esta permanência, por sua vez, conduz diretamente ao campo daquelas diferenças físicas exatamente correspondentes, e as diferenças metafísicas desses dois sentimentos as esclarecem. Apenas o sentimento de dor é capaz, nomeadamente, tanto no físico como no metafísico, da realização ininterrupta de um tratamento temático. A essência da pessoa é o instrumento perfeito da dor; apenas no sofrimento humano a dor chega a sua mais pura e adequada manifestação, apenas na vida humana ela deságua. Somente a dor, de todos os sentimentos do corpo material, é para a pessoa como um rio navegável que jamais se esgota a água, que a conduz para o mar. O prazer se mostra por toda parte onde a pessoa aspira a lhe dar sequência, como um beco sem saída. Na verdade, ele é apenas um presságio de um outro mundo, não como a dor, uma ligação entre os mundos. Portanto o prazer orgânico é intermitente, enquanto que a dor pode se tornar permanente.

Esta relação de prazer e dor está ligada ao fato de que, para o conhecimento essencial de uma pessoa, o motivo de sua maior dor é indiferente, no entanto o motivo de seu maior prazer é muito importante. Pois toda dor, mesmo a dor vã, se deixa levar até o extremo religioso, mas o prazer não é capaz de nenhum refinamento e tem sua nobreza inteira isolada da graça de seu nascimento, dirá o seu motivo.

VI. Proximidade e distância

Estas são duas relações espaciais que, na construção e na vida do corpo material, podem ser semelhantes à determinação como outros espaciais (acima e abaixo, direita e esquerda, etc.). Mas elas emergem principalmente na vida de Eros e da sexualidade. A vida de Eros se inflama pela distância. Por outro lado há um parentesco entre proximidade e sexualidade. – Sobre a distância seria possível comparar com as investigações do sonho de Klages. Ainda mais desconhecido que o efeito da distância nas relações corpóreas é o da proximidade. Os fenômenos relacionados podem ter sido repudiados e degradados a milhares de anos. – Além disso, por exemplo, subsiste uma relação precisa entre estupidez e proximidade: no fim das contas, a estupidez provém da contemplação próxima das idéias [A vaca em frente ao novo portão]. Mas precisamente esta demasiada contemplação (estúpida) próxima das idéias é uma fonte de beleza (não intermitente) permanente. Assim procede a relação entre a estupidez e a beleza.

Literatura
<Ludwig> Klages: Vom Traumbewußtsein Ztschr. für Pathopsychologie III Bd 4 Heft 1919 (ver mais estes)
<idem> Geist und Seele Deutsche Psychologie Bd I Heft 5 u Bd II Heft 6
<idem> Vom Wesen des Bewußtseins (J. A. Barth)
<idem> Mensch und Erde (Georg Müller)
<idem> Vom kosmogonischen Eros (Georg Müller)

VI. Proximidade e distância (continuação)

Quanto menos um homem é constrangido pelos laços do destino, menos o próximo o determina, seja através de circunstâncias, seja através das pessoas. Pelo contrário, tal pessoa livre tem sua proximidade própria; é ela quem a determina. A determinação própria de sua vida fatídica, pelo contrário, vem a ela da distância. Ela não regateia “considerando” o que está por vir, como se a ultrapassasse; mas com “cautela” para com o distante, ao qual ela se conforma. Eis porque é o questionamento das estrelas – mesmo entendido alegoricamente – plenamente fundamentado, como a especulação em torno do porvir. Por que o longínquo, que determina a pessoa, deve ser a própria natureza e quanto mais indivisa esta atua tanto mais pura é aquela. Por conseguinte a natureza pode, com seus menores presságios, assustar o neurótico, guiar com as estrelas os demoníacos, assim ela determina, com suas mais profundas harmonias – e apenas através destas – somente os devotos. Todos eles, não em suas ações mas sim em suas vidas, que por si só pode sim ser fatal. E aqui, mas não no campo da ação, está a liberdade em seu lugar. Justamente seu poder dispensa o vivente da determinação através do devir natural singular e permite a ele ser guiado pela existência da natureza que lhe é própria. Mas é conduzido como um dormidor. E a pessoa perfeita, sozinha em tais sonhos, a partir dos quais ela não desperta na vida. Pois quanto mais perfeita é a pessoa, tanto mais profundo é este sono – tanto mais constante e mais limitado ao fundamento originário de seu ser. Um sono, portanto, que não vem pelo ruído do próximo e nem através da voz de seus sonhos contemporâneos, no qual serão inquiridos a rebentação, os ambientes e o vento. Este mar de sono no solo profundo de toda natureza humana tem a preamar durante a noite: cada soneca apenas significa que ele banhou uma praia, a partir da qual ele se retira do tempo desperto. O que permanece: os sonhos são – como prodigiosamente formados – apenas o morto desde o regaço dessas profundezas. O vivente permanece protegido nele e sobre ele: o barco da vida desperta e os peixes como presas mudas nas redes do artista.

Assim é o mar, símbolo da natureza humana. Como sono – no mais profundo sentido figurado – traz o barco da vida com sua correnteza, que é conduzido pelo vento e pelas estrelas, como soneca no sentido próprio, ergue-se durante a noite como a maré contra a praia da vida, na qual ela devolve os sonhos.

A propósito, proximidade [e distância?] são para o sonho não menos decisivas que para o erótico. Não obstante, porém, de modo atenuado, deteriorado. A essência dessa diferença estaria ainda por ser localizada. Em si, a proximidade extrema certamente se realiza no sonho; e – talvez! – também a distância extrema?

Quanto ao problema da realidade do sonho, deve ser averiguado: a determinação da relação do mundo do sonho com o mundo da vigília, ou seja, o mundo real, é estritamente distinta da análise de sua relação com o mundo verdadeiro. Na verdade, ou no “mundo verdadeiro”, sonho e vigília já não existem mais como tal; eles podem ser mais do que símbolos de sua representação. Pois no mundo da verdade, o mundo da percepção perdeu a sua realidade. Sim, talvez o mundo da verdade não seja de maneira alguma o mundo de algum tipo de consciência. Com isso deve ser dito: o problema da relação do sonho com a vigília não é nenhuma “teoria do conhecimento”, mas uma “teoria da percepção”. As percepções não podem ser verdadeiras ou falsas, mas são problemáticas apenas em termos da competência de seu teor de significação. O sistema de tais competências possíveis, de modo geral, é a natureza da pessoa. Portanto o problema aqui é o que diz respeito, na natureza da pessoa, ao teor de significação da percepção do sonho, que concerne a sua percepção desperta. Para o conhecimento, ambos são inteiramente significantes exatamente da mesma maneira, a saber, pura e simplesmente como objetos. – Perante a percepção, nomeadamente, é sem sentido o questionamento habitual pela superioridade de um desses modos de percepção, de acordo com a maior riqueza de critérios, visto que primeiro devem ser indicados 1) que em geral existe a consciência da verdade 2) que através de tal validade seria caracterizada, em comparação, a maioria relativa dos critérios. Na realidade é 1) sem sentido a comparação nas investigações teóricas da verdade 2) a princípio, sobretudo para a consciência, é responsável unicamente a relação com a vida, mas não com a verdade. No que diz respeito à vida, nenhum desses modos de consciência é verdadeiro, mas há apenas uma diferença de seu significado para os mesmos.

Perfeito equilíbrio entre proximidade e distância no amor perfeito “vens voando e encantada”. – Dante põe Beatrice sob as estrelas. Para ele, porém, as estrelas poderiam estar próximas em Beatrice. Porque na amada se apresentam próximas ao homem as forças da distância. De tal maneira são proximidade e distância os polos da vida de Eros: eis porque é crucial o presente e a dissolução no amor. – O encanto é a magia da proximidade.

Eros é a obrigação na natureza, cujas forças estão livres por toda parte onde ele não domina. “Um grande demônio, Sócrates, [é o Eros] pois que todo demoníaco está no meio entre o deus e o mortal. – Que poder tem? Eu perguntei. – De anunciar e transmitir aos deuses o que vem dos homens e aos homens o que vem dos deuses; de uns súplicas e sacrifícios, de outros ordens e recompensas aos sacrifícios. No meio de ambos está o cumprimento, de modo que o próprio universo está ligado a si mesmo. Por meio deste demoníaco é possível do mesmo modo a profecia, e a arte dos sacerdotes nos sacrifícios, nas bênçãos, nos cantos e em toda adivinhação e encantamento. Deus não lida com os homens, mas através deste está a relação total e a conversação divina com os homens na vigília e no sono” Symposion 202/203<.> O tipo e o fenômeno originário da ligação, porém, que se encontra em cada ligação particular, é da proximidade e da distância. Esta é, além de todas as outras, a obra originária de Eros.

Relação especial de proximidade e distância para com os gêneros. Para o homem, as forças da distância devem ser determinantes, ao passo que ele determina a partir das forças da proximidade. A saudade é um devir determinado. Qual é a força a partir da qual o homem determina sua proximidade? Ela está perdida. Vôo é o movimento da saudade. Qual é o movimento encantatório que determina a proximidade? Encanto e vôo se conjugam no tipo de sonho de voar baixo sobre a terra. (A vida de Nietzsche é típica da mera determinação da distância, que é a fatalidade do mais alto sobre a pessoa acabada). Devido a esta falha da força encantatória ela não pode “se manter a distância”. E tudo que penetra em sua proximidade é dissoluto. Eis porque se tornou a proximidade o domínio do dissoluto, como na mais íntima proximidade do casal na sexualidade, terrível o suficiente para trazer à luz, e que tem sido experimentado por Strindberg. Mas o Eros ileso tem poder obrigatório e encantatório também no próximo.

“Die Verlassenen” de Karl Kraus, uma contrapartida <contraposição?> ao “Seliger Sehnsucht” de Goethe. Aqui o movimento do adejo e do vôo, acolá a paralisação encantada do sentimento. O poema de Goethe, um movimento ininterrupto poderoso; o poema de Kraus, uma interrupção desmedida e detida no meio da estrofe, como o abismo do mistério que separa o primeiro do último reciprocamente. Assim é o abismo, o fato originário que seria experimentado em toda proximidade erótica profunda.

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[fr 57]

<SOTERIOLOGIA E MEDICINA>

Soteriologia

Condições sociais provenientes da redenção
Cura completa

Medicina

Conservação ou melhoramento da vida de possibilidades vitais <.> A que isso pertenceria é uma questão somente quando teórica, prática, mas manifesta, indiferente

O procedimento da medicina é a cura (precisão) seu êxito, auxílio

Espírito

Complexo de sintomas
Não o lugar da cura humana mas apenas da soteriológica, por que o espírito é a área da imediaticidade

Corpo material

Manejo terapêutico
Cirúrgico
Bioquímico
Biofísico
Caráter indireto

A teoria da saúde e da doença leva ao fato de que espírito e corpo material não são distinguidos na definição de doença, mas apenas no significado para a compreensão da doença

Nem todo enfermo precisa, muito menos possibilita, a cura.
A dor como sintoma-aviso espiritual

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[fr 58]

TEORIA DO ASCO

Não há ninguém que esteja livre do asco; apenas isto é concebível, que nunca na vida alguém tenha se deparado com a visão, o olfato, o paladar, ou outra sensação que provoque seu asco. Para cada pessoa seria diretamente o animal que mais claramente invoca seu asco, se o conhecesse exatamente, de modo dedutível. Talvez uma criatura ínfima, um bacilo, que só pode ser visto sob o microscópio.

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[fr 59]

EXPERIÊNCIA

O tipo do homem que realiza experiências é o exato oposto do tipo do jogador.

Experiência são semelhanças vividas.

Não existe maior equívoco do que pretender construir a experiência, no sentido de experiência de vida, de acordo com o esquema em que se baseiam as ciências naturais exatas. Não são as conexões causais observadas no correr do tempo, mas as semelhanças vividas que são aqui determinantes.

A maioria das pessoas não pretende fazer nenhuma experiência. Suas convicções, além disso, as impede de fazê-lo.

A identidade de experiência e observação deve ser provada. V. o conceito de “observação romântica” em minha tese. – Observação com base na imersão.

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